quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Breve evocação do Padre Joaquim Maria de Sousa



Há trinta anos, no dia 6 de Novembro de 1987, faleceu uma das figuras mais marcante do século XX torriense, o padre Joaquim Maria de Sousa.

O padre Joaquim, como era popularmente conhecido, merece há muito uma biografia aprofundada, nãos sendo o caso desta nossa breve evocação .

Ainda criança conheci o padre Joaquim, não tanto pelas suas funções religiosas, porque eu não era católico praticante, mas como meu professor na disciplina de “Religião e Moral”, durante anos, no Liceu de Torres Vedras.

E logo aí revelou a sua faceta humanista e tolerante, pois, apesar de a disciplina ser obrigatória e a maioria dos alunos serem frequentadores assíduos da Igreja, nunca procurou impor uma visão ortodoxa da disciplina, nem nunca marginalizou os poucos alunos não católicos ou não praticantes.

Além disso, as suas aulas eram um dos poucos espaços de liberdade no seio de uma escola e de um ensino marcados pelo autoritarismo e por métodos pedagógicos que não promoviam a liberdade nem a criatividade.

Foi o padre Joaquim que nos levou à descoberta do espaço envolvente, ocupando grande parte das aulas a mostrar-nos o património histórico e natural do concelho, sempre que o tempo o permitia.

Quando tínhamos de ficar na sala, as aulas nunca eram aborrecidas, mas animadas pelo recurso a pedagogias inovadoras, como o uso dos meios audiovisuais disponíveis, o que representava uma autêntica “revolução” pedagógica para a época.

Devo-lhe o meu interesse pela história e pelo património locais e também pelos audiovisuais, nomeadamente pelo cinema e pela fotografia.

Uma outra faceta sua que conheci foi a de homem do jornalismo, em parte devido   à ligação do meu pai com o jornal “Badaladas”, sendo o padre Joaquim uma das figuras mais respeitadas e apontadas como exemplo de tolerância em conversas de família.

Havia um enorme respeito e amizade entre o padre Joaquim e o meu pai, que era um homem da oposição e que sempre encontrou nas páginas do “Badaladas” espaço para exprimir as suas ideias e a sua criatividade literária.

Por norma, o padre Sousa publicava todos os artigos do meu pai sem os sujeitar à censura, como, a partir de certa altura, como veremos mais abaixo, passou a ser obrigação legal.

Quando, por vezes, o conteúdo, abordava temas sensíveis que podiam provocar problemas ao jornal, o padre Joaquim comunicava ao meu pai, pedindo humildemente desculpa, que “aquele” artigo tinha de ser submetido à comissão de censura. Uns passavam, outros eram publicados com cortes, alguns eram integralmente cortados.

Quando, depois do 25 de Abril, alguns “ferro-em-brasa”, numa assembleia popular onde se decidia a futura administração do concelho, alguém apelou a que se ocupasse o “Badaladas” e se expulsasse o padre Joaquim, o meu pai foi um dos que se levantou em defesa dele, conseguindo que se travasse aquela proposta e prevalecesse o bom senso.

Mas não foi o meu pai o único homem da oposição a encontrar nas páginas do “Badaladas” um espaço de expressão e criatividade, situação que custou alguns dissabores ao padre Joaquim, mas onde revelou toda a sua firmeza na defesa dos valores liberais e de tolerância que o caracterizaram.

A sua relação problemática com o regime então vigente está bem documentada no arquivo da Censura (1)  e no arquivo da PIDE, actualmente disponíveis na Torre do Tombo.


Os problemas com a censura começaram logo por altura da fundação do jornal, cuja primeira edição saiu em Maio de 1948, como boletim mensal da paróquias de Stª Maria e S.Pedro de Torres Vedras, cujas paróquias dirigia desde 1939.

Por uma questão de principio e de mera informação e cortesia, o padre Joaquim enviou uma carta à comissão de censura, datada de 6 de Maio de 1948, informando-a daquela iniciativa .

Essa carta mereceu uma resposta burocrática daqueles serviços, mas em tom de ameaça se não fossem cumpridos certos preceitos legais, e só depois se pronunciaram sobre qualquer autorização para a publicação do “Badaladas”.

De imediato, e de forma frontal, o padre Joaquim informou que já tinha publicado o boletim, porque não precisava de autorização daqueles serviços para o fazer, já que, tratando-se de um boletim paroquial, e de acordo com a Concordata, apenas respondia perante o Bispo, não precisando de ser submetido à censura.

Daí para afrente,  a correspondência entre o jornal e os serviços de censura discutiam se o “Badaladas” era “apenas” um boletim paroquial ou um órgão de informação “regional”, já que, neste último caso, era obrigado a responder perante a censura, interpretando o padre Joaquim que várias informações e reportagens que se publicavam diziam respeito às preocupações sociais e culturais de uma paróquia, enquanto a censura interpretava essa publicações como textos de caracter “regional” que extravasavam o âmbito de um boletim paroquial.

