domingo, 25 de outubro de 2009

Há 140 anos o Governo concedia autorização para instalar o Larmanjat




Passando hoje 140 sobre a concessão ao Duque de Saldanha para a instalação em Portugal do sistema Larmanjata, aproveitamos o pretexto para recordar aqui o primeiro projecto de caminho-de-ferro concretizado nesta região:


A primeira tentativa de introduzir de modernizar os transportes nesta região teve lugar em 1873, com a inauguração da ligação entre Torres Vedras e Lisboa em caminho de ferro monocarril, o chamado "Larmanjat".
Este tipo de transporte foi inventado pelo engenheiro francês Joseph Larmanjat, aparecendo pela primeira vez nas estradas francesas em 1868 e a cujas experiências assistiu o Duque de Saldanha que resolveu pedir o estabelecimento desse sistema de transporte para ligar Lisboa a Torres Vedras, com posterior ligação a Caldas da Rainha e Leiria, pedido autorizado por diploma governamental de 25 de Outubro de 1869, publicado em Diário do Governo de 29 desse mês (CASTRO, António Pais de Sande e, “O Caminho de Ferro Larmanjat”, in Arqueologia e História, 8ª série, volume III, Lisboa 1955, pp.77 a 97). Ironizava Angelina Vidal que trouxe “para Lisboa esta prenda o duque de Saldanha, que, não podendo já fazer bernardas, arranjou assim um meio indirecto para partir cabeças” (VIDAL, Angelina, Lisboa Antiga e Lisboa Moderna, 2ª edição, Vega, Lisboa (1ª ed. em 1900), p.290).
O "Larmanjat" foi visto como um caminho-de-ferro económico "pois circularia pelas estradas, não necessitando, por consequência, de caminho próprio. Tratava-se dum caminho de ferro monocarril, sendo a via constituída por carril central, ladeado por duas passadeiras de madeira, estando todo o conjunto pregado a travessas por cavilhas de ferro. As locomotivas e as carruagens tinham rodas centrais, que rodavam pelo carril, e rodas laterais, que rodavam pelas passadeiras" (CALLIXTO, Vasco, "O Lármanjat e a sua atribulada existência", in Boletim da C.P., nº 145, Janeiro de 1964, pp. 18-20, p.18).
Em 13 de Março de 1870 foi inaugurada em Portugal a primeira linha deste tipo, ligando Lisboa ao Lumiar. A 27 de Fevereiro 1872 a sua exploração foi concedida à inglesa "Companhia lisbonense a vapor por trilhos, limitada", que, aumentando o seu capital, construiu duas novas linhas, uma para Sintra e outra para Torres Vedras, sendo esta ultima inaugurada a 4 de Setembro de 1873.
Esta viagem iniciou-se às 6 horas e 25 minutos, num comboio formado por 4 carruagens de 1ª classe que chegou a Torres Vedras às 10 horas e 45 minutos, “tendo efectuado uma longa paragem em Freixofeira, onde um dos mais abastados lavradores da região ofereceu uma lauta merenda a todos os passageiros” (RODRIGUES, António (com Adão de CARVALHO), “Os primórdios dos Caminhos de Ferro em Portugal e o 1º Caminho de Ferro em Torres Vedras – O “Larmanjat”, in Toitorres Notícias, Janeiro/Fevereiro de 1996, pp.16 a 21, p. 20).
O serviço regular de passageiros nesta linha teve lugar dois dias depois, a 6 de Setembro.
A linha de Torres tinha as seguintes estações: Lisboa (nas portas do Rego (VIDAL, Angelina, ob. cit. p.290), Campo Pequeno, Campo Grande, Lumiar, Nova Sintra, Santo Adrião, Loures, Pinheiro de Loures, Lousa, Venda do Pinheiro, Malveira, Vila Franca do Rosário, Barras, Freixofeira, Turcifal, e Torres Vedras, localizando-se a estação terminal desta vila no pátio por detrás da “taberna Venceslau” .
A viagem de “Lisboa a Torres custava 9 tostões em primeira e 7 em terceira; a havia somente um comboio em cada sentido” (CASTRO, António Pais de Sande e, ob.cit., p.96).
A primeira viagem neste percurso demorou 4 horas e 20 minutos, reduzindo imenso a distância entre Lisboa e Torres Vedras, que em diligência rondava as 6 -7 horas.
