A propósito das obras de requalificação a decorrer no velho Largo da Graça, aqui recordamos um pouco da história desse espaço.
Na sua origem
esteve a parte norte da antiga cerca do Convento da Graça.
Neste local
existiu a antiga Gafaria de Stº André,
já documentada em 1309 e, segundo Madeira Torres rodeada de uma “larga cêrca” (1).
Quando a
gafaria foi doada aos eremitas de Stº Agostinho em 1544, que para aí se mudaram
em 30 de Novembro desse ano, retirando-se do antigo convento na “Várzea
Grande”, herdaram também a referida “cerca”.
A primeira pedra do novo convento foi colocada
em 7 de Setembro de 1578, e a obra foi concluída por volta de 1580 (2).
“O edifício estava rodeado a norte, poente e
sul pela sua cerca, onde os agostinhos tinham uma vinha, muitas árvores de
fruto, oliveiras, parreiras, uma horta e um poço” (3).
A parte norte dessa “cerca”, devido à
proximidade em relação ao centro da vila, foi muitas vezes palco de
desentendimentos entre a Câmara e os eremitas.
Em 1736 a
Câmara tentou mudar o mercado semanal, que se realizava às 3ªs feiras, para o Largo
da Graça, mas sem êxito, por oposição dos frades.
Anos depois,
em 1794, a Câmara contactou os frades para se colocar um chafariz a construir
pelo município no “Largo do Convento”. “O chafariz de facto se construiu em
forma de repuxo, mas nunca serviu, porque nunca se encanou a água “, tendo
sido, “não há muitos annos[por volta de 1863]” demolido por inútil, e estorvar
o tráfego do mercado que ali se faz mensalmente” (4).
Em 1815 a Câmara voltou a designar o Largo da Graça para a realização do mercado mensal, por acórdão de 20 de Maio, “mandando também fazer barracas encostadas ao muro da Cerca do Convento e intimar todos os logistas para ali pôrem as suas lojas (…). As barracas chegaram com efeito a fazer-se mas n’ellas apenas os tendeiros, ou vendilhões avulsos, hião por suas fazendas, e por fim foram mandados demolir por sentença, que os padres da Graça lançarão contra a Câmara, por serem feitas em terreno seu, e sem licença sua” (5).
Segundo Paula Silva os frades ainda chegaram a
aceitar esse pedido da Câmara, mas na condição de as barracas se sustentarem
por si “para evitar que o seu peso e balanço destruíssem o muro”, ao mesmo
tempo que exigiram “que ficasse registado que aquele terreno lhes pertencia”.
Ao que parece a Câmara não cumpriu o contrato e em 1824 os frades instauraram
um processo contra a Câmara (6).
Em 20 de Março
de 1832 a cerca foi arrendada por um período de 3 anos a Francisco de Assis e
Silva e, depois da extinção do Convento em 1834, foi novamente arrendada em 21
de Julho deste ano, sendo finalmente vendida em hasta pública, juntamente com o
Convento, em 1842, a Inácio Ferreira Campelo, pela quantia de 4 433$500
réis (7).
Por deliberação de 1 de Abril de 1857, decidiu a Câmara expropriar a área norte da antiga cerca do Convento da Graça, com a finalidade de alargar o espaço do mercado mensal, decidindo que esse lugar servisse também de passeio público, plantando para isso algumas árvores nesse local.
Em 1863 a Câmara deliberou e efectuou vários
melhoramentos no Largo da Graça “na parte que faz frente para aquella rua [da
Olaria] , e a parte que encabeça com a estrada de Lisboa, e dá entrada para a
entrada para a Igreja da mesma Graça, aterrando-se de novo a parte maior do
Largo, que não hé calçado, e ficando assim mais livres de lama, que por ocasião
do Mercado ali se formava, e tirando-lhe as agoas por meio de grandes valetas
calçadas do lado do Nascente e Poente” (8).
Em 1885 foi nesse largo instalado
um coreto para a primeira actuação pública da “Fanfarra 24 de Julho” que
ocorreu em 24 de Junho de 1885.Este coreto nada teve a haver com aquele que é
mais conhecido, inaugurado em 1892 e que existiu até meados da década de 40 do
século passado (9).
