terça-feira, 6 de novembro de 2018

TORRES VEDRAS E A PNEUMÓNICA DE 1918


O trabalho que aqui apresentamos faz parte de um projecto que se pretende mais vasto e completo, visando analisar o impacto no concelho de Torres Vedras da chamada “Pneumónica” de 1918.

Quando nos lançámos na tarefa de investigar o tema ocorreu-nos a necessidade de consultarmos três fontes importantes para conhecer a situação então vivida neste concelho: os arquivos do antigo Hospital da Misericórdia, a imprensa local e os livros de óbito desse ano.

Apesar da boa vontade demonstrada pelo sr. Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras, facilitando-nos o acesso ao valioso arquivo dessa instituição, infelizmente não encontrámos um único livro de registo do movimento hospitalar durante os meses mais críticos daquele acontecimento. Não desistimos ainda de encontrar esse registo, mas tal não foi possível até ao momento.

Recorremos depois à imprensa local, que costuma ser uma valiosa fonte de informação factual. Contudo, a intensidade da epidemia foi de tal ordem, que o órgão de imprensa que então se editava no concelho, “A Vinha de Torres Vedras”, por motivo de os seus principais redactores terem adoecido com a “influenza”, teve de fechar as suas portas durante quase um mês inteiro, entre 3 e 24 de Outubro, exactamente o período mais crítico da expansão da pneumónica neste concelho. Mesmo assim, à posteriori, encontrámos alguma informação interessante sobre os efeitos da epidemia.

Acabámos por encontrar grande quantidade de informação valiosa sobre o tema nos livros de óbito de 1918, existentes no registo civil de Torres Vedras, aproveitando aqui para agradecer à Dr. Maria Otília Nunes e a todos os funcionários dessa instituição por me acolherem durante várias semanas, ajudando-me e orientando-me na recolha de dados a partir desses documentos.
Optámos assim por apresentarmos esta comunicação tendo por base quase exclusiva os dados recolhidos nessa valiosa fonte documental.

Sem grandes preocupações teóricas, apresentamos aqui um conjunto de dados trabalhados a partir dessas fontes, dando-lhes o enquadramento possível e esperando que esta comunicação possa ser um ponto de partida para uma investigação mais exaustiva e frutuosa que tencionamos levar a efeito nos próximos tempos.

O Início do Flagelo

Em Portugal, a primeira vaga de epidemias registou-se entre Junho e Julho de 1918, entrando rapidamente em declínio e tendo um impacto pequeno. Mas uma segunda vaga iniciou-se nos arredores do Porto em Agosto, disseminando-se lentamente durante os meses seguintes, atingindo o sul e o seu clímax em Outubro, continuando a fazer sentir o seu efeito até Dezembro de 1919.

Em Torres Vedras a doença “começou a fazer-se sentir nos lugares situados ao norte do concelho”, propagando-se “assustadoramente” a todo o concelho, provocando “grande miséria” nos lugares “onde a epidemia tem feito mais estragos”, pelo que se aguardava “a vinda de algum açúcar, cuja falta é enorme”, ao que parece por ser necessário para o fabrico de remédios farmacêuticos. Foi igualmente criado um hospital provisório “para os doentes atacados de epidemia”(1) (1) (in O Século, 10 de Outubro de 1918). 

Neste concelho o período mais crítico decorreu entre 27 de Setembro e 31 de Outubro de 1918, obrigando ao encerramento de estabelecimentos e paralisando momentaneamente a vida política, social e económica de Torres Vedras.

Durante esse período morreram no país 31785 pessoas, sendo a região de Lisboa uma das mais atingidas. Em Torres Vedras morreram, segundo os dados oficiais que não são totalmente coincidentes com aqueles que encontrámos nos livros de óbitos consultados, 861 pessoas (2) (2)(Dados da “pneumónica” no concelho na “Vinha de Torres Vedras” de 21 de Novembro de 1918), numa percentagem de 2,2% da sua população, tomando como referência os censos de 1911.

Em termos nacionais e apenas em relação àquele período, a epidemia matou cerca de 0,6% da população nacional.

Torres Vedras registou assim uma mortalidade quase quatro vezes superior à média nacional.
Segundo os dados oficiais, acima referidos, o impacto da pneumónica não foi o mesmo em todas as freguesias do concelho.

