quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A “Batalhôa” de 9 de Fevereiro de 1868 em Torres Vedras, reflexo local da “Janeirinha”

(Foto antiga dos Paços do Concelho, um dos "palcos" da "Batalhôa") 
Na sua conhecida monografia sobre Torres Vedras, Júlio Vieira refere a rebelião popular de 9 de Fevereiro de 1868, que ficou popularmente conhecida por “batalhôa” ou “queima dos papéis”. 
Provavelmente baseado na memória oral, recolhida entre muito torriense que, à data da publicação daquela obra, em 1926, ainda tinham memória daquele acontecimento, aquele autor torriense faz uma descrição bastante pormenorizada daquela revolta, donde respigamos algumas passagens: 
“Oito dias antes roubaram o mapa da repartição da fazenda” então situada na Rua da Olaria, no edifício onde funcionou a escola secundária, mapa esse que “foi queimado próximo à Fonte Nova”. 
Mas foi no dia 9 de Fevereiro que se registou o grande levantamento popular, quando “uma massa compacta de populares em número não inferior a 3:000 assumou à ponte da Mentira e deu entrada nesta vila. Eram povos de Aldeia Grande, Machial e Ermigeira, das freguezias do Ramalhal e de Monte Redondo, que se dirigiram sem resistência, e de surpresa, à repartição de fazenda, onde, em grande borborinho, arrancaram o arquivo e o lançaram à rua, emquanto os cá de baixo deitavam fogo à papelada. A administração do concelho, que era no mesmo edifício, sofreu egual sorte” (1). 
A versão do administrador do concelho, registada no livro de registos de correspondência com o governo civil, completa, divergindo nalguns pontos, a descrição de Júlio Vieira: 
Pelas “oito horas da manhã” foi “invadida esta villa por mais de mil homens quazé todos das Freguezias da Dos Cunhados, Ramalhal, Maxial, Monte Redondo, e Matacães, deste concelho, e alguns do Vimeiro, Concelho da Lourinhã, vindo pela maior parte armados com armas de fogo, chuços, baionetas, foices roçadouras, e páos forrados. A força armada que tinha sido requisitada pelo Administrador (…) foi por elle mandada collocar à entrada da villa do lado do Norte”, mas não conseguiu deter a marcha dos populares, devido à grande superioridade numérica destes. (2). 
Retomando a descrição de Julio Vieira, da administração do concelho “dirigiram-se os amotinados para o Largo da Graça, onde existia a recebedoria nas lojas do prédio da família Fivelim”. 
O “recebedor” de então, Francisco Tavares de Medeiros, ainda conseguiu esconder no sótão do edifício parte do arquivo. 
Esse, que vivia por cima da casa da repartição, vendo esta arrombada, pediu da janela “que não fizessem barulho porque tinha a esposa de cama, doente. Ou porque o pedido surtisse efeito, ou porque, de facto, poucos fossem os papéis ali existentes, o certo é que a multidão limitou-se a atirar para a rua com maços de papéis que não chegaram a ser queimados”. 
De seguida a população dirigiu-se à Câmara Municipal, mas aqui, “pondo-se em frente dos paços do concelho algumas individualidades de destaque desta vila, conseguiram pela persuasão e pela exortação, o que a força não poude fazer”, argumentando com pedidos de calma e para que “não levassem por diante tal intuito, pelo prejuízo que a todos acarretava a perda do arquivo da camara”. 
Na descrição do Administrador do Concelho, o assalto à Câmara foi travado porque ele mandou colocar “à porta da Câmara a força armada”. 
Depois disto, e correndo a notícia de que estavam a chegar forças militares vindas de Mafra, a população dispersou. 
Aqueles acontecimentos foram um reflexo local tardio da conhecida revolta da “janeirinha”  (3) e terá tido lugar naquela data, talvez porque o dia 9 de Fevereiro coincidia com o dia da eleição da Câmara Municipal, que não se pôde efectuar, acabando por ter lugar em 8 de Março (4). 
O motivo que os revoltosos deram ao Administrador do Concelho quando chegaram ao edifício dessa administração foi querer queimar os registos das contribuições de 1867 que eles consideravam “exageradamente augmentados, e que não as podião pagar, mas que estavam prontos a paga los segundo o rendimento collectavel por anteriores matrizes”. 
Na carta ao Governador Civil o mesmo administrador do concelho, reforçava “que o motivo que levou aquellas gentes a praticar taes factos d’um perfeito vandalismo foi o exagerado aumento do rendimento collectavel nas últimas matrizes que fez augmentar o contingente distribuído a este concelho de 9:445:800 réis que foi no ano de 1866, a 16:633:270 e a serem collectados, por isso, quasi todos no dobro do que  tinhão sido no anno anterior, e muitos no triplo”. 
Segundo o mesmo relatório “não houveram victimas, nem ferimentos, nem roubos”, sendo os estragos registados os documentos queimado e algum mobiliário das repartições assaltadas. 
