quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A “CHEIA GRANDE” de 7 de DEZEMBRO DE 1876

(Uma Cheia em Torres Vedras nos anos 40, na "várzea" - Foto Estúdio)

Até há poucos anos, antes das grandes obras de regularização do rio Sizandro, realizadas depois da catástrofe de 1983, a zona baixa de Torres Vedras sofria quase todos os anos, pelo inverno, o incómodo das cheias, umas maiores que outras. Aquela que ficou na memória colectiva por mais tempo foi a chamada “Cheia Grande” de 7 de Dezembro de 1876.

Teve origem na forte precipitação que se registou em todo o país, tendo originado a maior cheia histórica do rio Tejo, com um caudal que só seria ultrapassado em 1997, e que foi a mais devastadora de sempre na região do baixo Tejo (1). Nesse dia também o rio Guadiana registou  a maior cheia da sua história.

Em Torres Vedras o rio Sizandro atingiu um nível de cheia nunca visto anteriormente e que foi um dos maiores até 1983. A situação que então se viveu neste concelho foi referida por  vários autores coevos, como Pinho Leal:

 “(…) Ainda com os temporaes do inverno de 1876, [o rio Sizandro] cresceu tanto, que causou graves prejuïzos nas terras das suas margens . Em 30 [?] de dezembro  d' esse anno, se viu passar pelos sitios da Ponte do Rol , uma cavalgadura morta , arrastando, preso por um pé ao estribo , um homem tamb6m morto.

“As chuvas torrenciaes do inverno de 1876 causaram grandes prejuizos n’esta villa.

“0 Sizandro, que muitas vezes secca completamente na estiagem, cobriu de agua todas as varzeas das suas margens.

“Todas as casas na baixa da villa  foram abandonadas . A gente pobre foi recolhida no hospital , onde lhe deram alimento e agasalho. Muitos habitantes foram salvos às costas por pessoas dedicadas e transportados em carros para sitio seguro. Andaram empregados n’este serviço , sete carros, generosamente emprestados por varios particulares. Os empregados da administração do concelho foram salvos do mesmo modo.

“Houve scenas afflitivas . No largo da egreja de S . Miguel , ha umas barraquinhas que serviam de abrigo a uma pobre gente. Quando lhe accudiram dava-lhe já a agua pelos peitos . Imagine-se a sua afflicção.

“Os prejuizos foram grandes em vinho , azeite, milho , etc . 0 campo da Feira Nova, às portas da Varzea, ficou todo inundado, padecendo immenso os numerosos armazens que alli há . No lagar do sr. Augusto Miranda, a cheia fez grande destroço; a rua da Olaria , onde elle esta estabelecido, parecia um rio de azeite. No armazem do sr. Fivelim, na rua Nova , os cascos e pipas de vinho andaram boiando. A agua n’esta rua chegava à bocca do forno de pão que aIli há .

“Ameaçavam ruina varias casas, entre outras a do sr. João dos Reis , edificada recentemente , onde morava o Sr. Schiappa, conductor das obras publicas ; a do medico, o Sr. dr . Mauricio, etc .

“Estas inundaçoes teem-se repetido com frequencia, todas as vezes que o Sizandro, de humilde ribeiro, se torna um rio furioso, sahindo do seu leito  alagando as suas margens, e causa de grandes destroços e ruinas .

“Em 1876, subiu em alguns pontos a altura de trez metros .

“O lençol d' agua estendia-se pelas varzeas do Arial , Ramalhão, Maxial e Ermigeira até Villa Verde, n’uma extensão de cerca de 15 kilometros ; proximo d’esta ultima povoação morreu afogado um rapaz que andava apascentando gado.

“A importante povoação da Merceana , situada ao sul e nas faldas da serra de S . Matheus, esteve prestes a submergir-se .

“Na estrada que vae de Monte Redondo para a Ermigeira , abateu o muro da tapada da quinta das Lapas, n' uma grande extensao, ficando impedido o transito.

“Na quinta de Ermigeira, propriedade do sr. visconde de Balsemão, foi completamente destruido um importante encanamento de agua na extensao de 500 metros”(2) .

António Batista da Costa, autor de uma monografia manuscrita inédita, “Memórias de Torres Vedras”, escrita no inicio do século XX, também escreveu, de memória, sobre o efeito da cheia de 1876, classificando-a como a “maior cheia que visitou Torres Vedras, desde de tempos conhecidos (…)”, descrevendo os seus efeitos:

“Toda a vila baixa fôra inundada, chegando a agua à Praça do Município, a S. Pedro, ao Largo do Rozario, etc, etc.

“Foi no sitio denominado a Porta da Varzea, onde a agua atingiu a sua maior altura, correndo risco a vida d’algumas famílias que ali moravam, as quaes foram salvas  pelo benemérito cidadão Victorino Pereira da Costa, que então exercia o cargo de Secretário da Administração do Concelho, e outros cujos nomes não me ocorre.

“Muitas creaturas reciosas de que a cheia aumentasse e tomasse outras proporções invadindo as suas habitações, por quanto a noite continuava sob o mesmo aspecto tempestuoso, abandonaram-nas , ouvindo-se ais e gritos  de angustia e de aflição que, ecoando por entre o sussurro murmurado e patético das aguas, causava um certo pavor, ainda aos mais animosos. Essa gente deveras apavorada com o aspecto tenebroso que a cheia ía tomando, pois que até às 2 da madrugada ainda chovia torrencialmente, dirigiu-se ao Hospital [da Misericórdia, junto à Igreja da mesma instituição], afim de ali encontrar guarida, a qual lhe fôra pronto e generosamente dada pela sua ilustre direcção, ficando ali umas três noites”.

O autor refere que, “na actualidade”[por volta de 1915] “esse mal”, das inundações do Sizandro que invadiam a zona baixa da vila, “desapareceu um pouco”, dado que se tinha procedido a sucessivos aterramentos , “atingindo n’alguns pontos a altura de 2 metros, pouco mais ou menos” (3).
(Cheia na "Corredoura" em 1943 - Fotografia de Emílio Costa) 
Aliás, logo nos dias a seguir à trágica cheia, o executivo camarário tomou medidas para atenuar a situação, convidando “o conductor d’obras Publicas Jorge Arthur Scchiappa Monteiro para estudar o meio de evitar que as aguas , que caém dos montes do sudueste desta villa, atravessem esta”, e dirigindo “uma representação ao Governo de Sua Magestade pedindo-lhe a Egreja de S. Miguel e casas juntas, que estão em completa ruina para tudo ser demolido, a fim do material ser aproveitado tanto no atterro da parte mais baixa do citio de S. Miguel como na ponte e outras obras que são de urgente necessidade fazer-se junto ao rio Sizandro, próximo à mesma Egreja” (4).

Dias depois, o mesmo executivo, “considerando o imenso prejuízo que soffre a rua da Olaria, pelo facto de por ella passar em caudaloza torrente a agua que corre das montanhas a sudueste da villa; e reconhecendo a impreterível necessidade do seu imediato desvio, deliberou convidar o Ill.mo Sr. Francisco de Borja, a fim deste cavalheiro declarar se consentia que pella sua propriedade da Graça se effectuasse aquelle desvio d’aguas” tendo esse proprietário anuído “com condição” de ser indemnizado pela câmara  “dos prejuízos que sofresse, o que esta  acceitou”(5).

Fica aqui retratado, em jeito de reportagem, um dos acontecimentos mais marcantes registado na memória colectiva dos habitantes de Torres Vedras.

1 – ver LOUREIRO, João Mimoso, “Rio Tejo –As Grandes Cheias – 1800-2007”, colecção Tágides, ed. ARH do Tejo, Lisboa 2009 (versão disponível na internet);

2 - LEAL, Pinho, “Sizandro” in PORTUGAL ANTIGO E MODERNO vol . IX, 1880 pp . 405 ; 661—662;

3 – COSTA, António Batista, “Memórias de Torres Vedras”, manuscrito inédito, AMTV, [1915?], folhas 15 e 16;

4 – Livro de Actas da Câmara, sessão de 9 de Dezembro de 1876, ff170 e170v;

5  Livro de Actas  da Câmara, sessão de 26 de Dezembro de 1876, f.171 verso.