quarta-feira, 7 de março de 2018

A Vida Torriense nos Caracteres da Imprensa Local (finais do Século XIX) (1885-1890) - Março de 1888.


Março 1888

“Foram-se !

“Andorinhas da arte, não poderam suportar as neves de Fevereiro e o frio da indiferença publica.

“Embrulhados nos mantos reaes de paninho bordado a lantejoulas, pozeram-se ao caminho com uma bagagem de dramas e uma perspectiva de miséria, seguindo a estrella dos bohemios, para irem levar ao seio das multidões a malícia da Nitouche e o surdo ranger de dentes de D. Afonso IV” (1).

Com estas palavras metafóricas começava a crónica de Carlos Velloso nas páginas de “A Semana”, nesse distante mês de Março de 1888, referindo-se à retirada de Torres Vedras da companhia teatral que aqui havia permanecido alguns meses.

Carlos Velloso, curioso cronista, de estilo muito peculiar na Torres Vedras oitocentista, prosseguia essa crónica com estas palavras:

“A brazeira voltou ao centro da sala, a chinela forrada, com bordados, tem na meia escuridão, por baixo da secretária, uns brandos fulgores de missangas: o “Diário de Notícias” retomou o seu império, e na leitura dos versos do sr. Luís d’ Araujo faz-se tranquilla a digestão das torradas, livre já da peste dos maus hábitos, lançada a despeza com theatro na coluna dos ganhos e perdas.

“O Convento da Graça vae perdendo o feitio pavoroso da Bastilha, já não se lhe suppõe  dentro um Minotauro que devora tostões e – quem poderia crer ? – já olhos humanos contemplam, sem estremecer, as taboas desunidas, meio enterradas, que eram ponte oscillante e perigosa n’aquelle patíbulo da riqueza (…)” (2).

O citado Convento da Graça, que serviu de sombra às noites de teatro, era o centro de outras realidades da época, como se pode ler noutra notícia publicada no mesmo jornal:

“Vae ser provisoriamente mudado o hospício dos expostos, n’esta villa, da antiga casa que se vendeu, para um edifício mais amplo e confortável, até que se realizem as obras no convento da Graça, onde ficará definitivamente instalado” (3).

O mês de Março de 1888 foi mês de temporais que se fizeram sentir principalmente no estado em que deixaram os velhos caminhos que ligavam Torres Vedras aos concelhos vizinhos e as ruas da villa:

 “A pouca àgua que caiu nos últimos dias da semana passada bastou para tornar intransitáveis os caminhos, convertendo-se em verdadeiros lamaçaes, onde os carros se enterram até aos eixos (…).

“Só quem anda na estrada conhece os dannos que provém de similhante desmazelo, demais na presente ocasião, quando se procede às tiradas do vinho.

“Aqui mesmo na villa temos um espelho à nossa frente.

“O caminho da estação, aquelle decantado caminho a que tantas vezes nos temos referido, está n’um estado tal, que bem demonstra a forma porque se zomba do interesse publico, mangando com as povoações.

“Aquilo não é um caminho, principalmente apenas caem algumas gotas de chuva: - é um mar de lama, um precipício, incapaz de servir para o trânsito geral.

“Apenas ali se chega logo se adivinha o serviço de uma via férrea, que tem os aterros especados com madeira, onde os wagons, velhos e ameaçando desconjuntar-se, andam à aposta, no que se refere a velocidade, com os carros dos almocreves!

“Realmente, estamos abaixo das povoações mais insignificantes, pelo abandono a que somos votados (4)”.

Então, como hoje, a linha do Oeste parecia condenada a prestar um mau serviço aos seus utentes (embora fosse então um dos mais prometedores e modernos meios de transporte), situação que não impedia a companhia de obter lucros significativos para a época:

“Reunindo as receitas d’este novo caminho de ferro, desde 1 de Janeiro até 12 do corrente [ mês de Março] , vemos que o seu produto monta a 25:901$010, pertencendo à Linha de Cintra a Torres 18:424$010 e à de Torres a Leiria 7:477$000.

“Com tão boas receitas bem podia a companhia mandar esphaltar o recinto da estação d’esta villa, ou mac- adamisar os caminhos que conduzem não só a esta, mas a outra estações da linha, os quaes estão intransitáveis, a ponto de terem já causado alguns desastres (5).

Mas nem tudo era criticável em relação àquela companhia, pois, entretanto, anunciava-se o ajardinamento da estação do caminho de ferro de Torres Vedras “no espaço que medeia entre o edifício e as arrecadações de material circulante”.

A recente inauguração do caminho de ferro não impediu o surgimento de um novo estabelecimento de trens de aluguer, propriedade de Januário Vieira, “habil cocheiro muito conhecido em todo o Concelho de Torres” (6).

O saneamento básico era outra das preocupações da época:

“A mudança da estação faz-nos ocorrer a necessidade de abastecer de água a nossa villa, evitando as dificuldades dos annos anteriores.

“A água que temos não é boa, nem sufficiente, todos o sabem (…).

“E já agora lembramos à Câmara a conveniência, de proceder ao saneamento da povoação, fazendo com que se observem os preceitos salutares da hygiene.

“Actualamente, a nossa villa, com as montureiras, os canos rotos, as ruas sujas, não peca por aceiada, nem attraente  (…)” (7).

Um dos melhoramentos então recentemente inaugurado, a iluminação a gaz, atravessava algumas dificuldades, que acabaram por levar ao regresso `da velha iluminação a petróleo, só abandonada em 1912 com a inauguração da iluminação eléctica:

“Desde terça-feira [6 de Março] que a villa é iluminada a petróleo. A naphta foi por algum tempo posta de parte “ (8).

Outro melhoramento então anunciado para o concelho foi a instalação de uma linha telefónica particular, ainda não inaugurada por razões burocráticas:

“Está prompta há mais de um mez o telefone que deverá funcionar entre S. Domingos de Carmões e o Sobral de Mont’ Agraço, sem que ainda chegasse ordem official para a sua abertura ao público, que ainda não poude utilizar este melhoramento com que foi contemplado” (9).

Uma última nota sobre este mês de Março de 1888 para referir que se anunciava para o primeiro dia de Abril o encerramento dominical dos estabelecimento comerciais, a partir das 4 horas da tarde, iniciativa que muito contribui para alargar os tempos livres dos torrienses, alterando muitos hábitos dos seus habitantes no final do século XIX.

( a partir de texto por nós publicado no jornal Badaladas em 25 de Março de 1988).

  • (1)    – in A Semana de 1 de Março de 1888;
  • (2)    – idem, idem;
  • (3)    –idem, idem;
  • (4)    – in Voz de Torres Vedras de 3 de Março de 1888;
  • (5)    –idem. Idem;
  • (6)    – in Voz de Torres Vedras de 24 de Março de 1888;
  • (7)    – idem, idem;
  • (8)    – in Voz de Torres Vedras de 10 de Março de 1888;
  • (9)    – in A Semana de 22 de Março de 1888.

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