No debate entrou o responsável local pela União Nacional, denunciando, em carta “confidencial”, datada de 5 de Abril de 1954, o jornal “Badaladas”. por não se confinar “nos limites dum jornal exclusivamente religioso”, nem ter um “procedimento correcto, imparcial e justo para com a U.N. e a sua comissão concelhia” (2).

Nesse mesmo ano de 1954 o jornal “Badaladas” passou a ser autorizado a “tratar assuntos de carácter regionalista”, mas, por essa via, passou a ficar “sujeito à censura prévia e ao envio de 2 exemplares de cada nº publicado” (3).

Mas não era apenas a censura ou a União Nacional a desconfiarem do padre Joaquim.

No próprio arquivo da PIDE surgem várias denuncias contra o Badaladas, como por exemplo num relatório datado de 28 de Março de 1960, onde se referia o “periódico regionalista de Torres Vedras “Badaladas”, cujo director, proprietário e editor é o padre Joaquim Maria de Sousa, que também consta não ser afecto à Situação, o que, efectivamente, deixa perceber pela atitudes que tem tomado”, exemplificando com o conteúdo do jornal (4).

Concluindo e resumindo, não pretendemos fazer aqui um análise biográfica do padre Joaquim,  apenas referir, em sua homenagem, algumas das suas facetas talvez menos conhecidas e, em parte, invocando a memória pessoal.

(1)-Ver a obra, abaixo referida, de Carlos Guardado da Silva;
(2)-Carta confidencial de 5/4/1954, in Caixa nº 552 , Badaladas- arquivo da Censura-SNI- Torres do Tombo. Transcrita na referida obra de Carlos Guardado;
(3)-Carta de 24/4/1954, na mesma Caixa nº 552;
(4)- in Relatório Confidencial do Posto do Entroncamento da PIDE, Relatório Semanal nº13/60, de 28 de Março de 1960, no Processo 3194-SR/56, de Armando Pedro Lopes, in Arquivo da Pide, Torres do Tombo.

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Nota: para um aprofundamentos obre a vida do Padre Joaquim Maria de Sousa e sobre a história do Badaladas, recomendamos a consulta das seguintes obras, que serviram igualmente de base para esta evocação :
- “Badaladas – 52 anos de Comunicação Regional”, trabalho  realizado para a disciplina de Relações Públicas e Comunicação Social da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico da Guarda, da autoria de Anabela Saraiva Neto, Cristina Alexandra Barros e Vanessa Sofia Antunes Lourenço, Guarda, 8 de Junho de 2000;,
-MATOS, Venerando Aspra de “Badaladas – um contributo para a identidade Torriense”, in “Badaladas,50 anos depois… - Notícias, Histórias, Factos”, nº 3, 29 de Maios de 1998;
-RIBEIRO, Joaquim (coord,) , “Badaladas,50 anos depois… - Notícias, Histórias, Factos”, conjunto de suplementos integrados nas várias edições do jornal Badaladas ao longo do ano de 1998;
- SANTOS, Andrade, entrevista com o padre Joaquim Maria de Sousa publicada na edição nº 908 do Badaladas, de 19 de Maio de 1973, comemorativa do 25º aniversário do jornal;
- SILVA, Carlos Guardado da, “A Censura e o jornal Badaladas durante o Estado Novo”, suplemento do jornal Badaladas de 25 de Abril de 2008.




sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Torres Vedras e as Cheias de 25 de Novembro de 1967


As Cheias de 1967, que ocorreram na madrugada de 25 para 26 de Novembro desse ano, atingiram a região de Lisboa e fizeram um número de mortos ainda hoje indeterminado, mas que terá rondado os mais de 700.

Oficialmente apenas foram publicamente divulgados cerca de 400 mortos, pois a censura da época quis esconder a verdadeira dimensão da tragédia, já que ela punha a nu as miseráveis condições de vida de uma parte considerável da população portuguesa.

Apesar de Torres Vedras ter sofrido os efeitos do temporal, aqui não atingiu as dimensões trágicas de Lisboa, Loures e do concelhos vizinhos de Arruda dos Vinhos e de Alenquer. O Sobral de Monte Agraço teve a registar, pelo menos, três mortos.




Torres Vedras, muitas vezes assolada por grandes inundações, parece ter escapado desta vez à tragédia, pelo menos a fazer fé na inexistência de qualquer referência na imprensa local a destruições ou mortes no concelho relacionados com essa noite trágica, que muitos consideram a maior tragédia portuguesa depois do terramoto de 1755.