Como é óbvio, a vila foi das mais afectadas pela propagação da doença e pelo seu efeito, situação que se ficou a dever, não só à facilidade de propagação num meio urbano, servido de transportes, com uma actividade comercial assinalável, mas também porque nele estavam centralizados os principais serviços de saúde (hospital, lares, etc.).

Outras três freguesias destacaram-se pela elevada mortalidade, quer em termos numéricos quer em termos percentuais:

-              Ramalhal, com 67 mortos, 3,71%  da sua população;
-              Maxial, com 69 mortos, 2,62% da sua população;
-              Dois Portos, com 82 mortos, 2,08% da sua população.

A freguesia de Ponte do Rol, embora tivesse contado com um reduzido número de óbitos, 26, mercê da sua reduzida base demográfica, obteve uma percentagem elevada, 2%.

Pelo contrário, a freguesia de S. Pedro da Cadeira, apesar de ter registado o maior número de falecimentos a seguir à vila, 91 mortos, registou uma percentagem baixa, devido á sua enorme base demográfica.

As freguesias que no concelho registaram a mais baixa percentagem de mortalidade foram as freguesias da Carvoeira (0,87%), Matacães (0,94%) e Ventosa (1,01%).

Não deixa de ser significativo o facto de três das quatro freguesias rurais onde existiam estações ferroviárias terem sido das mais atingidas (Ramalhal, Maxial – estação do Outeiro da cabeça e Dois Portos).

A situação nestas três freguesias mereceu mesmo a atenção da imprensa nacional. Para o Ramalhal e o Maxial (designado “Ameixial”) a “Obra de Assistência 5 de Dezembro” enviou, em finais de Outubro, açúcar, arroz e medicamentos “para as famílias atacadas pela gripe pneumónica”(3)(3)(-O Século, de 23 de Outubro de 1918). 

Referindo-se à situação em Dois Portos, podia ler-se que aí grassava a epidemia com “terrível intensidade”, morrendo muitos dos seus habitantes “sem assistência médica e à míngua de recursos de toda a natureza, pois que tudo falta, pão, arroz, açúcar, petróleo, medicamentos” (4) (4) (O Século, 30 de Outubro de 1918).
Como iremos ver mais à frente, nem sempre aqueles dados oficiais, divulgados pela imprensa, coincidem com a análise detalhada dos livros de óbitos consultados.

A EVOLUÇÃO DA MORTALIDADE NO CONCELHO DE TORRES VEDRAS EM 1918.

Para melhor perceber a profunda alteração provocada pela pneumónica na estrutura habitual da mortalidade ao longo do ano, e o que essa epidemia representou de extraordinário, vamos começar por analisar um conjunto de quadros, onde se pode observar a evolução da mortalidade ao longo desse ano:

Gráfico 1 - A evolução da mortalidade no concelho de Torres Vedras em 1918

Em situação “normal” os meses de Janeiro, por causa do clima severo de inverno, provocando a morte dos mais idosos, e os meses de Julho e Agosto, cujas temperaturas elevadas causavam muitas vezes a contaminação das águas e alimentos, eram aqueles que registavam maior mortalidade.

Excepcionalmente, neste ano de 1918, foram os meses de Outubro e Novembro a registar uma maior mortalidade, com números que ultrapassaram em muito os dos piores meses em anos normais. Os meses com maior registo de mortalidade não rondariam muito mais do que cem óbitos (99 em Janeiro, 99 em Julho e 107 em Agosto). Nesse ano o mês de Outubro ultrapassou os 8oo óbitos (841) e o de Novembro, embora registando uma diminuição, esteve próximo dos 400 óbitos (399).

Nesse ano, só em Outubro, no concelho de Torres Vedras registou-se uma média de 28 óbitos por dia, quando o normal seria uma média mensal entre um pouco mais de 2 e menos de 4 óbitos diários.

Passemos agora a analisar o segundo gráfico, onde se distribuiu a mortalidade pelo causa da morte:

Gráfico 2  – Mortalidade mensal, segundo as causas (Concelho de Torres Vedras 1918)

Um dos aspectos a salientar é o grande número de óbitos por causas desconhecidas, situação que chega a rondar ou a ultrapassar os 50% dos casos registados. Aconteceu assim nos meses de Janeiro, Fevereiro, Julho, Agosto e Dezembro. Na maior parte dos restantes meses esses casos de “morte desconhecida” rondam sempre cerca de 1/3 dos registos. Significativamente, o maior rigor na causa da morte aconteceu no mês de Outubro, onde as mortes por causas desconhecidas não chegam a 1/4  dos casos.

