quinta-feira, 6 de abril de 2017

Os primeiros tempos da fotografia em Torres Vedras


Pelo menos desde 1839, as elites portuguesas conheciam a existência da fotografia, na sua fase embrionária do daguerreotipo, ano em que essa invenção foi divulgada nas páginas da revista “Panorama”, sendo também nessa revista que foi divulgada uma reprodução litográfica do primeiro daguerreotipo português, em 20 de Março de 1841, uma gravura da autoria de José Maria Baptista Coelho, que reproduzia a frente oriental do Palácio da Ajuda, a partir de uma foto tirada por Francisco Mocening.

Em 1849 realiza-se em Portugal a primeira exposição publica com fotografias, na Exposição Industrial de Lisboa.

Nessa exposição participou o dono de uma quinta do concelho de Torres Vedras, a quinta do Calvel, o conde Farrobo (1).

É assim provável que entre as elites cultas do concelho de Torres Vedras, na década de 40 do século XIX, já fosse conhecida a nova invenção e até que alguns deles já a tivessem experimentado.

Contudo, a primeira vez que surge uma referência à fotografia, num documento escrito neste concelho, foi só em 1877.

De facto, numa resposta dada pelo administrador do concelho de Torres Vedras a um pedido do Governador Civil de Lisboa sobre a hipótese de se fotografar “um estabelecimento de beneficência” existente no concelho, digno de ser apresentado na Exposição Universal de Paris, o administrador negou a existência de qualquer estabelecimento no concelho “digno d’elles ou de algumas das suas partes, se tirarem vistas photographicas (…) a não ser o importantíssimo estabelecimento” dos Inválidos Militares de Runa, “digno de ser apresentado na Exposição de Paris”. Desconhecemos se esse projecto se veio a efectuar(2).

O primeiro a fotografar Torres Vedras e torrienses, sobre quem temos notícias, foi Giulio Zanetta, , “hábil photographo italiano” cuja  presença foi noticiada na edição do “Jornal de Torres Vedras” de 21 de Maio de 1885, onde se informava que aquele fotógrafo tencionava “demorar-se alguns mezes n’esta villa” e cujo “atelier” estava a ser construído no Largo de S. Tiago, no “nº 22, local muito apropriado, central e bem disposto”.

Acrescentava a mesma notícia que aquele “artista” trabalhava “com machinas perfeitíssimas e por preços muito moderados”, sendo “belíssimas algumas photographias que temos visto da sua grande colecção”(3).

Poucas semanas depois o mesmo periódico noticiava a grande “affluencia de visitantes aos atelier photographico do sr. Giulio Zanetta”, elogiando os “trabalhos do inteligente artista feitos segundo as regras mais modernas da photographia”, indicando como outros atractivos e garantias para uma visita àquele atelier, a grande “variedade de aparelhos, um elegante gabinete onde está o atelier, modicidade dos preços, cortesia e delicadeza do operador” (4).

Em Outubro desse ano ficamos a saber que Giulio Zanetta terá andado em digressão por outros locais, anunciando-se, após o seu regresso de Peniche, e a reabertura do seu atelier no largo de S.Tiago(5).

Em anuncio publicado na imprensa local referem-se os vários tipos trabalhos realizados naquele atelier: “retratos de todos os formatos, vistas, grupos, instantâneos de creanças, famílias e corporações, tendo para isso” um aparelho “especial extra rápido Dallmeyer” (6).

Prevendo uma estadia inicial de alguns meses em Torres Vedras, Zanetta acabou por ficar quase três anos.

Em Março de 1887  a imprensa local anunciou a retirada do fotógrafo, para regressar à sua casa em Itália (7), em Meina-Lago Maggiore (8), situação que só se concretizará em Julho (9).

Giulio Zanetta não deixou rasto, nem se conhece nenhum trabalho que lhe possa ser atribuído. Se procurarmos na internet encontramos algumas vezes aquele nome em Itália, mas de pessoas diferentes, existindo mesmo um fotógrafo com aquele nome, mas ainda vivo, com obra publicada na Fototeca do Parque Nacional “Grande Paradiso”, em Itália.

Mas o espaço deixado vago por Zanetta foi rapidamente preenchido. Em Setembro de 1887 a imprensa local anuncia que dois fotógrafos, “os srs. Martinez e Figueiredo, acabam de estabelecer-se n’esta villa, na mesma casa em que o sr. Giulio Zanetta produziu durante três anos muitos e variados trabalhos da sua especialidade”, referindo que “os recém chegados são dois artistas hábeis, dignos de protecção” (10).

Em anuncio publicado nessa mesma edição, menciona-se o custo dos retratos, desde 1$200  a 4$500 réis a dúzia.

