quarta-feira, 27 de julho de 2016

O Avião de Sanjurjo em Santa Cruz (19 e 20 de Julho de 1936)

(A fotografia em cima mostra o meu avô, António Ferreira Aspra, fotografado junto ao avião de Sanjurjo, no campo de aviação de Santa Cruz, fotografia que terá sido tirada a 19 ou 20 de Julho de 1936).
 
No dia 19 de Julho de 1936, Domingo, um avião pilotado por um ás da aviação espanhola, Juan Ansaldo, aterrava, semi-clandestinamente no campo de aviação de Santa Cruz.
 
Trazia uma missão, ir buscar a Cascais o General Sanjurjo para este comandar a sublevação iniciada dois dias antes em Marrocos contra o governo republicano de Madrid.
 
Esse episódio marcou a memória colectiva dos torrienses desse tempo, até pelo desfecho trágico desse voo.
 
No primeiro fim-de-semana do conflito, os “naciolalistas” estavam separados, ocupando Marrocos e as Canárias, o Sul à volta de Sevilha, cidade tomada pelo General Queipo de Llano, e o Norte (Galiza e Castela e Leão).
 
Estava-se no início da Guerra Civil de Espanha, que se prolongou até 1939 e que, lançando a Espanha num banho de sangue, é por muitos considerada um ensaio geral para a IIª Guerra Mundial.
 
Embora o líder máximo fosse o Genaral Mola, o objectivo era colocar rapidamente à frente dos nacionalistas um General mais prestigiado , o General Sanjurjo, que , no seu exilio português, em Cascais, acompanhava e era informado à distância sobre os acontecimentos.
 
Para isso Mola enviou a Portugal um herói da aviação espanhola, Juan Ansaldo, que partiu de Pamplona para Portugal no dia 19 de Julho chegando nesse mesmo dia ao "campo de aviação auxiliar de Santa Cruz, no limite ocidental da Europa" , que "acolhe docemente o avião", um "Pass Moth" com a matricula EC-VAA. (4).
 
Ao aterrar no campo de aviação de Santa Cruz era aguardado por dois automóveis, onde encontra um seu velho amigo, "Tavares", recebendo a notícia, que se confirma ser falsa, segundo a qual o general Sanjurjo já tinha partido para "Burgos a bordo de um avião francês".
 
Seguindo a narração de Ansaldo, este, tomando todas as precauções para abrigar o avião porque "não existia nesse aeródromo nenhum serviço de sobrevivência [apoio]" (pág.51), partiu de seguida para Lisboa, a caminho do Estoril, numa das viaturas que o aguardavam, confirmando, á sua chegada ao Estoril, que o general continuava nessa localidade.
 
Foi aí que se negociou uma saída airosa que não comprometesse o regime português face a um desfecho ainda imprevisível da situação em Espanhola, assim descrita por César de Oliveira:
 
 “Ansaldo vinha buscar Sanjurjo para o transportar para Burgos, a fim de que este assumisse a chefia do movimento militar. Chegado a Portugal, Ansaldo, com o apoio da PVDE e do ajudante de campo do Presidente da República portuguesa, iniciou a preparação da descolagem do avião em direcção a Burgos. No entanto, Oliveira Salazar fez saber aos emigrados espanhóis, por intermédio do capitão Agostinho Lourenço, director da polícia política, que “interditava o uso de aeródromos militares para a descolagem do avião mas que nada tinha a ver com o que se passava em aeródromos civis”. Em reuniões sucessivas no Estoril – e sempre com o ajudante de campo do Presidente Carmona a fazer as ligações entre os emigrados espanhóis e as autoridades portuguesas - chegou-se a uma solução satisfatória para o lder do Alzamento e que “cobria” eventuais complicações para o governo de Salazar: o avião iria de Santa Cruz para Alverca. Aeródromo militar a 20 Km de Lisboa, aí seria reabastecido e deslocaria normalmente como se o fizesse para Espanha; aterraria, depois, num campo improvisado nas imediações de Cascais e aí embarcaria o general e rumaria a Burgos” (2) .
 
Nessa noite do dia 19,  Ansaldo recebeu um telefonema que o inquietou: era uma chamada de Santa Cruz que o informava que "elementos comunistas andavam à volta do avião", apelando para que tomasse todas as providências para se evitar qualquer "sabotagem". Ansaldo ficou indignado com o facto de "tais elementos" serem deixados em liberdade pela ditadura portuguesa e mandou que guardassem o avião. Depois de vários telefonemas, Ansaldo recebeu finalmente a confirmação de que tudo tinha sido feito de acordo com as suas ordens para resguardar o aparelho (pág.53).
 
