sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Uma Homenagem à Memória de Emílio Costa (1931-2012)

Foi com surpresa que tomei conhecimento, quase uma semana depois, do falecimento de Emílio Luís Costa, ocorrido no passado dia 22 de Novembro.
Emílio Luís Costa, ou “o sr. Emílio”, como carinhosamente era chamado no seio da minha família, foi talvez das primeiras pessoas que conheci fora do círculo familiar, aí pelos anos 60
Com regularidade, nessa época, ele reunia-se com o meu pai à volta da mesa da nossa sala de jantar, juntando gravuras várias e provas de texto que depois, com tesoura e cola, eram montados para dar forma ao “Boletim da Física”. O meu pai era responsável pelo texto e o sr.Emílio pela parte gráfica.
Emílio Luís Costa foi um exímio tipógrafo, numa terra como Torres Vedras onde a actividade de tipógrafo teve grande prestígio. Aliás, foi um antepassado meu, do lado da minha mãe, que fundou, nesta terra, a primeira tipografia em 1884 e que foi responsável pela edição do primeiro jornal torriense, um ano depois.
Dessas reuniões em minha casa ficou muito do meu gosto pelos “papéis”, pela actividade editorial, pelo espaço quase mágico, com aquele cheiro a tinta e aquele ruido das rotativas característicos das tipografias da “era” pré-informática.
O sr. Emílio nasceu em Torres Vedras em 20 de Dezembro de 1931, tendo começado a trabalhar com 11 anos na Tipografia de Victor Cesário da Fonseca, passando depois por outras tipografias, até ter criado a sua própria empresa, a Tipoeste, fundada em 2 de Março de 1973.
Para além da sua actividade profissional, Emílio Costa esteve muito ligado ao associativismo local, principalmente aos Bombeiros de Torres Vedras, instituição fundada pelo seu avô no início do século XX, principalmente como musico da sua Banda, onde ingressou aos 13 anos.
Um outro campo dos seus interesses foi o memorialismo e a divulgação sobre a história local, colaborando activamente no jornal “Badaladas” e noutras publicações locais.
Em 1995 realizou parte do seu sonho de transformar em livro parte da memória da sua rica vivência pessoal nesta vila, ao editar a obra “ESCRITOS DE TORRES VEDRAS”, onde reuniu várias histórias por si vividas, mas onde se cruzam alguns dos mais marcantes acontecimentos históricos dos anos 40 e 50.
A sua obra é tanto mais importante, quanto não existem muitos registos, a não ser os meramente burocráticos, sobre a vida local naquele período. Se Torres Vedras tem um historial rico de publicações periódicas desde 1885, chegando em certas ocasiões, a publicar-se mais do que um título semanal, o período entre a primeira metade dos anoa 30 e o principio dos anos 50 do século passado é um período em que existe um verdadeiro “buraco negro” do memorialismo, do qual a imprensa é um importante reportório.

Em sua homenagem, revelamos aqui uma das passagens daquela sua obra, onde se fala nas condições miseráveis de trabalho a que estavam sujeitos os trabalhadores rurais da região, tema tanto mais actuais quando se houve falar, por aí, de animo leve, na “necessidade de empobrecimento” e de retirar direitos a quem trabalha:
“.. .Vamos recuar no tempo, uns bons pares de anos!...
“Este texto é uma singela homenagem aos "heróicos" trabalhadores rurais, esses ignorados homens que durante décadas e décadas ajudaram, com o seu esforço, suor e lágrimas, ao progresso do país e a alimentar riquezas de muitos senhores, alguns considerados feudalistas.
“Ilustres desconhecidos, esses, a quem poucos davam valor, que lutaram de enxada na mão, sem horário certo de "tantas" horas semanais, sujeitando-se a um horário rígido, de "sol a sol". Usufruindo uns miseráveis 12/15/18$00 diários, mal alimentados, comendo parcas refeições e só depois do feitor ou patrão lhes darem ordem, à sombra de uma árvore ou dalgum qualquer pardieiro, e após des­cansarem um pouco o corpo, entregando-se a pequena sesta, revolviam a terra com uma enxada, preparando-a para a sementeira desejada.
“Nos dias de chuva não trabalhavam, e a jorna era-lhes negada como manda­vam as regras impostas por outros senhores... Se não ganhavam, a maior parte deles não comia! Era o lema infeliz destes trabalhadores.
“E mais...
“Sujeitavam-se a vir à vila oferecer o seu corpo para serem explorados. Era triste ver dezenas de homens, de enxada na mão, vindos a pé e descalços, do Varatojo, Paul, Fonte Grada, Ponte do Rol, Silveira, Louriceira, Cambelas e outras localidades, à espera dos senhores feudais para escolherem os mais aptos para o trabalho.
“Primeiro eram preferidos os mais novos; depois, se necessário, alargava-se a escolha aos mais idosos. Homens de quarenta e mais anos era certo e sabido que seriam os últimos a serem contratados, ou então ficavam ali horas, à espera de alguém que lhes oferecesse trabalho. Muitos, pensando na família, esperavam por uns míseros escudos para a compra do pão. Sujeitavam-se a receber uma jorna muitas vezes à vontade do seu contratante.
“Um dos mais abastados proprietários da região, quando tinha necessidade de homens para trabalhar nas suas propriedades, vinha à "praça" e levava con­sigo todos aqueles que não tinham arranjado patrão, mas... calcule-se, ao preço que ele entendia. Algumas vezes até por metade da jorna que corria na altura! Escravidão, não de negros, mas de homens de raça branca, infelizes por terem nas­cido pobres e nos meios rurais, não tinham outra possibilidade de sobrevivência, que não fosse sujeitando-se à exploração de outros homens (?) da mesma raça.
“***
“Era tão triste e degradante o espectáculo que se oferecia diariamente aos torrienses, ali mesmo no largo da Câmara Municipal, que um dia foi transferido para junto da entrada do lado nascente do Mercado Municipal1.
"A "praça" acabou, e muito bem, por volta de 1954.
"Infelizmente, assistimos, algumas vezes à escolha desses homens. (obra citada, pág. 74).
 
Nos últimos tempos encontrava o “sr. Emílio” com alguma regularidade, frequentando a zona onde moro por viver aqui um casal amigo que ele visitava. Contudo, de há uns meses para cá deixei de o ver com a mesma frequência, até me ter chagado a triste notícia.
Ele contava-me muitas vezes da mágoa que sentia pelo facto de lhe negarem apoio para editar um segundo livro de memórias, que completava aquela primeira obra, onde reunia novas e curiosas “estórias”.
Talvez agora, com justa homenagem a um homem bom de Torres Vedras, que muito amou a sua terra, que se interessou em passar à escrita as suas recordações de uma vida rica em acontecimentos, haja por aí alguém interessado em completar o seu sonho.