(Caricatura de João Franco por Manuel Bordalo Pinheiro (filho de Rafael)).
O
ano de 1907 ficou marcado pela chamada “ditadura franquista” que, extremando a
vida política portuguesa, acabaria por conduzir ao regicídio de 1 de Fevereiro
de 1908 e iniciaria a decadência definitiva do regime monárquico.
João
Franco, o responsável por essa situação, foi um dos mais carismáticos políticos
do final da monarquia. Tendo iniciado a sua carreira política no Partido
Regenerador, em 1901 entrou em cisão com esse partido e fundou o Partido
Regenerador Liberal, situando-se à esquerda dos partidos tradicionais e fazendo
do combate ao rotativismo e à corrupção o seu objectivo.
Em 1906 foi chamado a formar governo em
coligação com o Partido Progressista e, se inicialmente se aproximou dos
republicanos, a partir daí guinou à direita.~
Em
2 de Maio de 1907 afastou os progressistas e formou um novo governo.
No
mês anterior, em 12 de Abril, João Franco, com o apoio de D. Carlos, assinou um
decreto que mandou encerrar o Parlamento, facto que teve lugar em 10 de Maio,
sem marcar novas eleições.
Esse
dia 10 de Maio de 1907 é considerado o dia da entrada do governo em “ditadura”,
período que ficou conhecido como “ditadura franquista”.
A
perseguição à imprensa, principalmente aquela que criticava a acção do governo
e denunciava a “questão dos adiantamentos” da casa real, com censura, prisões e
julgamentos, contribuiu para desacreditar o rei e, na agitação social que se
seguiu, os republicanos ganham cada vez mais protagonismo.
A
ditadura terminará com o regicídio de 1908.
(Torres Vedras em 1907, numa reportagem publicada no "Ilustração Portuguesa" em 30 de Setembro desse ano).
Em
Torres Vedras esse período foi vivido intensamente, tendo contribuído para a
afirmação local dos republicanos.
Um
dos jornais que então se publicavam em Torres Vedras era o “Folha de Torres
Vedras”. fundado em 1899. A partir de 1905 esse jornal aproximou-se dos
defensores locais do partido de João Franco, acolhendo igualmente as teses e a
colaboração dos primeiros republicanos do concelho, destacando-se entre estes Júlio
Vieira.
O
alvo preferido dos ataques políticos nas páginas da "Folha..." foi
Manuel Francisco Marques, líder dos “progressistas” de Torres Vedras, que
dominavam o poder local, e que dirigia o outro semanário que se publicava na
vila, "A Vinha de Torres Vedras".
A
saída daquele director-proprietário contribuiu para reforçar a influência dos
regeneradores-liberais nas páginas da "Folha...", pois a sua parte no
jornal foi comprada por um conjunto de personalidades maioritariamente
enfeudadas a esse partido. O próprio Júlio Vieira afirmará ter sido ele que se
opôs a que se transformasse "este jornal, que tem o nosso nome no seu
cabeçalho, em orgão do partido franquista d'esta villa"(2).
Em
1906, muito pela crescente influência de Julio Vieira na redacção do jornal,
este ganhou um teor cada vez mais propagandista do ideal republicano.
É
após as eleições parlamentares de Abril de 1906 que, em editorial, a
"Folha.." assume uma aproximação crescente face aos republicanos.
Quando,
em Maio de 1906, João Franco chegou ao
governo do país, o tom era ainda de
alguma indecisão política, dando grande destaque nas suas páginas à posse do
novo administrador do concelho, o "franquista" "nosso
amigo" Mário Galrão (3).
Ao
mesmo tempo, continuava a divulgar, com crescente frequência, as actividades
dos republicanos locais e a visita de "ilustres deputados" e
"eminentes tribunos" republicanos, como aconteceu em duas ocasiões
com António José de Almeida (4).
Desde
a demissão de Silvério Sequeira da direcção do jornal, apenas o nome de Júlio
Vieira figurava no cabeçalho da "Folha.." como "editor e administrador",
passando o jornal a designar-se, a
partir de 5 de Novembro de 1905, como "Agricola, Independente e Defensor
dos Interesses Locais".
A
23 de Setembro de 1906 Júlio Vieira passa a ser designado por
"redactor-gerente" .
É
então que, acompanhando o afastamento parlamentar entre “franquistas” e
“republicanos”, que até aí tinham coincidindo em muitas criticas ao rotativismo
e à corrupção da monarquia, se começa a evidenciar uma crescente ruptura no
seio do jornal entre Júlio Vieira e os restantes proprietários do periódico,
que atinge o clímax quando um deles, Manuel Joaquim Monteiro, em carta datada
de 14 de Dezembro de 1906 , na "qualidade de co-proprietário da Folha de
Torres Vedras ", pediu a publicação na coluna "Secção Livre", "d'um artigo que o Povo de Aveiro ultimamente publicou” da autoria de Homem
Cristo, "um dos principaes caudilhos do partido republicano (...) e por
tanto insuspeito", que tinha tido "a coragem de apontar muitos erros
praticados ultimamente pelos republicanos", e no qual se via, "que
uma parte do partido republicano, em vez de discutir os actos do governo e os
seus projectos, tem feito apenas declamações para armar á popularidade; quando
é certo que o actual governo [de João Franco] é o mais liberal e honesto que ha
muitos annos temos tido (...)".
Respondendo
na mesma edição a essa carta, num artigo não assinado, mas da autoria de Júlio
Vieira, este assume a recusa em publicar esse artigo e aproveita para desabafar
sobre as crescentes pressões a que o sujeitava o grupo maioritário de
proprietários, conotados com o " franquismo (5).
Reflexo
das crescentes tensões políticas no seio do jornal, em 11 de Janeiro de 1907,
que reflectiam o que se passava a nível nacional, sete dos proprietários do
jornal abandonam aquele projecto, cedendo todos os seus direitos, por venda, a
Cândido Vieira, que no dia seguinte os cede ao seu filho, Júlio Vieira.
Quatro
de entre eles, Mário Galrão, Álvaro Galrão, João A. Moura Borges e o padre Luís
dos Santos, estavam identificados com o partido regenerador-liberal.
Tal
"cisão" foi anunciada na edição de 13 de Janeiro, surgindo o jornal,
em 20 desse mês, com novo formato e, pela primeira vez como director, Júlio Vieira .
Libertando-se da tendência "franquista" e assumindo-se o seu
director como líder local do Partido Republicano pouco tempo depois, a
"Folha de Torres Vedras" tornou-se, partir de então, porta voz dos
republicanos, confundindo-se com a própria história do movimento republicano
neste concelho.
A mudança no
“Folha…” acompanha a crescente afirmação do Partido Republicano, não só em
termos nacionais, onde surge como a força política mais forte no combate ao
“franquismo”, mas também a nível local.
Tal demarcação não
terá sido estranha à própria evolução política nacional, marcada pela questão
dos "adiantamentos" à família real, que provocou distúrbios no
parlamento e acentuou as divergências entre o governo "franquista" e
os parlamentares republicanos que, em Novembro de 1906, viram ser suspensos,
por um mês, os seus deputados Afonso Costa e Alexandre Braga, este ultimo com
ligações a Torres Vedras.
Ao longo de todo
ano de 1907 as críticas ao "franquismo" subiram de tom e, em 20 de
Outubro, a "Folha..." denunciava o adiamento das eleições municipais
e a nomeação de uma comissão administrativa para dirigir os destinos
camarários, comparando essa decisão ditatorial com a atitude de D. Miguel
quando dissolveu a câmara dos deputados.
1907 marcou assim
o arranque local da organização republicana culminando, em 16 de Dezembro, com
o anuncio de que uma comissão republicana da vila estava a organizar o partido
republicano em Torres Vedras.
O grupo
organizador da comissão municipal teve a sua primeira reunião em 31 de Janeiro
de 1907, uma data que talvez não tenha sido casual, pelo seu simbolismo para a
causa republicana, tendo-se na ocasião decidido organizar um comício republicano que teve lugar em 21 de
Abril de 1907 e que foi a primeira grande acção pública dos republicanos em
Torres Vedras, "uma manifestação imponente de sympathia ao ideal republicano
que já hoje vae deixando de ser olhado com desconfiança pelo camponez ignaro e
que está já sendo abraçado por todos aquelles que, um pouco mais instruido, vae
comprehendendo os seus legitimos e racionaes principios, compativeis com a
epocha de liberdade e de conquistas que a humanidade vae atravessando e que
nenhuma mão tyranica poderá fazer affrouxar na sua carreira vertiginosa.
"A ansiedade de
ouvir o soberbo tribuno da democracia que se chama António José d'Almeida e
todos os outros oradores, arrastaram ao local do comício, um vastissimo
recinto, junto á Avenida Casal Ribeiro, alguns milhares de pessoas".
Segundo a mesma notícia, vieram pessoas de Mafra, Sobral de Monte Agraço e
Arruda dos Vinhos (6).
Nessa mesma data
foi eleita a primeira Comissão Municipal Republicana de Torres Vedras,
presidida por Júlio Vieira, formalizando-se deste modo a intervenção do Partido
Republicano na política local.
Organizada a
Comissão Municipal e alargando a sua influência às freguesias do concelho, logo
se iniciou uma intensa campanha de propaganda, quer através da realização de
conferências, quer passando a dominar abertamente o "Folha de Torres
Vedras”.
Com o regicídio e o afastamento de João Franco, os republicanos iniciam
um combate sem tréguas ao regime monárquico, que se manifesta logo, semanas
depois do regicídio, quando os republicanos aproveitam o Carnaval desse ano,
1908, para ridicularizarem as leites
monárquicas locais, em especial os “franquistas”:
"(...) Na
terça-feira (...) appareceu a parodia as aguas da villa .
"Varios
cantoneiros, apontadores e engenheiros, procediam á medição das ruas para a
canalisação das aguas pelas quaes os torreenses estão esperando ha uns bons
vinte annos"(critica indirecta ao domínio local dos partidos
rotativistas).
"(...)Pelas 4
horas da tarde apparecia no largo da Graça outro grupo político representando o
franquismo local, precedido dos symbolos messianicos e liberticidas.
"Abria o
cortejo uma figura de clown, despertando a attenção com uma campainha e logo
atraz seguiam em linha um palhaço com um pendão onde se lia: Thalassa! ...
Thalassa ! ... Ao mar ! ... Ao mar !...” (frase grega retirada da obra “A
retirada dos dez mil” de Xenofontes e que foi utilizada pela colónia portuguesa
do Brasil numa entusiástica mensagem de apoio á ditadura de João Franco e que
durante décadas serviu aos republicanos para invectivar os seus inimigos,
apelidados de “talassas”) ; uma figura de carrasco, com cabeça de leão,
conduzindo uma forca, no cimo da qual se lia -Timor - e na mão segurando uma
lista dos conjurados” (referência ao lugar de deportação apontado na lei de 13
de Fevereiro); uma figura conduzindo um cortiço com este distico :Vespeiro.
"Logo a
seguir marchavam as vespas, isto é, as figuras franquistas locaes, em numero de
sete, se não nos enganamos."(referência implícita ao número de vereadores
da comissão administrativa franquista)(7).
Assim,o ano de
1907, com o descrédito da monarquia por via do apoio do monarca à ditadura de
João Franco, foi um ano crucial para a firmação de um elite local que viria a
dominar o concelho depois da implantação da Republica em 1910.
-----
(1)
Folha de Torres Vedras, 29 de
Outubro de1905.
(2)
Folha de Torres Vedras, 16 de Dezembro de1906.
(3)Folha
de Torres Vedras, 1 de Julho de1906.
(4)Folha
de Torres Vedras, 26 Agosto de1906 e 9 de Setembro de1906.
(5)
Folha de Torres Vedras, 16 de Dezembro de1906.
(6)Folha
de Torres Vedras, 28 de Abril de1907.
(7)
Folha de Torres Vedras, 8 de Março de1908.
(para
a contextualização histórica, nacional e local, baseamo-nos nas obras “1907- No
Advento da República”, ed. Biblioteca Nacional, 2007, e “Republicanos de Torres
Vedras”, ed. Colibri/CMTV, 2003).
(Uma
versão resumida deste texto foi publicada no jornal Badaladas, em 28 de Maio de
2017, na secção “Vedrografias” )
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