sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Uma Praça no “centro” de Torres Vedras


Durante séculos, até meados do século XIX, a “Praça do Município” foi um dos largos mais movimentados de Torres Vedras, talvez mesmo o “centro” da vida local.

Ainda na segunda metade do século XIX os anotadores de Madeira Torres confirmavam a sua importância, referindo  ter  “esta villa a sua praça no centro, ainda que pequena, segundo o costume das terras antigas” (1).

 Muitos outros largos existiam na então vila, mas sem a importância daquele, posição que seria apenas disputada pelo Largo em frente à Igreja de S. Pedro.

Essa centralidade só lhe terá sido arrebatado pelo popularmente conhecido “Largo da Graça” em finais do século XIX.

Um dos aspectos que contribuiu para a importância do Largo do Município foi o facto de aí se localizar o edifício municipal.
 
Existindo poder municipal em Torres Vedras documentado desde o século XIII, como se comprova por documentos de 1226, uma escritura de doação ao convento de Penafirme, com referência a cargos municipais (pretor, alvasi e conselheiro), e outro de 1235, primeira referência ao selo do  concelho, confirmado   pelo foral de 1250, é só em 1337 que existe referência documental ao edifício dos Paços do Concelho.

Segundo Ana Maria Rodrigues, na  Idade Média esse largo constituía “ como que o alargamento da Rua de S. Pedro na sua extremidade final, albergando o Paço do Concelho e o Pelourinho” (2).

A partir do século XVI são várias as referências ao edifício municipal

Em 1591 um alvará régio, datado de 4 de Agosto, autorizava o lançamento da finta até 200 mil réis, destinados a restaurar o edifício da câmara e, poucos anos depois, em 1597, em sessão camarária de 1 de Fevereiro, decidiu-se chamar o povo da vila e do termo, representado pelos juízes de vintena, para aprovarem a aplicação de 100 mil réis das sisas para a reconstrução do edifício, “porquãoto as rendas do concelho são tão poucas que não bastão para as ditas obras”. Estas já se tinham iniciado, mas estavam “em perigo de cairem de todo”. Os representantes do “povo” concordaram todos com essa despesa em sessão ocorrida no dia 8.

Em 22 de Fevereiro a camara elege um tal João Pinto para depositário daquela quantia. Cerca de um ano depois, na sessão de 10 de Janeiro de 1598, fica a saber-se que as obras estavam quase acabadas, faltando ainda concertar a casa de audiências.

 Em 1634, por provisão do desembargador do paço desse ano, autorizou-se a aplicação de 95 mil réis do depósito dos bens de raíz para obras na cadeia.

Deste edifício municipal quinhentista não existem vestígio e, a existirem, devem estar a bastante profundidade já que, como refere Júlio Vieira, devido aos terrenos aluvianos em que assenta o centro histórico, foi frequente o “alteamentos das ruas da vila (…) que se estendeu à própria praça do Município” (3).  

Um poço descoberto no início  deste século confirma essa situação, dada a profundidade a que se começaram a recolher objectos nesse poço, existente num pátio a norte do actual edifício municipal, objectos datados  desde o século XV, mas com principal incidência nos finais do século XVI, princípio do XVII, destacando-se várias peças de olaria, muitas intactas, que ao longo do séculos foram lançadas naquele poço.

Mas a existência do edifício municipal não foi o único que caracterizou a vivência do largo.

Nele existiu a Estalagem da albergaria de S. Brás, referida num documento de 1387 .

Também aí se situava a Capela de Santo António , situada frente aos paços do concelho, “nas casas fronteiras da parte sul, pertencentes então a Miguel Ignácio da Silva Lobo” que servia para dar missa aos presos. Servia também de passo da irmandade dos passos.

Aquele proprietário obteve licença para derrubar aquela capela “com a condição de fazer defronte da Misericórdia, à sua custa, um novo Passo (…) como fez, mudando para alli o que estava na dicta capella” em 1809 (actualmente é um dos Passos da Procissão do Senhor dos Passos, localizado frente à Misericórdia).