De salientar ainda o grande aumento, em números absolutos, dos casos de óbitos por causa desconhecida nos dois meses de maior mortalidade causada pela pneumónica, o que parece revelar que muitos desses terão falecido também devido à epidemia, podendo-se prever que o número oficial dos falecidos com a pneumónica tenha sido muito superior ao divulgado.

A mortalidade causada por doenças do aparelho respiratório, antes da chegada da pneumónica, foi mais significativa nos meses de Abril, Maio e, principalmente, em Junho.

Já em Janeiro tinham sido as doenças cerebrais a matar em maior número.

Nos meses de verão, em Julho e em Agosto, a maior parte da mortalidade foi causada por doenças do aparelho digestivo.

Como se sabe, dado a conjuntura desse ano, foram as doenças do aparelho respiratório que dominaram, de forma esmagadora, os óbitos nos meses de Outubro e Novembro.

Vejamos agora, no gráfico de baixo, quais as doenças que os documentos registaram, referentes ao aparelho respiratório:

Gráfico 3  -  Mortalidade por Doenças do Aparelho Respiratório (concelho de Torres Vedras –

Excluindo os meses de Outubro e Novembro, os meses de maior incidência da epidemia, a mortalidade provocada por doenças do aparelho respiratório é pouco significativa, contando-se pelos dedos da mão durante 1/3 do ano (Janeiro, Fevereiro, Junho e Julho). Durante quase metade do ano a tuberculose é a maior causa de mortalidade entre este tipo de casos (Janeiro, Fevereiro, Março, Agosto e Dezembro). A bronco pneumonia foi a maior causa de mortalidade de entre as doenças do aparelho respiratório nos meses de Abril, Maio e Junho, enquanto a gripe foi a que mais matou entre esses casos em Setembro e, obviamente, em Outubro e Novembro.

A MORTALIDADE PROVOCADA PELA PNEUMÓNICA

A pneumónica foi registada pela primeira vez neste concelho a 27 de Setembro e durou até 20 de Novembro. Embora se tenham registado ainda alguns casos esporádicos após esta data, estes registaram-se a partir de então de forma descontinuada, ou seja, entre aquelas duas datas registaram-se todos os dias óbito provocados pela pneumónica, sendo o dia 21 de Novembro o primeiro que não registou nenhum óbito por gripe ou pneumonia.

No gráfico em baixo podemos ver, entre aquelas duas datas,  a evolução diária da mortalidade provocada pela pneumónica:

Gráfico 4 – Evolução Diária da Pneumónica

O dia 11 de Outubro foi o primeiro a registar mais de 10 mortos, começando, a partir dessa data, a expandir-se rapidamente a mortalidade provocada pela influenza, atingindo o seu máximo no dia 25 de Outubro, dia em que se registaram 42 óbitos causados pela epidemia.  A partir desta data começaram a decrescer os casos mortais, sendo o dia 9 de Novembro o último a registar mais de 10 mortos pela “influenza”.

Em baixo podemos ver em pormenor os primeiros casos registados no concelho, nos cinco primeiros dias da espidemia:

Quadro – 1 - IDENTIFICAÇÃO DOS PRIMEIROS CASOS DE PNEUMÓNICA NOS PRIMEIROS CINCO DIAS (Concelho de Torres Vedras-1918).

Não deixa de ser significativo que o primeiro caso se tenha registado no Ramalhal. Poucos dias antes tinha tido lugar, nessa localidade, a 22 e 23 de Setembro, a festa de Nª Snrªda Ajuda, uma das mais concorridas do concelho e que atraiu muitos forasteiros das redondezas. Uma das causas da rápida propagação dessa epidemia terá sido exactamente a aglomeração de muitas pessoas nas  tradicionais festas de verão. Além disso, essa localidade era servida por estação de caminho-de-ferro.

As localidades da freguesia do Maxial foram também as primeiras a conhecer os efeitos mortais da epidemia, talvez pela proximidade em relação ao Ramalhal, ou por outra razão não detectada, quem sabe se relacionada com as vindimas, que atraiam a este concelho mão-de-obra de fora do concelho, sabendo-se que a deslocação de trabalhadores pelo país para os trabalhos agrícolas é outro dos factores geralmente associado com a rápida propagação da epidemia.