É neste ponto que a referência de Ansaldo à presença de gente da oposição (que ele designa como "comunistas", mas que podiam ser outros oposicionistas, como era o caso de dois elementos da maçonaria local que lá estiveram), se cruza com a tradição oral local,segundo a qual teria havido uma tentativa, em Santa Cruz, de sabotar o avião.
 
A aplicação da classificação de "comunistas" às pessoas da oposição ou desafectas ao regime era uma designação normal na propaganda da época, e que englobaria todos aqueles que se opunham ao regime.
 
Curiosamente o próprio Ansaldo, que mais tarde, tendo entrado em dissidência como regime franquista, foi obrigado a exilar-se, sendo no exilio que escreveu e editou as suas memórias , no prefácio da segunda edição da sua obra, se queixava do "regime franquista com a sua táctica, infelizmente hoje copiada por outros países, de chamar comunista a quem se recuse a ser seu escravo", tentando assim,  "caluniar o autor "(pág.9).
 
Segundo o testemunho de tradição oral que recolhemos, em “segundas àguas”, vários elementos da oposição republicana  local tinham estado em Santa Cruz a tentar sabotar o avião de Ansaldo. Para isso tentaram desviar as atenções dos elementos da GNR que guardavam o avião.
 
Uns levaram os elementos da GNR a "tomar um copo", enquanto outros, à volta do avião, momentâneamente sem vigilância, tentavam sabotar o avião, pulando sobre ele ou tentando danificar partes do avião.
 
Contudo, para grande surpresa dos "sabotadores" de Santa Cruz o avião acabaria por levantar voo, sem qualquer problema. Recorde-se aqui que a intenção manifestada pelos sabotadores, não era matar ninguém, mas apenas atrasar o voo e a saida de Sanjurjo do país.
 
Por isso terão ficado aterrorizados quando, horas mais tarde, souberam do acidente que matou o general Sanjurjo e guardaram segredo da sua actuação.
 
Entretanto continuamos a narração de Ansaldo:
 
Saindo do Estoril a caminho de Santa Cruz, refere que o"pior inimigo da navegação aérea apareceu nessa manhã de um 20 de Julho, meridional e quente: o nevoeiro. À medida que nos aproximávamos de Santa Cruz, ele tornava-se mais denso, escondendo o sol, tornando mesmo difícil avançar pela estrada. Das 10 horas da manhã às duas horas da tarde eu esperei furioso. De tempos a tempos, um pálido reflexo de sol brilhava no terreno e eu punha os motores em marcha; logo de seguida a neblina espalhava-se tão baixo que não nos conseguíamos ver uns aos outros. Telefonei várias vezes para o Estoril para explicar o que se passava; respondiam-me que o general me esperava com alguns amigos(...)".
 
Finalmente, por volta da uma hora e meia da tarde "como as condições atmosféricas íam de mal a pior, eu decidi adiar o voo" . Estando a almoçar, uma hora mais tarde "o nevoeiro dissipou-se. Com toda a pressa corri para o avião, pus o motor em marcha e descolei para Alverca".
 
 Acompanhou-o no voo um elemento da PVDE. Em Alverca tratou das formalidades e partiu, a meio da tarde para "a Marinha", o campo improvisado onde iria embarcar Sanjurjo.
 
Em Cascais, nesse dia 20 de Julho, já no início da tarde, o avião levantou voo , mas não conseguiu subir o suficiente, pelo que Ansaldo tentou regressar à pista, mas o avião acabou por se esmagar contra o solo, incendiando-se. O piloto foi cuspido e sobreviveu ao acidente, mas o general morreu logo no embate, ficando depois o seu corpo envolvido pelas chamas.
 
A edição do Diário de Lisboa de 21 de Julho descreve as explicações de Ansaldo sobre o acidente:
“Ao levantar voo, um forte torrão, dos que abundam no local, ou uma cova, causou a rotura da hélice. Senti que o aparelho ia afocinhar mas consegui manter a horisontalidade. A queda inevitável foi, assim, em pleno, de “barriga”. Gritei ao general que saísse do aparelho. Não me respondeu. Tentei ajuda-lo, mas não se movia. Julguei que havia perdido os sentidos, como eu depois os perdi ante a tragédia e os baldados esforços que fiz para a evitar. Mas não, o general estava morto. Quando as chamas o envolveram já estava insensível”.
 