Numa provisão do cartório da Igreja de S. Pedro, de 21 de Maio de 1647 é referenciada como “capela de Santo António da Graça” (4).

No século XVIII o largo ganhou as características actuais, na sequência do incêndio que destruiu o edifício municipal.
 
Muitos autores referem o ano de 1744 como o da data desse acontecimento, mas um documento recentemente encontrado pelo Dr. Carlos Guardado permite datar esse incêndio  no dia 29 de Setembro de 1745.

O incêndio foi ateado por um preso, para se evadir.

O preso em causa era “filho do serventuário do officio de escrivão dos orphãos, que então era João Franco da Costa”.

Para pagar os estragos e a reconstrução do edifício, procedeu-se ao “sequestro na legítima do incendiário, na mão de seu pae”, processo que ainda decorria em 1776 (5).

Nesse incêndio arderam os arquivos mais antigos do concelho, salvando-se o foral manuelino de 1510, cartas régias assinadas por D. Sebastião e pelo cardeal D. Henrique, e os livros de acordãos posteriores a 1572

Após o incêndio iniciou-se, em Julho de 1752, a reconstrução do edifício, para a qual se arrematou “a obra de pedreiro por 160$ooo réis, e a de carpinteiro por 274$000 réis”, obra terminada em 1776 (6). 

Data dessa obra a colocação de um chafariz no largo, assim descrito por Júlio Vieira:

“Tem uma frontaria de um andar, com quatro pequenas janelas de ressaibo pombalino, únicas nesse género, que existem nesta vila”(7).
 
Possui uma original escultura de um peixe lavrada num único bloco de mármore e, na base, a data de 1775, diferente da data na inscrição em cima.

 Recebia agua de um “ramal subterrâneo do aqueduto do Chafariz dos Canos, do qual se aparta em frente ao mercado do peixe”, nas traseiras da Igreja de S. Pedro (8).

Inclui umai nscrição onde se pode ler:

“Governando El-Rei D. José I, Pae da Pátria, para commodidade da cadeia, e do povo, o corregedor da comarca fez edificar esta fonte à custa do público no ano de 1776”(9) [era então corregedor da comarca Joaquim José Jordão]

É encimado por um curioso “escudo em forma de coração (…) no centro do qual estão duas torres inclinadas semelhantes às antigas insígnias das armas da vila do Chafariz dos canos” (10).
 
Ao longo dos tempos o edifício municipal desempenhou várias funções, para além de sede do poder local.

No primeiro andar era sala de audiências e no segundo andar a sala de sessões da Câmara e cartório (segundo anotadores de Madeira Torres);

Nele funcionou a prisão e o Tribunal de Comarca até 1887, foi depositário do arquivo histórico municipal até aos finais do século XIX, foi escola municipal entre 1890 e 1903 e o primeiro quartel dos bombeiros entre 1903 e 1934.
 
A cadeia já funcionava aí em 1598, data de um acórdão de 29 de Janeiro desse ano, onde se refere a entrega de 24 presos.

No século XIX a cadeia era descrita como tendo  “além da enxovia (…) dois andares, constando o primeiro da chamada  sala livre, e o segundo de dois quartos, que servem de prisão para mulheres, e nesse mesmo andar existia o segredo, que é um pequeno quarto dom pouca claridade”.

A porta de entrada e “habitação para o carcereiro”, ficava do lado da “rua do Espírito Santo”.

“Antigamente” o carcereiro era nomeado pelo alcaide-mor e recebia de ordenado 24:000 réis.No séc. XIX era nomeado pela Câmara, e recebia de ordenado 12$000 réis” mais “carceragens” (11).   

Associado à cadeia, estava o pelourinho que aí esteve até ao principio do século XIX .
 
É referido pela primeira vez em 1430 e tinha “as armas reaes na columna, e em cima dois varões de ferro em cruz com argolas na extremidade dos quatro braços, e estes revirados em fórma de farpa” (12).

Poucos dias depois de ser reparado, foi deitado abaixo, em 13 de Maio de 1852, por ordem do administrador do concelho Maurício José da Silva, por considerar que estorvava a passagem da comitiva da rainha D. Maria II, cuja visita ocorreu a 1 de Junho.