O administrador do concelho de Torres Vedras presenciou, menos de 15 dias após a inauguração deste transporte, dois incidentes, o primeiro ocorrido no dia 16 de Setembro de 1873, quando dois machos que puxavam uma carroça com vinho, assustando-se com a passagem do Larmanjat, antes de Vila Franca do Rosário, arrastaram a carroça e o carroceiro por uma ribanceira. Os donos da carroça aguardaram pelo comboio na estação daquela localidade juntamente com muito povo, não deixando o comboio seguir, ameaçando de morte o maquinista e o fogueiro e lançando pedras contra as carruagens.
Valeu-lhes a protecção do referido administrador, conseguindo acalmar os ânimos da multidão enfurecida, prometendo interceder perante a empresa para indemnizar o carroceiro pelos prejuízos.
Chegados a Torres Vedras, o maquinista só aceitou fazer a viagem de regresso a Lisboa, programada para o dia seguinte, se fosse acompanhado pelo administrador, o que este acedeu, “attendendo ao mau effeito que produsiria a falta de um comboio com que toda a gente contava”.
Contudo, nessa viagem iniciada por volta das 6 da manhã do dia 17 de Setembro, um novo incidente marcaria a viagem, quando, passando perto da Quinta do Calvel, o comboio descarrilou, caindo “todas as carruagens em um barranco”, ferindo ligeiramente três passageiros, entre os quais o próprio administrador do concelho, tendo-se temido que esse descarrilamento tivesse sido provocado, devido ao incidente do dia anterior, por sabotagem. Contudo, o mesmo administrador desmentiu tal hipótese, atribuindo este acidente ao facto de o maquinista, pouco experiente, “para ganhar o tempo que tinha perdido com uma subida”, ter levado “o comboio a grande velocidade para uma grande descida aonde há uma curva. A machina, apezar da sua grande velocidade poude descer a curva, a por isso não descarrilou, outro tanto (...) não aconteceu às carruagens que, não podendo operar o mesmo movimento” se precipitaram no aterro. Por essa razão só no dia seguinte se realizou a viagem de regresso a Lisboa, não se registando, como se temia, qualquer incidente à passagem por Villa Franca do Rosário (Correspondência expedida pelo administrador do concelho de Torres Vedras para o Governador Civil de Lisboa (Livros de registos e copiadores), Livro nº 2, sem data [19 de Setembro de 1873], in Arquivo Histórico de Torres Vedras, Caixa 12 (1868 a 1883) ).
Muitas vezes, quando o percurso era mais íngreme, os passageiros tinham de empurrar as carruagens para ajudar o "Larmanjat" a subir a ladeira (IVO, Carlos com José Brito Paulo, "Quando o Comboio chegou a Sintra", in História, nº 135, Dezembro de 1990, pp.68 a 75, p.71).
Essas situações, assim como os sucessivos descarrilamentos e avarias, provocaram o descrédito desse transporte, pelo que os passageiros preferiam continuar a viajar em diligência, que se revelava mais segura e mesmo mais rápida, situação descrita, de forma pitoresca, em notícia evocativa daquele transporte, transcrita por um jornal torriense do princípio do século XX:
“(...) Quem, em Torres, se mettia na diligencia, puxada a tres muares bem lustrosas, guiadas pelo Zé das Meninas, tinha a certeza de que, volvidas cinco horas, se apeava mais ou menos derreado á porta do Neves do Rocio.
“A gente sahia d’aquella caixa muito tropego, com um pé dormente e uma caimbra levada da bréca; mas constava, deliciosamente, a integridade do seu systema osteologico e esta venturosa coisa de se Ter chegado a tempo.
“Quem se mettia no Larmanjat não gosava d’estas vantagens. Em primeiro logar tanto se podia chegar, ao Arco do Cego, quatro horas depois da sahida de Torres, como oito, como doze, como ... não chegar, ao menos de Larmanjat.