Recorde-se ainda que o Ramalhal e o Maxial são duas freguesias localizadas a norte do concelho e que, em Portugal, a pneumónica se expandiu de norte para sul.

Refira-se ainda os casos da Feliteira e de Dois Portos, ambas servidas por estação de caminho-de-ferro que foi um dos meios da rápida propagação da epidemia.
Atente-se agora ao seguinte quadro:

Quadro -  2 - OS PRIMEIROS CASOS DA PNEUMÓNICA NAS FREGUESIAS, NAS SEDES DE FREGUESIA E NALGUNS LUGARES IMPORTANTES (1918)

Destacamos três situações, o caso que já referimos acima de ter sido o Ramalhal a primeira localidade e sede de freguesia a ser atingida pela pneumónica, o primeiro caso registado na então vila e sede de concelho de Torres Vedras, no dia 3 de Outubro e o caso da última freguesia a conhecer as agruras da epidemia ter sido A-Dos-Cunhados, então uma das mais distantes e isoladas da sede concelhia, que só foi atingida em 23 de Outubro.

Não deixa também de ser significativo que a pneumónica só tenha atingido três localidades do litoral, Maceira, Póvoa de Penafirme e Silveira, cerca de um mês depois da doença ter iniciado o seu percurso no concelho.

Contudo, o facto de uma localidade ter sido atingida mais tardiamente pela pneumónica isso não quer dizer que algumas das que estiveram nesta situação não tivessem sido algumas das que foram atingidas pela mortalidade de forma mais dura, como foi o caso da Maceira (que então pertencia à freguesia de A-Dos-Cunhados).

DISTRIBUIÇÃO REGIONAL

A lista  regista os lugares do concelho de Torres Vedras que, tendo mais de 250 habitantes segundo o censo de 1911, registaram 5 ou mais óbitos provocados pela pneumónica, analisando-se o impacto percentual dessa epidemia na base demográfica desses lugares:

Quadro -3 - Distribuição da Pneumónica por Lugares (Concelho de Torres Vedras – 1918)

Assinalámos a vermelho os lugares onde a mortalidade foi mais significativa, acima de 4% da sua população. Neste caso o Furadouro (na freguesia de Dois Portos), foi a localidade onde o efeito da pneumónica foi demograficamente mais demolidor, seguindo-se Campelos e Maceira.

A amarelo indicamos os lugares com uma percentagem de óbitos provocado pela “gripe espanhola” situando-se entre os 3 e os 4% da sua população.

A azul os lugares onde a mortalidade, não chegando aos 3%, ultrapassou a média concelhia de 2%. Está neste caso, por exemplo, a vila de Torres Vedras.

Por último, a verde, assinalámos os lugares onde se registou uma percentagem de mortalidade abaixo da média concelhia.

No mapa de baixo podemos visualizar geograficamente, no espaço do concelho, a distribuição dos lugares onde a pneumónica foi demograficamente mais devastadora:

FIGURA 1 .
Concelho de Torres Vedras (1918) – distribuição Geográfica das localidades onde o efeito demográfico foi mais significativo (interpretação a partir dos dados do Quadro 3, acima).


 No quadro 4, em baixo, é possível observar a evolução da mortalidade provocada pela pneumónica, quinzena a quinzena:

QUADRO 4 – distribuição da mortalidade causada pela pneuónica registada no total de cada freguesia e no concelho nas 6 quinzenas entre 27 de Setembro e 31 de Dezembro de 1918

FREGUESIA

1ª Quinzena
(27/09 a 11/10 de 1918)
2ª Quinzena
(12/10 a 26/10 de1918)
3ª Quinzena
(27/10 a 10/11 de 1918)
4ª, 5ª e 6ª Quinzena (11/11 a 31/12)
TOTAL

A Dos Cunhados
TOTAL
0
22
45
7
74

Carmões
TOTAL
0
12
7
2
21

Carvoeira
TOTAL
1
8
17
6
32

Dois Portos
TOTAL
6
48
22
7
83

Freiria
TOTAL
0
6
19
8
33

Matacães
TOTAL
4
9
4
1
18

Maxial
TOTAL
7
22
5
1
35

Monte Redondo
TOTAL
0
10
5
1
16

Ponte do Rol
TOTAL
0
11
9
2
22

Ramalhal
TOTAL
30
27
1
1
59

Runa
TOTAL
1
13
6
2
22

Stª Maria
TOTAL urbano
5
6
1
1
13

TOTAL
8
37
26
6
77

S.Pedro
TOTAL URBANO
8
38
13
2
61

TOTAL
10
77
46
7
140

S. Pedro da Cadeira
TOTAL
2
36
23
2
63

Turcifal
TOTAL
5
28
25
2
60

Ventosa
TOTAL
0
11
20
8
39

TOTAL
URBANO
13
44
14
3
74

RURAL
61
333
266
60
720

TOTAL
74
377
280
63
794




Lendo esse quadro é possível observar que foi na 2ª quinzena, entre 12 e 26 de Outubro, que a pneumónica foi mais devastadora.
Curiosamente apenas uma freguesia registou maior mortalidade na 1ª quinzena, a do Ramalhal , exactamente aquela onde se iniciou essa epidemia no concelho.
Por sua vez as freguesias de A-Dos-Cunhados, Carvoeira, Freiria e Ventosa foram aquelas que registaram
Maior mortalidade só na terceira quinzena, parecendo revelar uma chegada mais tardia da pneumónica.

A partir da terceira quinzena regista-se uma drástica redução dos casos mortais.

MEDIDAS PARA COMBATER A CRISE EPIDÉMICA.

Na imprensa local consultada é possível detectar algumas das medidas tomadas pelas autoridades para fazer frente à epidemia (5) (5) (Principalmente nas edições de 24 e 31 de Outubro de “A Vinha de Torres Vedras”).

Logo a 2 de Outubro tem lugar uma “Reunião Sanitária” nos Paços do Concelho onde se decide adaptar a hospital provisório um dos edifícios das Termas dos Cucos, bem como requisitar uma barraca-hospital a ser instalada no Ramalhal.

A instalação do Hospital nos Cucos encontrou resistência por parte do proprietário daquele estabelecimento termal, José Gonçalves Dias Neiva, que alegava que o uso do espaço daquelas termas para aquele fim afugentaria os clientes das termas (6) (6)(Livro de Acórdãos da Câmara, sessão de 9 de Outubro de 1918).

Decidiu-se ainda encerrar o mercado mensal e todas as feiras do concelho. O mercado mensal apenas seria reaberto em 17 de Novembro.

Em 9 de Outubro realizou-se uma sessão extraordinária do município, com a presença dos presidentes das Juntas de freguesia do concelho, com o objectivo de aprovar um pedido de empréstimo de 5.000$00, feito junto da Caixa Geral de Depósitos, amortizável em dez anos, com o objectivo de “acudir às despesas com socorros de alimentação, medicamentos e hospitalização das pessoas atacadas pela epidemia” (7) (7)(Livro de Acórdãos da Câmara, sessão de 9 de Outubro de 1918). 

Em finais de Outubro, já com a epidemia em declínio, tinha lugar uma nova reunião para formar uma comissão com o objectivo de angariar donativos para socorrer os órfãos e os epidemiados.

De acordo com os dados recolhidos nos livros de óbitos, elaborámos o quadro 5, onde estão registadas as instituições onde se registaram vitimas.

Aí aparece referido o “Hospital Provisório dos Cucos” e, em vez do acima mencionado Hospital de campanha pedido para o Ramalhal, encontramos referência a um hospital provisório nas proximidades do Maxial.

QUADRO – 5 - Mortos com a pneumónica em Instituições do Concelho de Torres Vedras – 1918 - (Asilos e Hospitais)


A instituição que registou maior mortalidade foi o Asilo para homens situado no antigo Convento do Barro.

Não deixa também de ser significativo que se tenham registado mais casos no Hospital dos Cucos do que no Hospital de Torres Vedras, o da Misericórdia. Tudo parece indicar que muitos dos atingidos com a gripe, a partir de determinada altura, terão sido enviado directamente para o Hospital provisório dos Cucos, provavelmente para evita a contaminação dos outros doentes do hospital principal…mas esta é, por agora, uma mera hipótese.

O IMPACTO

Gráfico 5 - Mortalidade por idade da Pneumónica em Torres Vedras – 1918

Este gráfico confirma uma das características desta epidemia, o facto de ter causado a maior parte da mortalidade entre adultos jovens, principalmente os que tinham idades entre os 25 e os 29 anos, muitos deles em idade de procriarem, daí a preocupação das autoridades para com os órfãos, acima referida.