O piloto desmentia assim a descrição feita por alguns observadores, que diziam ter visto o avião a cair na vertical, bem como a ideia, que continuou muito divulgada, segundo a qual o general tinha morrido queimado. Como revelou nessa mesma reportagem o marquês de Quintana,que observou o cadáver do general , este apresentava uma “ferida profunda, em cruz, que deve ter sido produzida por um ferro do aparelho, no momento da queda e que lhe deu morte imediata”. (5).
 
Logo correram rumores sobre a hipótese de um atentado, inicialmente atribuído aos republicanos portugueses, mais tarde, e perante o desenrolar dos acontecimentos em Espanha, atribuído a Franco, já que foi este que acabou por beneficiar com a morte de Sanjurjo (6), sucedendo-lhe na liderança dos nacionalistas, rumor que ganhou maior peso quando, no ano seguinte, também o general Mola morreu noutro acidente de avião mal esclarecido.
 
Contudo, em termos oficiais, e com base no testemunho do piloto, o acidente foi atribuído ao excesso de carga e às más condições da pista de Cascais.
 
A tese de atentado foi descartada pelo próprio piloto, apontando outras razões para o mesmo: as más condições da pista da Marinha, o tempo que obrigou a levantar na direcção mais difícil e o excesso de carga com as malas que o general Sanjujo quis levar.
 
Técnicamente o avião não conseguiu ganhar velocidade suficiente para sobrevoar as árvores que se encontravam no final da pista e a hélice falhou e partiu-se, não se sabe por ter embatido numa árvore se por qualquer problema técnico.
 
Geralmente um acidente acontece porque se combinam vários factores. Os "sabotadores" de Santa Cruz, a ser verdade a tradição oral, não foram os responsáveis directos por qualquer falha técnica, mas nunca se virá a saber se contribuiram para potenciar as dificuldades técnicas que levaram o avião a não conseguir ganhar altitude no voo fatal.
 
Mais do que certezas, a história que aqui se conta continua envolta em mistério e duvidas, as quais provávelmente, nunca virão a ser cabalmente esclarecidas.
 
Especula-se muito com o que teria acontecido se o general Sanjurjo tivesse chegado vivo a Espanha.
 
Uma das consequências seria o facto de o General Franco não aceder tão fácilmente à liderança do movimeto nacionalista.
 
Depois, se fosse o general Sanjurjo a liderar a Espanha durante a segunda Guerra mundial talvez  a posição da Espanha no conflito tivesse sido diferente, já que se conhece a maior simpatia de Sanjurjo por Hitler, maior do que aquela que era nutrida por Franco.
 
Mais do que certezas, a história que aqui se conta continua envolta em mistério e duvidas, as quais provávelmente, nunca virão a ser cabalmente esclarecidas.
NOTAS:
(1) – ORNELLAS, Carlos d’ , “Por Espanha – Crónica de viagem”, in Gazeta dos Caminhos de Ferro, nº 1552, Lisboa, 16 de Agosto de 1952, pp. 227-228, edição disponibilizada na internet, no site da Hemeroteca de Lisboa;
(2) – OLIVEIRA, César, Salazar e a Guerra Civil de Espanha, ed. O Jornal, Lisboa 1987, pp.141-142;
(3) ANSALDO, Juan Antonio, Mémoires d'un Monarchiste Esoagnol , 1931-1952 (tradução de Jean Viet), Mónaco, Éditions du Rocher, 1953. (Trata-se da tradução do seu primeiro livro de memórias publicado originalmente em espanhol em Buenos Aires, pela editora Vasca Ekin).Nesse livro as paginas 50 a 57 são dedicadas à sua malograda viagem a Portugal, falando da sua passagem por Santa Cruz.
(4) Site  Aeropinakes / La máquina de la civilización, dedicado à história da aviação na Guerra Civil de Espanha.Também no site "Registro de aviones comerciales en Espana" - http://www.sbhac.net/Republica/Fuerzas/FARE/Materiales/Registro.htm , onde se pode ler o seguinte registo: "EC-VAA -  DH.80A Puss Moth 2246 G-ACBL EC-W18 EC-VAA Teodoro Martel Olivares > Francisco Moreno 27.01.34 Written off Cascais 20.07.36 Canc 12.11.40 EC-VAV” .
(5)  Diário de Lisboa, edição de 21 de Julho de 1936, edição disponibilizada na internet, no site da Fundação Mário Soares.
(6) É esta a tese escolhida no recentemente editado romance histórico “O Nosso Homem no Estoril” que defende que o avião teria sido sabotado, não em Santa Cruz, mas durante a sua escala em Alverca.
 
Podem ver mais sobre o tema AQUI.
(um resumo deste texto foi publicado no jornal Badaladas no passado dia 22 de Julho de 2016).

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