“E isto porque uma rampa, uma curva, um modesto calhau o fazia descarrilar. Parte do trajecto, mesmo, era feito sobre a porção do leito da estrada que lhe era defezo. A machina, por alguns metros, riscava no macadam como se fosse um arado em terras de cultura. Depois estacava.
“As portas das carruagens abriam-se e sahiam poeirentos, cabisbaixos, rogando pragas, os corajosos passageiros que se tinham abalançado áquella aventura. O comboio já lançára desenfreadamente o convencionalismo dos tres apitos que, pelas quebradas da serra se repercutiam a pedir auxilio aos trabalhadores do campo. Mas emquanto elles não chegavam?!
“ O machinista, o fogueiro, o revisor poderiam lá nunca, elles sós, pôr aquelle monstro no seu logar! E então os passageiros, maldizendo a sua sorte e o duque de Saldanha, despiam as suas quinzenas, os seus fracks e um por outro a sua sobrecasaca (porque vinham tratar de eleições com o governador civil) e todos se arvoravam em troço de operarios, de assalariados d’essa Companhia que lhes tinha cobrado bilhete, que se esforçava por quebrar-lhes as costellas e tratavam de encarrilar, com a pressa possivel, aquella bugiganga.
“É justo dizer-se que um certo amor proprio, ou antes, uma pungente vergonha lhes insuflava alentos. Era o espectro escarninho, a insolente casquinada da diligencia obsoleta mas triumphante, demais a mais munida de guiseiras alacres e trocistas que os esforçava n’aquelle mister de retirar comboios manhosos da via publica. Ella, a diligencia, ia passar, guiada pelo Zé das Meninas, o mão-de-redea eximio, que se haveria de rir a bom rir depois de ter sahido do mesmo ponto, seis horas depois, de mais a mais bem jantado na Venda do Pinheiro ... E depois de os vêr, a elles – os do Larmanjat- a trabalharem como servos de gleba, elle continuaria em seu caminho a dizer facecias aos passageiros da imperial e a lançar chuvas ás lavadeiras de Lousa (...)” (ARANTES, Hemiterio, “O Larmanjat”, transcrito do “Popular” em A Vinha de Torres Vedras, nº 667, 1 de Novembro de 1906)..
Também uma escritora coeva, Angelina Vidal, afirmava, àcerca do Larmanjat, que era raro “o dia em que não acontecia ficar gente ou gado atropelado. Os veículos saíam da linha, o povo queixava-se por essas aldeias fora e a empresa não lucrava vintém. O certo é que os carros das carreiras antigas, um momento abandonados pelo público amador das novidades, voltaram a ser utilizados pelos passageiros que desejavam chegar inteirinhos ao seu destino” (VIDAL, Angelina, ob. cit., p.291).
Com tantas contrariedades a Companhia responsável pela exploração deste transporte acabou por abrir falência, terminando a sua curta vida em 1877.
Em Torres Vedras foi logo em 1875 que cessou o serviço daquele meio de transporte, como se comprova pela seguinte passagem da acta camarária da sessão extraordinária de 24 de Maio de 1875:
"N'esta sessão deliberou a Camara derigir uma representação ao Governo de Sua Majestade, pedindo-lhe promptas e urgentes providencias para que sejam reparados os estragos causados na estrada de Lisboa a esta vila, pelo caminho de ferro Larmanjat, mandando-se levantar os carris e longrinas "(vigas sobre as quais se pregam as travessas dos carris)"que nella assentam e que, visto haver cessado o serviço d'aquelle caminho, de nada servem agora se não para embaraçarem e difficultarem o transito, e para apressarem a completa ruina da mesma estrada(...)" (Actas da Câmara Municipal de Torres Vedras, Livro nº31,sessão extraordinária de 24 de Maio de 1875, f. 88 verso).
A verdadeira "revolução dos transportes" do século XIX em Torres Vedras deu-se apenas em 1886, com o caminho-de-ferro de duplo carril.

(Garvuras Eduardo Frutuoso Gaio, Apontamentos da História dos Caminhos de Ferro em Portugal.; mapaVAZ, Fonseca, Caminho de Ferro em Portugal- História e Técnica de exploração, Lisboa s/d)

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