Para outro jornal local, a presença daqueles fotógrafos  era “uma bella occasião para os nossos leitores e leitoras se photographarem, ficando com exemplares tão nítidos como os dos melhores photographos de Lisboa, e por preços muito mais resumidos” (11).

Uma das novidades anunciadas foi o facto daqueles fotógrafos darem “licções aos amadores que desejem conhecer os segredos da fotografia” (12), o que comprova a crescente popularização da fotografia , possível pela sua rápida evolução técnica, registada na década de 80.

Ao longo de notícias publicadas em edições seguintes, durante vários anos, é referido apenas um daqueles nomes, Martinez Pozzal, não havendo mais nenhuma referência ao seu sócio Figueiredo.

A partir do seu atelier no Largo de Santiago, Martinez Pozzal deslocou-se às localidades vizinhas, principalmente ao longo de 1889, onde obteve várias fotografias. Vila Franca de Xira, Arruda dos Vinhos e Ericeira foram três dos lugares visitados, regressando a esta última localidade em 1895, segundo a imprensa local da época.

Na obra “Ericeira – Uma Fotobiografia” (13) são publicadas três fotografias daquela localidade atribuídas a Martinez Pozzal, pertencentes ao Arquivo da Santa Casa da Misericórdia da Ericeira, mas datadas à mão de 1880. Desconhecemos se aquela datação será rigorosa ou indica a década. Se a data for correcta, quer dizer que, antes de se estabelecer em Torres Vedras, já Pozzal tinha fotografado a Ericeira. Se aquela data indicar a década, então podemos estar perante o resultado de trabalhos que Pozzal fez naquelas digressões aos concelhos vizinhos a partir de Torres Vedras.

Deve-se a Pozzal a edição, em 1890,  daquele que pode ser considerado o primeiro postal de Torres Vedras, uma fotografia da imagem do senhor dos Passos, “servindo-se para isso de um aparelho próprio para fazer reproduções nos interiores dos edifícios”, da qual efectou reproduções para serem vendidas em Lisboa e no seu atelier em Torres Vedras. (14).

Contudo, “oficialmente”, a primeira colecção de postais ilustrados de Torres Vedras foi a editada pela Papelaria Cabral em Agosto de 1899 (15).
 
Em 1894 Pozzal muda o seu atelier para a rua Dias Neiva, onde vendia “vistas” de Torres Vedras e dos Cucos (16).

Não conhecemos fotografias de Pozzal referentes a Torres Vedras, a não ser uma fotografia e uma gravura, a partir de outra fotografia, referentes ao estabelecimento das águas medicinais da Fonte Nova, a primeira fazendo parte do espólio fotográfico do sr. Adão de Carvalho (17) e a segunda, que aqui reproduzimos, publicada na edição da revista Occidente onde se publica uma reportagem sobre a inauguração, em 22 de Maio de 1895, daquele estabelecimento termal (18).

 
É provável que um conjunto de gravuras publicadas nas páginas dos jornais Gazeta de Torres Vedras em 1894 e em “A Semana” nesse ano e no ano seguinte, tivessem como base fotografias de Pozzal.

A mais antiga dessas gravuras, uma vista de Torres a partir do Castelo, foi publicada nas páginas do “Gazeta…” em 7 de Junho de 1894 (19).
 
Há a hipótese de um pequeno conjunto de fotografias, cujos negativos em vidro foram salvos pelo sr. Adão de Carvalho de serem destruídas, possam ter origem no estúdio de Pozzal, já que o local da obra de onde foram resgatadas, na década de 80 do século passado, se situava no Largo de Santiago (os restantes negativos foram colocados no misturador de cimento…).


Tal como aconteceu com Zanetta, pouco mais sabemos sobre Pozzal, não sendo nenhum deles citado na obra de António Sena.

A “vida” de Martinez Pozzal foi magistralmente ficcionada, com base nas informações recolhidas na imprensa local, por António Augusto Sales na sua obra “Os Guardadores do Tempo” (20).

Há, contudo, um Pozal, (só com um “z”), Fernando Martinez Pozal, referenciado no site do Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, que viveu entre 1899 e 1971, e que, lendo a sua biografia, deduzimos que seja filho do “nosso” Pozzal.

Pela biografia deste encontramos algumas coincidências. O nascimento de Fernando acontece quando o “pai” deixou Torres Vedras, em 1899.

Segundo a biografia citada, o Pozzal pai tinha no principio do século XX um estúdio de fotografia na Caçada da Estrela, nº 99, tendo abandonado a fotografia para abrir uma casa de penhores, regressando à fotografia em 1919, com a firma Pozal & Garcia, dona da Casa de Fotografia Vénus, na rua D. Pedro V. Foi aqui que Fernando aprendeu com o pai a fotografia. Nada mais sabemos sobre o “pai” Pozal, nem a data do seu  falecimento (21).