Também a Câmara referia alguns dos motivos da revolta: 
“Se houve os lamentáveis acontecimentos do dia 9 de Fevereiro nesta villa – sabe-se que o principal motivo foi a elevação do rendimento collectável nas Matrizes prediais; é verdade porem que se excederam gritando contra todos os tributos, e foram a caza do recorrente pedir-lhe os papéis do cacifo, e queimaram os que a mulher lhes deitara da janella. Nada porem destruio relativamente à renda que havia sido arrematada no Domingo anterior 2 de Fevereiro. O povo gritava contra as medidas cacifadas, ou cerceadas, e não contra o imposto dos cinco réis; -porque é o taberneiro vendedor quem a deve pagar, e não o povo. (…)”(5). 
No dia 10 de Fevereiro, pelas 4 horas da tarde “chegou a esta Villa a força de Cavalaria, e pelas cinco e meia a de Caçadores” (6). 
A presença dessas força militares e a sua acção em perseguição dos lideres conhecidos daquele movimento popular, nas freguesias rurais a norte da vila, deu origem a um conjunto de 15 artigos, intitulados “Quinze dias em Torres Vedras”, publicados no jornal “O Diário Popular” entre 2 de Julho e  19 de Agosto de 1868 da autoria de um dos militares para aqui destacado, A. Osório de Vasconcelos (7). 
As actas da Câmara de Torres Vedras, nos meses que se seguiram àquela rebelião, reflectem igualmente algumas das consequências desse acontecimento. 
Na sessão de 2 de Março registava-se a “impossibilidade em que se achava [a Câmara] de poder occorrer às suas despesas ordinárias e extraordinárias no exercício do anno económico corrente, por terem falhado a maior parte dos seus rendimentos, como do imposto municipal de cinco reis em cannada de vinho, e dez  reis em kilograma de carne, que se não tem podido arrematar por falta do lançador e pela queima que sofreu de documentos de cobrança no dia nove de Fevereiro último” (8). 
Não deixa de ser curioso e o impacto psicológico daqueles acontecimentos evidente quando em sessão de 18 de Março se refere um requerimento enviado à Câmara por Augusto Rafael de Miranda, “arrematador do imposto municipal de cinco reis em canada de vinho”, pedindo a rescisão das suas funções, argumentando que “os tarbeneiros, depois dos acontecimentos que tiveram lugar nesta villa no dia 9 de Fevereiro ultimo, não teem querido fazer avenças pelo vinho que vendem por não ser permittido, como era costume vender-se o vinho por medida cacifada” (9). 
Em 26 de Março esse assunto volta a ser abordado, já que, apesar de indeferido, o pedido de demissão daquele “arrematante do imposto municipal cacifo”, um imposto que cobrava 5 réis por cada 145 cantilitros de vinho, Rafael de Miranda insistia na rescisão, vindo à Câmara pessoalmente para justificar a sua decisão, acabando por confessar que “a maior de todas as razões era o medo com que ficou do povo desde o fatal dia 9 de Fevereiro ultimo, em que lhe foi a casa procural-o, como rendeiro do cacifo pedindo os papéis que tinha desta renda para os queimar, e pos isso era o seu maior desejo livrar-se deste contracto”. 
A Câmara recusou aquela demissão, argumentando com o facto de os taberneiros já terem manifestado à Câmara a decisão de pagarem aquele imposto, mostrando que então já se registava alguma normalidade (10). 
O administrador do concelho anunciou, no documento já referido, a abertura de um inquérito, mas, segundo Júlio Vieira “nunca se apuraram responsabilidades” (11). 
A “Batalhôa”, reflexo local da “janeirinha”, foi um dos acontecimentos que mais marcou a memória colectiva dos habitantes de Torres Vedras, até pela destruição que provocou na valiosa documentação da administração do concelho e na documentação fiscal da repartição da fazenda. 
(1)    VIEIRA, Júlio, Torres Vedras Antiga e Moderna, T. Vedras 1926, pp.224 e 225;
(2)   Livro de Registos da Correspondência do Administrador do Concelho de Torres Vedras para o Governador Civil de Lisboa, de 1868, registo nº 3  de 11 de Fevereiro;
(3)  para contextualizar  esse acontecimento histórico aconselha-se a leitura de A “Janeirinha” e o Partido Reformista – Da revolução de Janeiro de 1868 ao Pacto da Granja, da autoria de Carlos Guimarães da Cunha, ed. Colibri, Lisboa 2003;
(4)  de acordo com o ofício do Governador Civil citado e transcrito na sessão camarária de 2 de Março de 1868, Livro nº 30 das Actas da Câmara (1864-1873), f.106 e 106 verso;
(5)    Livro nº 30…, sessão de 26 de Março de 1868;
(6)   Livro de Correspondência do Administrador do Concelho para o Governador Civil, registo nº 2 de 10 de Fevereiro de 1868;
(7) este “folhetim”, cujo conhecimento de cópias me foram oferecidas pelo investigador Rui Prudêncio, merecia uma edição anotada;
(8)     Livro nº 30 de Actas Câmara (1864-1893),f.108;
(9)     Livro nº 30…, sessão de 18 de Março,f 113 e 113v;
(10)   Livro nº 30…, sessão de 26 de Março de 1868.
(11)   VIEIRA, Júlio, Ob.Cit.;.   
(Um resumo deste texto foi publicado na secção "Vedrografias" do Jornal "Badaladas", em 16 de Fevereiro de 2018) .
                  

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