Durante anos não se soube do seu paradeiro, até ser descoberto por Leonel Trindade uma parte do seu fuste.

Esteve exposto no Museu Municipal, no tempo em que este esteve instalado no antigo hospital da Misericórdia.

Por decreto de 11 de Outubro de 1933 o que resta do antigo pelourinho foi classificado imóvel de interesse público e, no princípio do século XXI, por ocasião das obras de remodelação do edifício e do espaço envolvente, o fuste do antigo pelourinho foi recolocado no largo, como memória.
 
Aquele largo foi, ao longo dos tempos, um dos mais movimentados e dinâmicos centros da vivência colectiva torriense.

Na Idade Média, na a zona do largo do Município existiam  “vários artesãos e comerciantes” que  “exerciam o seu mestre e vendiam os seus produtos. Era esta, sem dúvida, a parte mais animada e concorrida”, segundo Ana Maria Rodrigues (13), que encontrou referências a ferreiros, mercadores, correeiros, tecelões e tecedeiras, sapateiros e “até mesmo um estalajadeiro”.
 
Na idade média apenas se refere a “praça” aí existente. Só mais tarde existem referências à “praça de víveres”. Era uma praça diária de hortaliças, frutas e comestíveis.

Ana Maria Rodrigues considera provável que, para além daquela praça diária, já houvesse um mercado semanal na Idade Média, “realizado na Praça, onde os aldeões das redondezas vinham, de vontade própria ou à força, vender os produtos da sua lavoura” (14).

Aos domingos estendia-se pelas ruas laterais.

No mercado dos domingos, no séc.XIX, aí se vendiam “muitos generos de cereaes e outros comestíveis, bem como de loiça, junco, cousas estas que ainda não há muitos anos alli não appareciam”(15).

A primeira referência conhecida a um mercado semanal naquele sítio data de 1736, realizando-se à 3ª feira. A Câmara quis mudá-la para o Largo da Graça, por ser este lugar mais espaçoso, por concessão de 24 de Maio de 1792.

Um outro momento ligado àquele largo era a Quebra do Escudo, solenidade que se realizava por ocasião do falecimento de um monarca.

A cerimónia tinha inicio nos Paços do Concelho, de onde saia um cortejo, acompanhado pelas autoridades, pela “nobreza” e pelo povo.

À frente ía a cavalo  “a pessoa principal”, com uma “bandeira de luto que arrastava pelo chão”, seguido de três vereadores, cada um transportando três escudos com as armas reais.

O cortejo, acompanhado de carpideiras, parava em três lugares públicos onde se procedia à quebra do escudo, que simbolizava o fim do reinado (16).

As principais visitas régias documentadas da história torriense incluíram como um dos principais momentos solenes a passagem da comitiva por esse largo, como aconteceu com a visita de D. Pedro V em 16 de Junho de 1859. O rei D. Pedro V e a rainha Dª Estefânia, eram acompanhados pelo Príncipe de Gales e, depois de se realizar missa na Igreja de S. Pedro a comitiva real deslocou-se aos Paços do Concelho “para tomar uma refeição, que na véspera para lá havia sido mandada do Real Palácio de Mafra, e ahi acharam SS. Mag. Tudo preparado, e em parte por prevenção da Camara Municipal, que lhes offereceo também o refreco d’uma boa cobertura de dôces”.

No ano seguinte, em 1 de Setembro de 1860, vindo de Peniche, o mesmo monarca fez uma curta paragem em Torres Vedras, para “uma breve refeição” nos Paços do Concelho (17).

A última visita de um monarca a Torres Vedras foi ade D.Manuel II, em 21 de Agosto de 1908, por ocasião das Comemorações do Centenário da Batalha do Vimeiro.
 
Depois do almoço no Casino, o rei e a sua comitiva deslocaram-se a pé, pelo meio da multidão que o aclamava, até aos Paços do Concelho, recebendo aqui as “felicitações da câmara municipal numa alocução lida pelo presidente do município” o Cónego António Francisco da Silva. Depois dos discursos oficiais, o “ povo, com consentimento de EL-Rei, invade a Casa da Câmara e passa respeitoso ante o trono, beijando a mão de Sua Majestade, que a todos acolhe com o seu habitual sorriso de bondade”, enquanto que  no largo duas bandas tocavam o hino nacional e os bombeiros faziam a guarda de honra” (18).

