segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Torres Vedras e a “Monarquia do Norte” (Janeiro/Fevereiro de 1919)


(Reprodução de uma página da Ilustração portuguesa relatando os acontecimentos)

Em 14 de Dezembro de 1918 Sidónio Pais foi assassinado.

Após a sua morte o governo alterou a Constituição, devolvendo ao parlamento a prerrogativa de eleger o Presidente de República.

Num parlamento esmagadoramente dominado pelo partido sidonista - Partido Nacional Republicano - foi eleito para o cargo, a 16 de Dezembro, o almirante Canto e Castro, de conhecida tendência monárquica, sendo remodelado a 23 o governo presidido por Tamagnini Barbosa.

Temendo as crescentes pressões da facção monárquica do "sidonismo”, no sentido de rapidamente ser proclamada a restauração da monarquia, os republicanos desencadearam uma revolta militar a 10 de Janeiro de 1919, que eclodiu em Lisboa, na Covilhã e em Santarém, sendo prontamente dominada nas duas primeiras localidades, enquanto que na última cidade só o foi  no dia 16.

Foi a ocasião esperada pelas Juntas Militares, que se tinham formado em vários pontos do país, ainda em vida de Sidónio Pais, "com o pretexto de defender Portugal da "subversão" e de apoiar o presidente contra os seus inimigos mas, na realidade, com o propósito de proclamar a Monarquia, mais cedo ou mais tarde", para proclamarem a  restauração da Monarquia, em Lisboa e no Porto, no dia 19 de Janeiro.
("Decreto" da "Monarquia do Norte" abolindo a República)

A  rebelião no sul do país, nomeadamente em Lisboa, foi rapidamente dominada pelo "povo urbano" que, "aos milhares, acorreu a defender a "sua" República, apoiando decisivamente o Exército e a Marinha a desalojar os revoltosos do seu reduto entrincheirado na serra de Monsanto".

Contudo no norte do país os revoltosos conseguiram aguentar-se até 13 de Fevereiro, chegando a dominar todo o Minho e Trás-os-Montes (com a excepção da região de Chaves) e parte da Beira, proclamando a Monarquia, que ficou conhecida por "Monarquia do Norte", provocando assim uma curta guerra civil no país.
(nota emitida pela "Monarquia do Norte")

Em Lisboa o governo "sidonista" deu lugar a um governo de coligação entre os partidos republicanos, presidido por José Relvas, que se manteve em funções até 30 de Março e que incluiu pela primeira vez um ministro socialista na pasta do Trabalho, (1).

Em Torres Vedras a "notícia da traição monarquica no Porto ecoou (...) como uma bomba, despertando o sentimento republicano do povo"(2).

Noticiados os acontecimentos na manhã de dia 20, pela chegada dos jornais de Lisboa, "o antigo republicano desta vila, sr. Julio Vieira, ao ter conhecimento da noticia  (...), alvitrou a reunião imediata de todos os republicanos, sem distinção, no Largo da Republica, por ser o momento solemne de se definirem situações, e, logo cercado e apoiado por varios outros republicanos velhos e sinceros que aceitaram com justificado alvoroço o alvitre, dirigiu-se com um grupo, ao comandante militar de Torres Vedras, a pedir autorisação para a reunião, visto achar-se o concelho na região abrangida pelo estado de sitio.

"O comandante militar (...), não só prontamente acedeu a que se efectuasse a aludida reunião publica, como galhardamente se prestou a satisfazer a solicitação que lhe foi feita de soltar imediatamente todos os presos por delito de opinião, visto a republica encontrar-se em perigo(...).
"Acto continuo numerosos mensageiros partiram pelas varias ruas da vila anunciando a todas as pessoas que encontravam, a reunião que se ia efectuar no Largo da Republica, e meia hora depois, apezar de ser dia de descanço semanal, com os estabelecimentos fechados e muita gente fora de Torres, reuniu-se naquele Largo em frente do coreto, um rasoavel numero de republicanos desta vila.

"Subindo a um banco, o sr. Julio Vieira, em breves palavras e no meio do mais fremente entusiasmo republicano de todos os assistentes, salientou a gravidade da hora presente que extremava os campos e a necessidade que se impunha da estreita união de todos os republicanos numa acção comum (...) para salvar a República (...). Os oito anos de luctas anteriores vieram demonstrar que o inimigo comum só poderia triunfar se a união dos republicanos não se traduzisse num facto imediato e sincero (...)".

Foi nessa ocasião lido o telegrama a enviar ao governo onde, manifestando-se ao seu lado, os republicanos torrienses pediam a imediata nomeação de um administrador do concelho "autenticamente republicano caso insista na demissão pedida o actual administrador" .