O único contratempo conhecido à vida normal dos habitantes de Torres Vedras foi o facto mencionado no Diário de Lisboa de 26 de Novembro de 1967, informando a interrupção do transporte ferroviário da linha do Oeste até ao Bombarral, devido à queda de várias barreiras que sustentavam as linhas.

Contudo, a imprensa local, neste caso o jornal “Badaladas”, não foi indiferente à tragédia, noticiando uma campanha de solidariedade para com as vítimas da tragédia na sua edição de 2 de Dezembro de 1967, referindo-se em primeira página à “noite trágica de 25 de Novembro de 1967” e ao “luto no coração dos portugueses”, apelando “aos trabalhadores lusitanos” para darem “uma hora de trabalho”.

Logo nessa edição anunciava o “gesto magnifico” do “pessoal da Casa Hipólito”, incluindo “todos os sócios e funcionários superiores” daquela empresa, oferecendo “horas do seu trabalho, a favor das vítimas.

Também nessa edição indicava que a redacção do jornal já tinha recebido dádivas em dinheiro, apelando a ofertas dos “particulares” de apoio às vitimas da tragédia.

Nas edições seguintes de 9 e 23 de Dezembro de 1967 aquele jornal local listava as várias dádivas recebidas em dinheiro e géneros.

Em dinheiro:

Salão Fotográfico – 100$00;
Carlos da Silva Cardoso  - 250$00;
Afonso de Oliveira – 150$00;
Hermano de Sousa D’Alte – 20$00;
Anónimo de Torres Vedras – 300$00;
“Menino” José Manuel Henriques dos Santos – 20$00;
João Alves Simões (de “França”) – 100$00;
José Feliz dos Reis “das Figueiras” – 100$00;
“Menino” João Manuel Cabaço Ferreira – 20$00;
Júlio dos Santos – 100$00;
Pensão Torreense – 200$00;
Casa Damião – 100$00;
Escola Primária Feminina Armando Paulo dos Santos e seus empregados – 100$00;
Maria Luisa da Silva – 50$00;
Inácio José – 20$00;
Anónimo – 50$00;
Viuva Cabral, Ldª e seus empregados – 700$00.

TOTAL: - 2 400$00.

Em géneros:

Junta de Freguesia de S. Pedro de Torres Vedras – 6 cobertores;
Anónimo – “diversas roupas de homem e senhora”;
A.C. – roupa de senhora;
Carlos Jerónimo – “3 pacotes com roupa de criança”;
Anónimo – 2 blusões para homem;
Drª Maria Teresa Graça – “diversa roupa de senhora e um par de sapatos”;
Hermano de Sousa D’Alte – “3 pacotes com roupas e sapatos”;
Dª Maria Soledade Santos – “diversas roupas”;
Dª Augusta de Moura Guedes – “ 2 pacotes com roupa de homem e sapatos”;
Dª Maria Dimas – “1 pacote com roupa de senhora”;
Escola Primária Feminina – “7 pacotes com roupa de criança”;
Manuel Guilherme, de Catefica, - “1 saco de batatas”.

Além desta iniciativa do jornal, o “Badaladas” anunciou outras iniciativas solidárias que tiveram lugar pelo concelho.

Na sua edição e 9 de Dezembro anunciava que a “Física de Torres” tinha transportado para Alenquer e Arruda dos Vinhos “alimentos, roupa, cobertores e divãs” em quatro camionetes “cheiinhas de boa vontade” e de “magnifica solidariedade”, informando que a “recepção continua em aberto no Clube Artístico e Comercial”, registando outros movimentos e de solidariedade em “A Dos Cunhados e muitas outras freguesias do concelho”.

Entre estas o mesmo jornal, na sua edição de 23 de Dezembro, destacava o peditório realizado na freguesia de S. Mamede da ventosa, “em colaboração com a Física”, que consegui recolher:

12 595 quilos de batatas;
1350 de cebolas;
442 de feijão;
60 de grão;
60 de trigo;
20 de banha;
3 de massas;
1 de arroz .

Além disso, foram ainda recolhidos nessa freguesia “uma embalagem de várias mercearias”, duas “résteas de alhos” e 7 650$20 em dinheiro , “além de centenas de peças de vestuário e muitos pares de calçado”, e, “até as crianças das escolas deram a sua colaboração”.

As firmas “Fonseca & Lisboa, Ldª e Ângelo Custódio Rodrigues ficaram responsáveis por recolher donativo da campanha de auxílio às vitimas das inundações aberta pelo “Grémio do Comércio” (“Badaladas” de 9/12/1967).

Por último, destaque-se o agradecimento da Junta Freguesia da Carnota, em Alenquer, e da sua população, uma das mais atingidas pela tragédia, à ajuda prestada pela população vizinha das Carreiras, na freguesia torriense da Carvoeira, publicado na edição do “Badaladas” de 23 de Dezembro.