A mortalidade entre os menores de cinco anos é igualmente significativa, principalmente entre o género feminino.

Como se pode ver pelo gráfico seguinte, se as crianças não foram dos grupos mais atingidos pela pneumónica, um surto de varíola que se registou ao longo de 1919, se bem que menos mortífero do que a “gripe espanhola”, terá dizimado alguns dos sobreviventes, já que incidiu principalmente entre os mais novos.

Quadro 6 – A evolução da Varíola no concelho de Torres Vedras em 1919.

CONCLUSÃO

Ao longo de várias geração, ficou a memória desses tempos trágicos. Pessoalmente ainda me recordo das memórias que ouvia dos meus avós maternos que viveram essa época, e não se cansavam de referir o temor que assolou os habitantes do concelho, com famílias e ruas inteiras assoladas pela epidemia, com estabelecimentos fechados e as pessoas fechadas em casa com receio de serem as próximas vítimas.

O drama daqueles tempos também os senti em parte ao consultar os livros de óbitos do concelho.

Os registos dos meses de Outubro e Novembro desse ano são aterradores. Morria-se às centenas, famílias inteiras, aldeias inteiras.

Pior que tudo eram as idades dos atingidos pela doença, a maior parte os jovens na flor da idade, entre os 15 e os 35 anos.

O terror e a dor deviam ser imensos, com a falta de informação, a ignorância e as condições de vida então existentes, e aquilo que não parava, dias e dias seguidos.

Mesmo com a objectividade do investigador não pude deixar de sentir alívio quando, chegado aos registos de Dezembro, a pneumónica parou de repente. A mortalidade voltou quase ao “normal” ( um mortalidade infantil elevadíssima). Mas então, ao longo de 1919, deparei-me com uma realidade mais silenciosa, um surto de varíola que foi dizimando, lentamente, ao longo de todo o ano, os recém-nascidos, muitos deles órfãos dos mortos da pneumónica.

A morte era então uma presença bem mais avassaladora. A sua “naturalidade” deve ter levado muitos à beira do desespero, outros ao conformismo perante ela.

Em jeito de balanço dos efeitos da epidemia no concelho de Torres Vedras, podia ler-se no jornal local “A Vinha de Torres Vedras”, na sua edição de 14 de Novembro de 1918:

“Acha-se quasi extinta neste concelho, e em geral, a terrivel epidemia que tantas vidas ceifou e tantas crianças deixou na mais desoladora orfandade.
“Agora que esse período doloroso vai desaparecendo, póde-se, abertamente, falar nas consequências desastrosas que a epidemia nos trouxe, flagelo bem mais fatal do que uma guerra.
“(…).
“Os socorros chegaram a faltar em muitos pontos, impossibilitando material de os obter, como de resto aconteceu por todo o paíz.
“Os médicos desta vila,srs. drs. Justino Freire, Júlio Lucas, Afonso Vilela, José de Bastos e J. Bravo foram incansáveis em prodigalizar socorros (…).
“O ilustre sub-delegado de saúde, sr. dr. Justino Freire, foi inexcedível na espinhosa tarefa de dirigir os serviços clínicos do concelho (…).
“(…)
“Não podemos deixar de, neste lugar, prestar a mais sentida homenagem ao malogrado médico de Runa, sr.dr. Avelino Vieira, vítima da sua dedicação pela sciencia [este médico morreu com a pneumónica, contaminado pelos doentes que tratou].
“Cabe aqui dizer que “A Vinha de Torres Vedras”, durante esse período calamitoso, se absteve de noticiar os constantes e numerosos falecimentos para não alarmar o espírito da população (…)e,  aproveitando agora o ensejo de enviar as mais sentidas condolências  a todas as famílias enlutadas, curva-se respeitosamente perante a memória de todos aqueles que desceram á terra-mãe.”

(Este estudo foi publicado com este título in História da Saúde e da Doença, Turres Veteras XIV, coord. de Carlos Guardado Silva,ed. Colibri/CMTV, Maio 2012, pp..187 a 2003.Por razões técnicas não conseguimos incluir aqui o anexo intitulado "Distribuição da mortalidade causada pela pneumónica registada por lugares e  no total de cada freguesia e no concelho nas 6 quinzenas entre 27 de Setembro e 31 de Dezembro de 1918", editado naquele volume).