De seguida "o cortejo (..) encaminhou-se pelo largo abaixo em direcção á rua das Flores, á residencia do sr. Alberto Pedreira, administrador do concelho demissionario, onde o sr. Julio Vieira, á frente do povo, agradeceu em nome da opinião republicana a atitude leal e correcta daquele senhor durante o exercicio do seu espinhoso cargo, saudação aque o sr. Pedreira correspondeu soltando dois vivas à República(...)" (3). Dirigindo-se de seguida para a sede do Grémio Artístico - Comercial, formou-se o auto designado Comité de Salvação (ou de Defesa) da Republica (CDR), nascido  "da fusão de todas as forças republicanas" que, em nome da "UNIÃO! ORDEM! TOLERÂNCIA!" apelou a que "nesta hora de perigo grave para a nossa nacionalidade", em que se extremavam posições, "monárquicos de um lado, republicanos a outro", se acabassem as "divisões de partidos e lutas estereis", se esquecessem agravos, "para  estarem todos unidos, todos por um e um por todos na defeza sacrosanta da Patria que os traidores pretendem afundar num mar de lama e sangue, e da defeza heroica da republica, cuja imagem gloriosa tem de ser colocada carinhosamente no mais alto pedestal (...)"(4).

Na sua acta de constituição, referiam-se como objectivos desse Comité de Defesa da Republica:

"1º- Promover a defeza da Republica neste concelho.
"2º- Manter a ordem e a segurança de pessoas e haveres.
"3º- Assegurar o respeito pelas crenças dos habitantes.
"4º- Cuidar da nomeação e da eleição das corporações administrativas.
"5º- Defender perante os poderes publicos, os interesses politicos e materiais do concelho, de acordo com a comissão administrativa municipal.
"6º- Cuidar da eleição de deputados e senadores do circulo de acordo com comissões analogas de outros concelhos agrupados neste círculo(...)" (5).

Ficaram a dirigir esse "comité" os sete primeiros subscritores, representantes dos vários sectores republicanos.

À cabeça dessa lista figurava Júlio Vieira, a quem, em parte, se ficou a dever essa iniciativa, antecipando-se de algum modo aos acontecimentos, evitando que se voltassem a registar os excessos e perseguições cometidos quando da "Revolução de 14 de Maio" de 1915, dos quais o próprio Júlio Vieira tinha sido vítima. Recorde-se que este tinha sido um dos principais apoiantes locais do "sidonismo".

Manuel Coelho Cláudio Graça era outro dos nomes que figuravam nessa lista, republicano histórico, que tinha sido presidente da  primeira Câmara republicana, um dos líderes locais do Partido Evolucionista.

João Marques Trindade era outro "evolucionista" a fazer parte do grupo dirigente desse comité.

José Anjos da Fonseca , que tinha sido membro da primeira comissão administrativa "sidonista", ex-"evolucionista", surgia agora a representar o Partido Unionista  no CDR.

Artur Gouveia de Almeida, que também tinha feito parte da primeira comissão administrativa "sidonista", Emílio Bandeira, líder local do PRP, e José Nunes de Chaves, eram os representantes "democráticos" no comité.

No dia seguinte, o novo administrador do concelho, alferes engenheiro Metrass de Azevedo, demitiu a ultima comissão administrativa municipal sidonista e nomeava nova comissão municipal, presidida por João Ferreira Guimarães Júnior, do Partido Evolucionista,  "guarda-livros" de Torres Vedras, então com  64 anos .

Dela faziam parte cinco dos membros do CDR, entre os quais Júlio Vieira, que, como vice-presidente, desempenhava pela primeira vez funções municipais.

No dia 21 foi içada, no torreão do castelo a bandeira nacional, "acorrendo a esta cerimonia uma grande multidão e prestando-lhe as honras militares o destacamento de infantaria 23 que aqui se encontra, sob o comando do alferes sr. Seiça Neto, sendo o exercito e a Republica muito aclamados quer nesse acto, quer durante o percurso pelas ruas da vila"(6).

Não se registando neste concelho confrontos militares, formou-se um "batalhão de voluntários" para ir  combater os monárquicos no norte (7).

A 13 de Fevereiro chegou a Torres Vedras, por via telegráfica, a notícia da vitória republicana, tendo sido esta "uma das primeiras terras da provincia a saber a noticia da restauração da Republica no Porto":

"(...) Produziram-se as naturais explosões de alegria, subindo ao ar grande numero de foguetes e morteiros. Depois veio a confirmação e no dia seguinte, tudo certo da victoria da republica (...) as manifestações redobraram de entusiasmo, encerrando-se o comercio, tocando a filarmonica Torreense e realisando-se uma sessão solemne na Camara Municipal, formada na frente dos Paços do concelho a força militar aqui existente, a qual fez a continencia á bandeira, cerimonia tocante e entusiastica, feita no meio de salvas de palmas e de delirantes vivas(...)" (8).

Após a vitória republicana o administrador do concelho convocou "um grupo de republicanos de todas as facções" para uma reunião a realizar a 24 de Fevereiro no edifício daquela instituição.