O Convento, tendo passado por várias mãos após a sua extinção, veio a
ser comparado pela Câmara em 21 de Abril de 1887, instalando aí vários serviços
e repartições públicas, tendo incluído na compra parte da cerca, onde está o
jardim actual (10), embora, como vimos anteriormente, parte dela já tivesse
sido expropriada em 1857. O resto da cerca, a que rodeava o Convento a sul e a
poente, conhecida por “cerca do Doutor Freire”, foi comprada em 16 de junho de 1926
pela Câmara aos herdeiros do Dr. Justino Freire para construir abegoarias, logradouros,
novas ruas municipais e as novas cocheiras da Guarda Nacional Repúblicana”(11).
Finalmente, em 1892, um
particular, D. Diogo de Nápoles, tomou a iniciativa de tornar aquele espaço,
então praticamente abandonado, num ”Passeio Público”, com um corêto,
encabeçando uma comissão para adquirir esse espaço por subscrição pública,
apoiada pelo jornal “A Semana”.
Terá sido aquele cidadão, de origem italiana e então a viver em Torres Vedras, falecido em São Tomé e Príncipe, que “a 29 de Junho (…) falou em que era bonito dar ao Largo da Graça o aspecto de um passeio público, terraplanando-o, colocando-lhe bancos e candeeiros, e pondo-lhe ao centro um coreto de alvenaria e ferro, para a musica ali se fazer ouvir”. Previa um gasto de 2:000$000 réis e por isso “dias depois, em começos de Julho, principiava a pôr em prática o seu plano com tenacidade, abrindo a subscrição pública, e andando de porta em porta a solicitar donativos para o melhoramento público”, contando com o apoio do semanário local “A Semana” (13).
A primeira pedra para a construção do
jardim e do coreto teve lugar a 11 de Junho de 1892, sendo inaugurado em 21 de
Agosto, com festa e Kermesse.
Esse espaço foi baptizado com o nome do monarca que então reinava, D. Carlos . Em 1818 era conhecido por Largo de Santana, por causa da ermida que aí existiu, situada no prédio onde funcionou a casa “Napoleão”, junto a uma das portas medievais da vila, com o mesmo nome. Essa ermida ficou arruinada pelas invasões francesas, nunca mais sendo recuperada. Popularmente já era conhecido por Largo da Graça, nome que tem sobrevivido a todas as mudanças toponímicas desse lugar, muito marcadas pela conjuntura política (foi rebaptizado como Largo da República em 1911 e chegou a ser proposta a designação de Largo Sidónio Pais em 1919, intenção que não vingou. Como veremos mais à frente, essas mudanças toponímicas não se ficaram por aqui.
Esse posto acabaria mesmo por ser aí
instalado, sendo visível nalguns postais de meio do século XX e foi retirado
anos mais tarde (15).
Em 10 de Outubro de 1954, depois de
grandes obras, que culminaram com a colocação no lugar do velho coreto de um
obelisco comemorativo das Guerras Peninsulares, foi oficialmente inaugurado o
novo jardim, sendo na mesma ocasião aquele largo rebaptizado com o nome de
Praça do Império, mantendo o espaço a norte (“Outeirinho”) a designação de
Praça da República (Com o 25 de Abril foi o Largo da Graça rebaptizada
como Praça 25 de Abril).
Depois desse acto, as “entidades
oficias” dirigiram-se para a Freixofeira, limite norte do concelho para receber
os “ilustres convidados” para a inauguração, com destaque para a “mais alta
individualidade” a estar presente, o sub-secretário de Estado do Exército o
tenente-coronel Sá Viana Rebelo, “que vinha presidir às cerimónias”.
O cortejo, com cerca de 200 automóveis,
saiu então da Freixofeira a caminho da então vila onde chegou ao largo dos
Paços do Concelho por volta das 12 horas. Aqui estavam formados “o Corpo dos
Bombeiros Voluntários, com bandeira e banda de música, o Terço da Legião
Portuguesa, a Banda Recreativa Torreense, a Mocidade Portuguesa, deputações das
várias colectividades locais, com seus estandartes e grande concurso de povo
que vitoriou os recém-chegados, enquanto o ilustre membro do Governo passava,
em revista, a guarda de honra e as músicas faziam ouvir os acordes da “Maria da
Fonte”.
Seguiu-se a cerimónia oficial, com os
discursos das autoridades no Salão Nobre dos Paços do Concelho.
A cerimónia prosseguiu com um
“Te-Deum” na Igreja de S.Pedro, seguindo-se um almoço no salão da Tuna
Comercial.
Ás 15 horas procedeu-se ao acto de
inauguração do Obelisco “junto do qual formavam, em guarda de honra, uma
companhia do regimento de infantaria nº1, e um grupo de soldados com os
fardamentos usados na época das Guerras Peninsulares, vendo-se ainda, no local,
uma peça de artilharia, que nessas guerras serviu, vindo expressamente do
Buçaco”.
