domingo, 25 de abril de 2010

Torres Vedras e o 25 de Abril - "O Morto era outro"

“1974 cá está aberto em leque, repleto de interrogações, dúvidas, medos, mas sobretudo cheio de verdes esperanças”. Com estas proféticas palavras iniciava o meu pai, Venerando Ferreira de Matos, a primeira crónica publicada no jornal “Badaladas” nesse ano de 1974.

Vivia-se ainda a ressaca frustrante das eleições de 1973, onde mais uma vez a oposição democrática, toda unida à volta do MDP/CDE, tinha sido impedida de, livremente, expor as seus projectos para a construção do país, numa campanha eleitoral onde estava proibido debater a guerra ultramarina, motivo pelo qual aquele movimento acabou por desistir de ir às urnas.

Do lado do governo, a ANP tinha regressado aos “bons velhos tempos” expurgada da incómoda “ala liberal”. Era o fim da chamada “Primavera Marcelista”.

1974 iniciava-se sob o signo da crise política e económica que se reflectia em Torres Vedras, a primeira sob a crise interna do executivo camarário, publicamente evidente pela demissão de um dos seus vereadores, a segunda pela referência subtilmente críticas ao racionamento da gasolina e ao preço elevado desta, motivando até queixas públicas dos choferes de praça.

Contudo, quase sem se dar por isso, apareciam pequenos “sinais” reveladores de que algo estava a mudar.

Pela primeira vez, em várias décadas, surgia propaganda clandestina nas escolas do concelho. As muito participadas e agitadas sessões eleitorais da oposição em Torres Vedras, em 1973, tinham deixado sementes e, regularmente, realizavam-se reuniões clandestinas, cada vez mais alargadas e organizadas.

Em colectividades locais, como no Clube Artístico e Comercial ou no renascido Cine Clube de Torres Vedras, vivia-se um clima de dinamismo e entusiasmo pela criação de alternativas culturais aos limites impostos pela censura e às bolorentas actividades da Mocidade Portuguesa e da Câmara.

Nas páginas do “Badaladas” eram cada vez mais frequentes os textos que, utilizando a necessária subtileza para escapar à censura, iam revelando os “podres” do regime:

“Espectador (não comparsa) das Ténues mudanças que se vão operando nesta terra parada no tempo, sobretudo no campo ainda inexplorado do sócio-político (nota que deixo de lado o económico) olho à minha volta num desencanto quase doentio. A manta de retalhos que é Torres Vedras moderna vai crescendo caoticamente sem rei nem roque, desenquadrada dum plano de urbanização inexistente. Creio que já te disse por outras palavras esta mesmíssima coisa.

“A cegueira dos homens, os interesses de alguns grupos, a tenacidade doentia e repetida de certos nomes que hão-de passar à história local como os coveiros de uma terra que merecia melhor sorte, cheira-se, apalpa-se, sente-se no ar que se respira, discute-se em surdina às mesas dos cafés” (Venerando Ferreira de Matos, in “Cartas a um amigo de longe… - XVI”, “Badaladas” de 19 de Janeiro de 1974).

Nomes como o autor das palavras acima transcritas, mas também um João Carlos, um António Augusto Sales, um Andrade Santos, um Ruy de Moura Guedes, um António Leal d’ Ascensão, um Victor Cesário da Fonseca, sempre incentivados pelo Padre Joaquim Maria de Sousa, director e fundador do “Badaladas”, estavam cada vez menos solitários nesse ano de 1974 no uso dessa arma que era a escrita, para enfrentarem o regime.

Chegados ao mês de Março, o Dr. António de Sousa Dias transcrevia para as páginas do “Badaladas” algumas linhas do livro do General Spínola “Portugal e o Futuro”, grande tema de discussão nesses últimos meses de vida do velho regime, livro cuja edição mereceu, se bem me recordo, uma montra especial na Galeria 70, livraria dirigida por Cristina e Armando Pedro Lopes, local muito frequentado por oposicionistas e onde se realizavam regularmente colóquios, exposições e outras actividades de cariz cultural.

Nesse ambiente, foi sem grandes surpresas que, numa reunião clandestina do núcleo local do CDE, realizada em casa do Francisco Manuel Fernandes, tivemos conhecimento e acompanhámos os acontecimentos do falhado golpe militar das Caldas da Rainha, nesse sábado 16 de Março.

Para quem estivesse atento ao que se passava à sua volta era evidente, a partir daí, que o derrube do Estado Novo era uma questão de (pouco) tempo.

Contudo, quando na noite de 24 de Abril alguns de nós regressávamos a casa, depois de mais uma sessão do Cine-Clube no Teatro-Cine, que costumava ter lugar às 4.as feiras, estávamos longe de imaginar que àquela hora estava já em marcha a tão desejada madrugada.

Só a título de curiosidade, o último filme que vimos durante a vigência do Estado Novo chamava-se “O Morto era Outro”, de Jerry Lewis.

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