Pozzall apareceu referenciado em Torres Vedras pela última vez em 1899, embora já se estivesse estabelecido em Lisboa, ligado à “Photographia União”, pensamos que a nova designação do atelier que tinha fundado anos antes na rua Dias Neiva, espaço inaugurado (ou reinaugurado?) em 20 de Agosto de 1899 (22) e que aparece referido até 1903, embora desde 1900 seja indicado aquele atelier como propriedade de José Maria de Miranda e surgindo, em 1902, a designação de João Henriques dos Santos como sócio gerente.
 
Em 1902 aquele atelier edita um álbum fotográfico de grande qualidade, “álbum de Torres Vedras”, de 16 páginas e com 11 fotografias de Torres Vedras da autoria de J. Novaes (23), fotografias que seriam reproduzidas várias vezes em edições de postais durante o primeiro quartel do século XX.


Pensamos que o autor das fotografias, J. Novaes, é o fotógrafo Júlio Novaes (1867-1925) o mais novo dos irmãos Novais, dois dos quais, António e Eduardo, também foram fotógrafos conhecidos da viragem do século.

Julio Novais iniciou-se na fotografia aos 12 anos, em 1879 e em 1897 inaugurou em Lisboa o estúdio Photographia Novaes, que recebia “encomendas da província” e, em 1909, abre outro estúdio com o nosso conhecido Pozal, em Lisboa, o “J.Novaes  & Pozal”, na Rua do Sol, ao Rato (24).

Há inda referência a um outro atelier estabelecido em Torres Vedras no final do século XIX, de vida efémera, “Photographia Neves”, referenciado em Março de 1899, situado no “bairro Tertuliano”(25) , mas que encerrou as suas portas poucos meses depois de abrir, em 18 de Setembro desse ano (26).

Ao longo do século XX a fotografia populariza-se e surgem vários estúdios de fotografia e vários fotógrafos em Torres Vedras, alguns de renome.

Mas essa é outra parte da história que não cabe agora aqui, neste pequeno esboço sobre as origem da fotografia em Torres Vedras, um pequeno resumo de um trabalho de investigação que, espero, possa um dia vir a ser concluído e publicado.

1.       – Informações recolhidas em SENA, António, História da Imagem Fotográfica em Portugal – 1839-1997, Porto Editora, Porto 1998;

2.       – Livro nº 5 de Correspondência do Administrador do Concelho para o Governo Civil,  registo nº 181 de 14 de Julho de 1877 (Arquivo Municipal de T.Vedras);

3.       - “Jornal de Torres Vedras” de 21 de Maios de 1885;

4.       – “Jornal de Torres Vedras” de  25 de Junho de 1885;

5.       – “Jornal de Torres Vedras” de 1 de Outubro de 1885;

6.       – “A Semana” de 31 de Março de 1887;

7.       – “A Semana” de 31 de Março de 1887;

8.       – “A Semana” de 21 de Julho de 1887;

9.       – “Voz de Torres Vedras” de 23 de Julho de 1887;

10.   – “Voz de Torres Vedras” de 10 de Setembro de 1887;

11.   – “A Semana” de 8 de Setembro de 1887;

12.   – “A Semana” de 27 de Outubro de 1887;

13.   –COSTA, José Constantino, Ericeira – Uma Fotobiografia, Mar de Letras editora, Ericeira 2013;

14.   – “A Semana” de 6 de Março de 1890;

15.   -–“Folha de Torres Vedras” de 27 de Agosto de 1899;

16.   – “A Semana” de 22 de Julho de 1894 ;

17.   – CARVALHO, Adão de , “Recordando…Águas Medicinais da Fonte Nova”, in “Badaladas” de 19 de Maio de 1995;

18.   – “O Occidente”, de 5 de Junho de 1895, reportagem de Caetano Alberto, pp.124 a 126, com gravura na pág. 124;

19.   – “Gazeta de Torres Vedras” de 7 de Junho de 1894;

20.   – SALES, António Augusto, Os Guardadores do Tempo, ed. Da CMTV, Janeiro de 2007, pp.27 a 29;

21.   –site do Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, a partir da biografia de Fernando Martinez Pozal escrita por Clara Anacleto;

22.   – “Folha de Torres Vedras” de 20 de Agosto de 1899;

23.   – “Folha de Torres Vedras” de 26 de Junho de 1902;

24.   – site do Centro Português de Fotografia;

25.   –“Folha de Torres Vedras” de  26 de Março de 1899;

26.   - “Folha de Torres Vedras” de 10 de Setembro de 1899;

(Uma versão mais resumida deste texto foi publicada na secção “Vedrografias” do Jornal “Badaladas” de 31 de Março de 2017).

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