Foi então lido o auto de inauguração:
“Saibam quantos este público auto
virem, que no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de mil novecentos
e cinquenta e quatro - Ano XXVIII da Revolução Nacional - pelas 15 horas, nesta
mui nobre e antiga Vila de Torres Vedras, no Jardim da Graça, que doravante se
passou a denominar Praça do Império, Sua Excelência o Tenente-Coronel Horácio
de Sá Viana Rebelo, Ilustre Sub-Secretário do Estado do Exército, procedeu à
inauguração solene deste monumento comemorativo das Campanhas da Guerra
Peninsular -1808 a 1814- e especialmente das “Linhas de Torres Vedras” (...).
“A construção deste monumento
teve a comparticipação dos ministérios das Obras Públicas e do Exército e a sua
concepção foi do arquitecto Miguel Jacobety, e nele trabalharam o tenente
coronel de Engenheiros Manuel Braz Martins, Engenheiro Altino Aldo Gromicho, o
construtor civil José Pedro Lopes e os operários, Sebastião Pedro Henriques,
Jaime Simões, Joaquim Miranda, José da Silva, José Correia, João Alves
Carregueiro e António Chá. As cantarias foram fornecidas pela Firma Pardal
Monteiro, Limitada, de Pero Pinheiro (...)”.
Seguiu-se um desfile militar junto à
tribuna de honra montada numa das ruas próximas do jardim.
A cerimónia terminou com a inauguração
no “Museu e Biblioteca Municipal” da exposição histórico-biblio-iconográfica
dedicada às Linhas de Torres (16).
O silêncio sobre reacções
criticas não quer dizer que não tivessem existido manifestações de desagrado.
António Augusto Sales, jovem
nessa época, refere-se às criticas então manifestadas nas mesas dos cafés, a
“rede social” da época:
“Quando José Figueiroa Rêgo, no
último ciclo do seu mandato de quatorze anos como presidente da Câmara decidiu
derrubar o velho coreto e arrasar o antigo jardim para construir o actual
colocando no meio um enorme obelisco em memória da Guerra Peninsular e das
Linhas de Torres, muito e apaixonadamente se discutiu a deliberação. Técnicos
que por o serem entendiam as suas
opiniões acima de qualquer critica, idosos que sentiam o desaparecimento do
velho jardim como perca da sua identidade geracional, intelectuais, que viam
monumento uma manifestação da arquitectura fascista, estetas da ironia que lhe
vislumbravam uma grandeza fálica, assanhados conservadores incapazes de aceitar
o bulir de uma pedra, músicos das bandas que sem o coreto perdiam o mais
simbólico palco para a exibição da sua arte, gente nova fazendo parte de uma
geração voltada decididamente para um novo conceito de jardim que introduzia na
vila modernidade, todos discutiam o assunto e lançavam “bocas de bancada” pelos
cafés que naquele tempo, eram os templos por onde passava qualquer iniciativa,
escândalo público ou privado. No meio de uma guerra de opiniões a obra foi em
frente (…)” (17).
“Se me perguntarem o que penso
daquele mini-jardim, responderei que é o único local aprazível da parte
urbanística da vila. Mas não posso deixar de dizer que tem ali verdadeiras
aberrações (…).
“Já repararam que as árvores que
o circundam escondem a fachada da Graça, ofuscando-lhe toda a graça e
austeridade que são uma mensagem da fé dos nossos antepassados?
“Já repararam que essas mesmas
árvores escondem também o belo obelisco (…)?
“Já repararam que, por sua vez, o
referido obelisco não se enquadra bem no mini-espaço que o circunda e donde só
é visível?
“Contudo, benditas sejam aquelas
árvores que protegem com a sua sombra os que procuram aquele local porque outro
não há onde se possa ter a sensação de frescura nos dias de calmaria ou onde se
possa refazer o corpo das fadigas que o dia a dia acarreta.
“Quando um dia houver jardins com
árvores (…) talvez possam ficar ali só arbustos que não ofusquem a graça da
Graça que serve de fundo àquele largo.
“Talvez que o obelisco se
apresente, então, com toda a sua beleza, e bem enquadrado (18). Nas décadas de
70 e 80, período em que a vila, tornada cidade em 1979, conheceu um grande
crescimento urbano, o jardim perdeu importância e tornou-se quase um “saguão”
gigante no meio de uma urbanização caótica que cresceu à sua volta, rompendo-se
o diálogo visual entre a fachada do velho Convento e o Castelo, um equilíbrio
que devia ter sido garantia de preservação da identidade da terra.
