terça-feira, 10 de agosto de 2021

Torres Vedras no “tempo” de D. Afonso Henriques - Entre a lenda e o desconhecido.


A história medieval torriense tem merecido a atenção de vários autores e tem motivado vários estudada de grande qualidade(1).

Contudo, a maior parte desses estudos incide sobre o período posterior à doação do primeiro foral (1250), com grande destaque para o século XIV, isto porque escasseia documentação anterior à segunda metade do século XIII.

Tudo o que “sabe” dos primeiros 50 anos do domínio “português” na região torriense, na segunda metade do século XII, está envolto em “lendas”,  “especulações” e  deduções, a partir de hipóteses ou documentos esparsos e parciais.

Pelos autores clássicos e pelas crónicas “sabe-se” que Torres Vedras e a sua região foram integradas no Reino de Portugal depois da reconquista de Lisboa, tal como aconteceu em relação a outros locais de importância estratégica para a defesa a norte de Lisboa, como Óbidos, Alenquer e Lourinhã, ao contrário de Sintra e Mafra “reconquistadas” antes do cerco a Lisboa.

Sobre a forma como Torres Vedras foi “reconquistada”, as opiniões dividem-se.

As crónicas oficias de D. Afonso Henriques falam em conquista militar, mas  estudos recentes, baseados na critica documental e noutras fontes, inclinam-se, ou para a “rendição”,  ou para uma mais provável “adesão” das populações locais, provavelmente moçárabes, à “protecção” do monarca cristão.

A mais antiga “Crónica de D. Afonso Henriques”, escrita no século XVI por Duarte Galvão (2), baseada numa crónica do século anterior (3), editada pela 1ª vez em 1726, refere que esse monarca, após garantir a conquista definitiva de Lisboa, em 25 de Outubro de 1147, logo no ano seguinte, foi “sobre Alamquer, Obidos, Torres Vedras e sobre todollos outros castelos da Estremadura (…) duramdo em os tomar seis annos” (4).

Frei António Brandão, autor de uma outra “Crónica de D. Afonso Henriques” (5), escrita na primeira metade do século XVII, baseada na consulta de vários arquivos de mosteiros e igrejas, e de cartórios vários, confirmando a crónica anterior, acrescenta que Alenquer só foi “conquistada” depois de Óbidos e Torres Vedras (6).

Um manuscrito anónimo, datado do século XIX, mas baseado numa “memória” do arquivo de Alcobaça, é mais minucioso sobre a “marcha” para norte, “sobre Torres Vedras e Alenquer”  de D. Afonso Henriques, após a tomada de Lisboa. Refere este manuscrito que “D. Afonso Henriques veio sobre Torres Vedras e Alenquer; porém, sabendo que Óbidos era praça muito mais forte do que aquelas, resolveu primeiro tomar Óbidos e deixar” a conquista daquelas praças para “outras ocasiões”, tendo iniciado o cerco a este castelo ainda em Novembro de 1147, só o conquistando em 10 de Janeiro de 1148, seguindo depois para Leiria (7).

Esta última crónica, pode, por um lado, levar-nos  pensar que, ao partir para Leiria depois da “conquista” de Óbidos, e não sobre Torres Vedras, Afonso Henriques o terá feito, talvez, porque esta  já tinha “caído” nas mãos dos cristãos, ou, então, reforçando a lenda de que esta vila teria sido “conquistada” muito mais tarde, apenas em “15 de Agosto de 1148” .

Existe, de facto, uma lenda que situa a “reconquista” de Torres Vedras nessa data, citada por Madeira Torres no século XIX e assim descrita por Júlio Vieira: “era uso festejar-se Nossa Senhora da Assunção, havendo na véspera, a 14 de Agosto, fogueiras no adro da Igreja [de Stª Maria do Castelo] e pelas ameias do castelo, em comemoração daquela data, que, segundo a tradição, marca o dia em que D. Afonso Henriques tomou o castelo aos Moiros” (8).

O facto dessas referências serem escritas muitos séculos depois dos acontecimentos e serem muito vagas quanto às fontes consultadas, levantam sérias dúvidas sobre a sua veracidade, principalmente sobre a hipótese de uma conquista militar de Torres Vedras, tese modernamente muito contestada por medievalistas como Pedro Gomes Barbosa (9) ou Carlos Guardado da Silva.

Este último defende que, de acordo com documentos da época, “a submissão do território torriense ter-se-ia dado por acordo, com recurso a um tratado de rendição” (10).

Cercado ou não pelas tropas de Afonso Henriques, tendo-o ou não conquistado pela força das armas, sofrendo ou não o “castelo”, por isso, forte destruição, existem referências,  nalgumas dessas crónicas e na tradição local, muito divulgadas por Madeira Torres e Júlio Vieira, à “reconstrução” do Castelo “promovida” pelo primeiro monarca português, talvez sob orientação de D. Fuas Roupinho, a quem o monarca doou “o senhorio de Torres Vedras”, a ser verdade a afirmação de Júlio Vieira, baseada da Monarquia Luzitana (11).

Pode até ter acontecido que, como se parece deduzir da leitura da acima citada “crónica de Óbidos”, o “castelo” de Torres fosse, à data da “reconquista”, ser apenas uma pequena fortaleza, eventualmente uma “torre” defensiva, no cruzamento de velhas vias romanas junto ao rio Sizandro, e que, de facto, D. Afonso Henriques tivesse construído ou reconstruído, nesse sítio, um castelo de maiores dimensões, substituindo a “velha torre”,  para o integrar, reforçando-o, na linha defensiva do norte de Lisboa, formando, juntamente com Mafra, Alenquer, Lourinhã,  Óbidos, o chamado sistema defensivo da  “linha do Tejo” (designação de Pedro Barbos (12)).

É um facto, mais aceitável do que as conjecturas e lendas referidas em cima, que, da primeira vez em que o Castelo foi usado militarmente depois da “reconquista”, já era um fortaleza com alguma importância, capaz de resistir a um longo cerco, talvez devido à “reconstrução” levada a cabo nos primeiros tempos de domínio afonsino.

Convém recordar que, no mais antigo documento sobre esta região, se refere “in Torres e in Tamugia”, (13) e, só mais tarde, em documentos do tempo de D. Sancho I, se fixa, na documentação, o termo latino “Turribus Veteribus” (14), que deu origem à designação de Torres Vedras, pelo que é de deduzir que as “torres velhas” fossem aquelas reconstruídas por Afonso Henriques, na origem do castelo medieval.

De facto, em 1184, na sequência do malogrado cerco posto a Santarém,  no início do verão desse ano, pelas tropas almóadas, comandadas por Yusuf II(ou “Almiramolin” ou “Miramolin” nas crónicas cristãs, ou Abu Ya’aquab, segundo José Mattoso) , falecido na sequência de ferimentos sofridos nessa ocasião, estas, retirando-se daquela região, após um malogrado cerco de 5 dias, dirigiram-se na direcção de Torres Vedras, senão todo o exército muçulmano, pelo menos uma parte significativa do mesmo ou, no mínimo, um bando acossado pelos cristão.

Foi esse exército que, primeiro montou “arrayal açerqua d Allamquer”, cercando-a por uns dias, retirando-se depois a caminho da Arruda, que foi destruída “toda per terra”, seguindo depois na direcção de Torres Vedras, cercando o reconstruído Castelo durante onze dias. Não o tendo conseguido tomar “ouuveram comsselho de hirem de volta de suas terras”, dirigindo-se para o Tejo, terminando assim, de forma inglória, a última tentativa dos “mouros” recuperarem o domínio deste região. (15).

Este episódio pode estar na origem da lenda da origem de Matacães, embora a realidade possa ser outra (os “matacões” rochosos onde está localizada a  ermida do Calvário).

Para além dos episódios militares dessa época conturbada, “a preocupação de povoar e desenvolver as actividades económicas terá sido, para além da pura sobrevivência, uma opção dos homens desse tempo” (16).

Torres Vedras era, por volta de 1148, um espaço rural, povoado de aldeias e casais isolados, principalmente a poente a sul, enquanto a maior parte do território, nomeadamente o litoral e o norte, era ocupado por pauis e floresta (17).

 A  composição da população local, nessa época, levante muitas interrogações: quem era a população  anterior à “reconquista”  que se manteve, como se integrou na nova realidade política e quem foram os novos povoadores ?