Mas aquele largo, pelo seu simbolismo, foi também o palco de várias movimentações populares.

Em 1 de Março 1599 foi o centro de um motim popular, devido à nomeação do guarda-mor.

Um outro motim popular ocorreu em 9 de Fevereiro de 1868 e ficou conhecido por “batalhôa”, sendo um reflexo local da conhecida revolta da “janeirinha” contra o aumento de impostos.

A população enfurecida, parte oriunda das freguesias rurais, invadiu a travessa da Olaria, onde estava instalada a sede da administração do concelho e a repartição da fazenda, queimando os seus arquivos.

De seguida dirigiram-se para os Paços do concelho com o mesmo objectivo.

A revolta acabou junto ao município “pela persuasão com que os membros da  câmara aí presentes” defenderam o arquivo, que assim escapou a ser queimado (19).

As grandes manifestações da República e do Estado Novo tiveram igualmente aquele largo como palco, como aconteceu com a “manifestação de desagravo” pelos “acontecimentos no Estado da Índia Portuguesa” ocorrida em  24 de Julho de 1954, e assim descrita pelo “A Voz”:
 
“Ontem, na Praça do Município, grande multidão, tendo à frente os estandartes de todas as colectividades e organismos locais, a banda de música dos Bombeiros Voluntários e vários dísticos com frases patrióticas concentrou-se, às 16.30, a fim de manifestar o seu veemente protesto pelo afrontoso atentado de Dadrá” (20).

Na manifestação de aclamação do 25 de Abril de 1974 foi mais uma vez um dos lugares escolhidos para o seu percurso e continuou a ser o principal centro de manifestações e acontecimentos políticos enquanto aí esteve sedeada Câmara Municipal, até à inauguração do novo edifício na Av. 5 de Outubro, em 31 de Março de 2006.
 
Apesar de alguma decadência pela retirada dos serviços do município daquele local, tem vindo a recuperar, pouco a pouco, alguma vivência social e, principalmente cultural, continuando a ser um dos espaços mais apreciados pelos torrienses.

(Nota: um resumo deste texto foi publicado na passada edição do jornal “Badaladas” de  25 de Novembro de 2016, na série “Vedrografias”. Por sua vez, a versão que aqui se divulga é um resumo de uma comunicação oral inédita apresentada numa sessão de “Sopa de Pedras”, realizada em 16 de Março de 2012. As notas em baixo são ainda um esboço das anotações correctas, mas que penso que são perceptiveis por todos os que se interessam pela história torriense)

(1)    - anotadores  de Madeira Torres – p.13, parte Histórica, 1862;

(2)    -Ana Maria Rodrigues, p.147-148;

(3)    -Júlio Vieira;

(4)    -Fontes: Júlio Vieira, anotadores MT, Carlos Guardado;

(5)    -anotadores Madeira Torres, p.14, parte Histórica, 1862;

(6)    -anotadores MT, 1862, p.14;

(7)    - Júlio Vieira;

(8)    - Júlio Vieira, p.143;

(9)    -proposta de tradução dos anotadores de MT, p. 15, 1862;

(10)                       - Júlio Vieira, p. 142;

(11)                       - anotadores de MT, p.15, 1862;

(12)                       - anotadores MT, p16, 1862;

(13)                       - Ana Maria Rodrigues, pág.148;

(14)                       –Ana Maria Rodrigues, pág.328;

(15)                       -anotadores da parte económica (manuscrita) de Madeira Torres, 1865;

(16)                       -segundo Júlio Vieira, pp.302-303;

(17)                       - anotadores MT,p.55, 1862;

(18)                       - in O Occidente, nº 1068 de 30 de Agosto de 1908;

(19)                       -Júlio Vieira, pp.304-305;

(20)                       -A Voz de 27 de Julho de 1954.