O próprio Obelisco, obra
polémica, perdeu fulgor no meio do caos urbano à sua volta, atarracado pelo
arvoredo cada vez mais denso.
Em 2002 gerou-se nova “ronda” polémica,
devido à publicação de uma sugestão de requalificação defendida pelo então
vereador do planeamento Carlos Miguel, propondo a retirada do Obelisco daquele
espaço e substituir as árvores de grande porte por outras de dimensões mais
reduzidas, com o objectivo de alargar a zona pedonal e realçar a fachada do
velho Convento.
A ideia acabou por não ira para a
frente, devido à reacção popular e da imprensa, ficando-se por alguns arranjos
na parte norte do jardim(19).
Ficou-se também a saber que a
remoção do Obelisco era tecnicamente impossível sem destruir por completo o
monumento.
Hoje, as obras de requalificação
que estão a decorrer, mantêm o Obelisco, passam pelo alargamento da zona
pedonal à custa do estreitamento da faixa rodoviária, embora se tema pelo
futuro do arvoredo.
Desta vez as reacções públicas
tem sido moderadas, talvez devido às preocupações com a actual situação pandémica.
Destaque-se, contudo, um dos raros textos críticos sobre essa obra, da autoria
de Jorge Ralha(20).
Pela nossa parte…esperemos que o
popular Largo da Graça volte a ganhar…alguma graça!
(1)
- TORRES, Madeira, parte histórica da sua
conhecida monografia, 2ª edição, página 126;
(2) - SILVA, Paula Correia da, O Convento da Graça de Torres Vedras, a
comunidade eremítica e o património, Livro do Dia/CMTV, Abril 2007, capítulo “A
segunda fundação”, pp.34 a 36.Esta é a melhor e mais completa e actualizada
obra sobre o dito Convento;
(3) – SILVA, Paula Correia, ob.cit., pág.38;
(4) – anotadores de Madeira Torres, parte económica, manuscrita, 5º caderno,
f.6, AMTV;
(5) - anotadores de MT, parte económica, manuscrita, 8º caderno, f.7, AMTV;
(6) –
SILVA, Paula Correia, ob.cit., pág.65;
(7) –
SILVA, Paula Correia, ob.cit., pág.114;
(8) - anotadores
de MT, parte económica, manuscrita, 2º caderno f.6, AMTV;
(9) – in Jornal de Torres Vedras, 30 de Julho de 1885;
(10) – SILVA, Maria Manuela Gonçalves Silva,
Convento da Graça - Torres Vedras, parte 1, tese na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 1997, dactilografada;
(11) – SILVA, Paula Correia, ob.cit.,, pág.115;
(12) – in Jornal de Torres Vedras, 22 de Janeiro de
1886;
(13) - in A Semana, número comemorativo da Kermesse
de abertura do novo jardim, Domingo 21
de Agosto de 1892. Ver também o suplemento do nº 46 de “Toitorres Notícias” de Maio/Junho de 1998,
coordenado por António Rodrigues e Adão de Carvalho;
(14) – CARVALHO,
Adão de e PAULO, Joaquim, “Ontem e Hoje – Rafael Bordallo
Pinheiro e o Coreto da Graça”, in Badaladas de 27 de Março de 1992;
(15) – leia-se, sobre o tema, o texto assinado por Moura Guedes, “O Jardim
do Largo da Graça – uma “nota” oficiosa”, in Alta Extremadura, 20 de Março de
1935;
(16)– CUNHA, Augusto M. Lopes da, Memória das
Festas da inauguração do obelisco comemorativo da guerra peninsular e Catálogo
da exposição hiistórico-biblio-iconográfica, ed. Biblioteca Municipal de Torres
Vedras, 10 de Outubro de 1954;
(17) – SALES, António Augusto, “Um referendo para o
Jardim da Graça e o seu Obelisco”, in Frente Oeste de 2 de Maio de 2002;
(18) – DIOGO, A., “As tarimbas do mini-jardim da
Praça do Império”, in Badaladas de 27 de Junho de 1970;
(19) – ver Badaladas de 12 de Abril de 2002 e Torres
Vedras em Revista, nº1, Março de 2002;
(20) – RALHA, Jorge, “A desgraça da Graça”, in
Badaladas de 20 de Novembro de 2020.
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