Félix Lopes (18)  considera que, entre a população pré existente à reconquista, se teria, mantido a moçárabe, como lavradores, descendentes das populações cristianizadas ainda na época romana, concentrando-se “em torno da vila” para sul e leste “ao longo do curso dos rios”, em casais e aldeias (19).

Essa mesma população podia também estar ligada à organização paroquial pré-existente à “reconquista”, referindo Júlio Vieira, mas sem base documental, a não ser citar Madeira Torres, que já existiam, no tempo de D. Afonso Henriques, as Igrejas de Stª Maria, S. Pedro,  S. Miguel, considerando a de S.Tiago de fundação mais recente (20), embora a existência destas só esteja documentada a partir do século XIII.

Félix Lopes  apenas refere  a  Igreja de Stª Maria como pré-existente à reconquista, de origem moçárabe, sendo o primeiro documento a ela referente uma inscrição tumular “gravada na ombreira direita do portal lateral Sul” da dita Igreja “na face voltada ao exterior”, homenageando um tal Mestre Mendo , “provavelmente o arquitecto da Igreja”, datada de 1208 (21). Para Félix Lopes a origem das paróquias de S. Pedro, S.Miguel e S.Taigo é posterior à reconquista, fundadas pelos novos povoadores.

Embora minoritária, ter-se-á mantido alguma população de “mouros”, principalmente berberes, uns escravizados pelo novo poder, outros “forros”, isto é livres.

Manuel Clemente defende que se deve aos “mouros”, que ficaram, o fomento de uma “produção hortícola”, fixando-se na encosta do Castelo, no “sítio  de Entre as Hortas” (22).

Pedro Gomes Barbosa considera provável a existência de uma importante comunidade judaica, aqui fixada antes da “reconquista”, “com as suas estruturas produtivas adaptadas, ligadas sobretudo à comuna de Lisboa”, para onde enviavam os seus produtos e, depois de 1148,  “ocupando parte das terras deixadas livres pelos muçulmanos ou, então, aproveitando para ocupar terras até aí não exploradas, como as da foz do Alcabrichel”, apesar de a sua presença só estar documentada a partir de 1299 (23).

Entre os novos habitantes, vamos encontrar populações cristãs, acompanhando os conquistadores, oriundas das regiões do norte do reino, Santarém, Coimbra e Entre Douro e Minho, e alguns “cruzados” estrangeiros, os “francos”, designado várias origens, presentes em topónimos da região, alguns deles, segundo Madeira Torres, fundadores da Stª Susana do Maxial, maioritariamente estabelecendo-se a Norte da vila, espalhando-se pela Lourinhã, e, também, alguns galegos.

Também Manuela Santos Silva (24) refere que, entre “1148 e 1160, o primeiro rei português criou, na faixa litoral Estremenha a norte de Torres Vedras, três senhorios dos quais fez doação a povoadores de origem “franca””, terminologia da época “que incluía (…) praticamente todas as nacionalidades envolvidas” nas cruzadas que auxiliaram o primeiro monarca português na conquista de Lisboa, situação igualmente confirmada por Pedro Barbosa (25).

Uma das preocupações na reconquista foi fixar populações e colonizar terras, através de doações, que, nesta região, envolvem principalmente alguns mosteiros.

O mais antigo documento escrito de Torres Vedras, é a doação de uma propriedade na “Tamugia” (26) ao mosteiro de Stª Cruz de Coimbra, em Maio de 1159.

O segundo documento mais antigo sobre Torres Vedras é também uma doação àquele mosteiro, datada também do tempo de Afonso Henriques, de 1161, a doação de 1/3 de uma herdade em Rendide.

Será igualmente do tempo do primeiro monarca, embora em data desconhecida, algumas doações na região ao mosteiro galego de Oia (27).

É provável que o mosteiro de Alcobaça tivesse adquirido, por doação, propriedades na região, ainda no tempo de D. Afonso Henriques, apesar do documento mais antigo comprovando a sua presença na região, datar de 1199 e só ter aumentado o seu domínio na região, principalmente a norte do Alcabrichel, a partir de 1225 (28).

A própria coroa tornou-se uma das principais proprietárias na região, ainda no tempo do primeiro monarca (29).

Mais do que certezas, deixamos aqui um conjunto de pistas  que, esperamos, possam motivar   quem, com mais conhecimentos do que nós, possa  encontrar respostas adequadas e esclarecedoras sobre um dos períodos menos conhecidos da nossa história local.


1 – ao longo deste texto citaremos alguns desse autores;

2 - GALVÃO, Duarte, Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques, ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Junho de 1995;

3 - Crónica de Portugal de 1419, ed. Universidade de Aveiro, 1998;

 - GALVÃO, p.149;

5  - BRANDÃO, Frei António, Crónica de D. Afonso Henriques, Livraria Civilização, 1945;

6 - BRANDÃO, Capítulo XXXIV, pp. 150-152;

7- TRINDADE, João (leitura apresentação e notas), Memórias Históricas (…) de Óbidos (…), ed. Imprensa Nacina- Casa da Moeda/C.M.Óbidos, 1985;

8 - VIEIRA, Júlio, Torres Vedras Antiga e Moderna, ed. 1926, p. 109; também RÊGO, Rogério de Figueiroa, “O castelo de Torres Vedras”, in Estremadura, série II, nº 20, 1949, pp.195 e 209;

9- BARBOSA, Pedro Gomes, Povoamento e Estrutura Agrícola na Estremadura central (século XII a 1325), tese de doutoramento, Faculdade de Letras, 1988;

10 - SILVA, Carlos Guardado, “Da arabização e islamização ao domínio do território : Século XII”, in Nova História Local: Torres vedras – Turres Veteras –XX, ed. Colibri/CMTC/ FLL, 2018, pp. 31-40;

11   –VIEIRA, pág.10;

12  - BARBOSA, Pedro Gomes, Reconquista Cristã- Nas Origens de Portugal- Séculos IX a XII, ed. Ésquilo, 2008, p123 e ss.;

13- Vários autores, Bulário Português- Inocêncio III (1198-1216), Instituto Nacional de Investigação Científica, Janeiro de 1986p. 210;

14 - Vários autores, Documentos de D. Sancho I (1174-1211), vol I, Coimbra 1979, pp. 297-301;

15– GALVÃO , pág. 119;

16 - CATARINO, Maria Manuela, “Torres Vedras na Idade Média”, in Torres Vedras – Passado e Presente – vol.I, ed. CMTV, 1996, pp.61-91,p.64;

17 – RODRIGUES, Ana Maria, Torres Vedras – A Vila e o Termo nos Finais da Idade Média, ed. Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1998, pág.54;

18 - LOPES, F. Félix, “Para a História de Torres Vedras (…)” in Lusitana Sacra, Tomo VII, Lx. 1964/1966, pp.135-152;

19 –RODRIGUES, p.54;

20 –VIEIRA, pág.107;

21 - BARROCA, Mário Jorge, Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), Vol II, do tomo I de Corpos de Epigrafia Medieval Portuguesa, ed. Fundação Gulbenkian, Fevereiro de 2000, pp.642-643;

22- CLEMENTE, Manuel, “Torres Vedras – da Reconquista à Expansão”. In Badaladas de 10-4-1981;

23 - BARBOSA, Pedro Gomes, Documentos, Lugares e Homens- Estudos de História Medieval, edições Cosmos, 1991, p.113;

24- SILVA. Manuela Santos, “Os Finais de uma época : A dos concelhos senhorias do Pós-Reconquista”, in Turres Veteras I- Actas de História Medieval, CMTV/Instituto Alexandre Herculano, 2000, pp.39 a 46;

25- BARBOSA, Pedro Gomes. “A ocupação do Espaço Torriense – Séculos XII-XIII”, in Turres Veteras I- Actas de História Medieval, CMTV/Instituto Alexandre Herculano, 2000, pp. 49-58;

26 -  Bulário Português, p. 208 e ss. Sobre a “Tamugem”, ver também M.de S.P [Marquês de São Payo, “Velhas quintas do termo de Torres Vedras – A Quinta da Granja da Tamugem – Sua História – Seus Proprietários”, in Armas e troféus, nº 3, Tomo II, Maio-Agosto 1961, pp.338-340;

27  – RODRIGUES,  p.53;

28 –SILVA, Carlos Guardado, pág.38;

29  –SILVA, Carlos Guardado, pág.37.

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