Nessa reunião foi apresentada uma proposta, aprovada por unanimidade, de acordo com a qual se decidiu:

"(...)1º -Confirmar a deliberação tomada em reunião publica no dia 20 de Janeiro" de "Abater as bandeiras partidarias para assim se poder com mais energia e eficacia defender a republica, enquanto existe um governo de concentração.
"2º-Concorrer para a desligação de todos os funcionarios publicos que tenham manifestamente dado provas de infidelidade ás instituições republicanas, logo que contra esses funcionarios existam provas insofismaveis ou documentadas.
"3º-Impedir abusos que por ventura possam sobreviver, filhos de incompatibilidades pessoais.
"4º-Reclamar junto do "Comitá de Defeza da Republica" desta localidade, todas as medidas que se achem necessarias para a mesma defeza, devendo estas reclamações ser principalmente feitas pelas comissões dirigentes dos diversos partidos politicos.
"5º-Acatar todas as deliberações do Comité ao qual deverão agregar-se, desde já, outros elementos escolhidos por esta assembleia.
"6º-Manifestar-se a asembleia sobre a actual organisação da Comissão Administrativa do Municipio e Administrador do Concelho.
"7º-Todos os republicanos que concordarem e aprovarem esta proposta, tomam o compromisso de honra de faze-la respeitar por todas as forças ao seu alcance, devendo todos assina-la ficando esta arrecadada pelo Comité (...)"(9).

De acordo com essa  proposta aprovou-se a manutenção da comissão administrativa e do administrador do concelho, decidindo-se ainda agregar mais 6 nomes, entre os quais o do administrador do concelho, à direcção do Comité de Defesa da Republica que ficou assim composto por 13 republicanos.

Assinaram o compromisso de honra 31 republicanos.

O Comité de Defesa da Revolução reuniu, pela última vez, na presença das comissões políticas locais dos três partidos republicanos, a 2 de Março, dando por findos os seus trabalhos, dissolvendo-se de seguida "depois de entregar o seu mandato nas mãos das mesmas comissões políticas" (10).

Dias depois era a vez da comissão administrativa municipal pedir a sua demissão, por razões que prefiguravam já o regresso das velhas intrigas políticas que sempre haviam minado os partidos republicanos:

"(...) Tendo estado esta comissão administrativa a gerir os negócios municipais por indicação e acordo tanto de todos os partidos republicanos deste concelho, e tendo sido nomeada nova autoridade administrativa, em desacordo com as comissões politicas municipais, que não foram ouvidas, resolve depôr telegraficamente nas mãos do sr. Governados Civil o seu mandato por coherencia e solidariedade com as mesmas comissões partidarias"(11). A razão dessa crise política local, relacionou-se com o facto de o Governador Civil de Lisboa ter demitido o administrador João Fernandes Caldeira "que estava na administração por acordo de todos os partidos republicanos locais", sem ter consultado as comissões políticas dos três partidos, nomeando um novo administrador "completamente desconhecido deste concelho e representando apenas uma facção política parcial e pessoal, cujos interesses procura servir", ou seja , o Partido Democrático.
"A Vinha.." avisava o novo administrador de que a sua "situação aqui" não se podia prolongar, "visto que não tem o apoio da grande corrente do partido democratico legalista que está ao lado da comissão municipal republicana eleita e representativa do mesmo partido", revelando as crescentes clivagens no seio do PRP .(12).

Apesar de tudo, não se coibiu o novo administrador de nomear nova comissão administrativa, em substituição da demissionária.

Aquela remodelada comissão administrativa manteve-se em funções até 16 de Junho desse ano, data em que tomou posse a câmara eleita  a 25 de Maio de 1919, entrando-se assim em período de normalidade democrática, que, em termos municipais locais, só voltaria a ser interrompida com o 28 de Maio de 1926.

A nível nacional, o governo de José Relvas apresentou a sua demissão em 27 de Março, sendo nomeado um novo governo, chefiado por Domingos Leite Pereira, exclusivamente "democrático", que presidiu às eleições parlamentares de 11 de Maio, que deram ao PRP a maioria absoluta dos deputados, marcando o regresso em força da chamada "República Velha".

A sonhada unidade dos republicanos chegava definitivamente ao fim, iniciando-se agora  um novo período marcado pela entrada em cenas de novos protagonistas e por profundas transformações no panorama político partidário.

----------
 (1) MARQUES, A. H. de Oliveira, Portugal da Monarquia para a República, pp. 721 a 724.
(2) Suplemento ao nº 1:300 de "A Vinha de Torres Vedras", de 21 de Janeiro de 1919.
(3) A Vinha de Torres Vedras, 23 de Janeiro de 1919.
(4) Suplemento ao nº 1:300 de "A Vinha de Torres Vedras", de 21 de Janeiro de 1919.
(5) Vinha de Torres Vedras, 6 de Fevereiro de 1919 .
(6) Suplemento ao nº 1:300 de "A Vinha de Torres Vedras", de 21 de Janeiro de 1919.
(7) A Vinha de Torres Vedras,23 de Janeiro e 6 de Fevereiro de 1919.
(8) A Vinha de Torres Vedras, 20 de Fevereiro de 1919.
(9) A Vinha de Torres Vedras, 27 de Fevereiro de919.
(10) A Vinha de Torres Vedras , 6 de Março de 1919 .
(11)Livro de Actas  da ,  nº 39,(1916-19120), sessão de 5 de Março de 1919,AMTV.
(12) A Vinha de Torres Vedras, 6 de Março de 1919.


Sem comentários: