São raras as notícias sobre o modo como o Carnaval era comemorado em Torres Vedras, antes do aparecimento da imprensa local, em 1885.
Existe uma referência, em 1574, à realização de brincadeiras de
carnaval em Torres Vedras , uma queixa contra abusos cometidos numa dessas
brincadeiras, comuns no resto do país. As referências, na imprensa local, a
partir da segunda metade da década de 80 do século XIX, referem a falta de
animação e de “graça, passada nesses dias, nesta localidade.
O carnaval de rua limitava-se ao desfile de uns raros grupos de
mascarados. Onde a animação era maior era nos salões de baile, em casas
particulares, em teatros improvisados ou no Clube Torreense, onde também se realizavam
teatros e récitas humorísticas.
É provável que, na correspondência local de jornais lisboetas, seja
possível encontrar referências à forma como se celebrava a época carnavalesca,
em Torres Vedras, entes de 1885.
Contudo, recorrendo apenas à imprensa acessível na internet,
encontra-se uma rara referência aos “festejos carnavalescos” em Torres Vedras
antes dessa data, em 1865, não tanto motivada pelos festejos em si, mas pela
forma como eles acabaram, em sessão de pancadaria.
Tudo aconteceu no Domingo 26 de Fevereiro de 1865, quando cerca de
oitenta populares, vindos do Barro, do Varatojo e da Serra da Vila, armados (de
varapaus?), assaltaram “o pequeno teatro de curiosos da villa de Torres Vedras”
onde decorria uma récita carnavalesca (1).
Uma versão mais detalhada foi apresentada nas “Cortes” pelo deputado
Barros e Cunha, onde este contou que, estando alguns habitantes de Torres
Vedras no “teatro da vila”, nesse Domingo Gordo, “representando uma comedia
inocente, das muitas que por ahi há, sem alusão alguma religiosa, e que não
servem senão para fazer rir e passar tempo às pessoas do campo, nos dias
destinados a estes folguedos nacionais”, no “momento em que se achavam no teatro”, a vila
foi invadida por “habitantes do Barro e Varatojo armados completamente em
numero mais de oitenta gritando – mata, mata os casacas que estam a escarnecer
Nosso Senhor Jesus Christo e a Santissima Virgem” (2).
Algumas pessoas que estavam dentro do teatro saíram do edifício e foram
receber os manifestantes para tentar acalmar os ânimos, mas foram insultadas e
agredidas, algumas com gravidade (3).
Entre os agredidos estava o presidente da Câmara, o vice-presidente e o
“recebedor”, pondo os agressores em “debandada” os cabos de polícia. Só mais
tarde, “depois de muita gente ferida e de grande perturbação no animo de todos
aquelles povos, conseguiram po-los fôra da villa pelos meios que n’aquella
ocasião poderam obter do socorro dos cidadãos, que generosa e denodadamente se
arriscaram, sem distinção de classe ou de cor política” (4).
“Aquelles allucinados maltrataram homens respeitados da terra, que se
dirigirão eles para os convencerem a
retirar-se e só a muito custo a autoridade pôde, reunindo cabos de polícia e
outros auxiliares, faze-los sahir, e evitar grandes desgraças que estiverão
iminentes” (5) .Correio Mercantil)
A razão da revolta das populações daquelas aldeias, próximas da vila,
estava relacionada com o rumor, segundo o qual se ia representar, no teatro,
uma paródia à acção local dos frades do Barro e que, “no fim da representação
se fuzilariam as imagens de Christo e da Virgem” (6).
Recorde-se que, cinco anos antes desses acontecimentos, e depois de
expulsos em 1834, os frades tinham voltado a ocupar os conventos do Barro e do
Varatojo.
Segundo algumas notícias , dizia-se que os “frades do Barro não eram
estranhos a esta scena de barbárie, excitando o fanatismo dos povos com intento
de provocarem uma grave questão religiosa” (7).
Essa versão foi confirmada pelo deputado Barros e Cunha que alargava a
acusação, na instigação desses actos, não apenas aos frades do Barro, mas
também os do Varatojo, “dois ninhos onde se abriga uma reacção politica debaixo
do manto da religião”, cujos “missionários, fanatizando o povo em nome da
religião, têem o único fim de tomar conta das consciências, que não estão
suficientemente illustradas para
conhecerem onde acaba e principia a autoridade da terra, a fim de poderem
depois lança-las n’esta luta barbara” (8).
Os acontecimentos tiveram grande impacto na imprensa portuguesa,
chegando mesmo a ser divulgados na imprensa brasileira, sendo também, como
referimos, tema de uma intervenção nas “Cortes” do deputado
João Gualberto de Barros e Cunha, na sessão de 1 de Março de 1865.
Barros e Cunha tinha sido eleito pelo círculo que representava Torres
Vedras e pertencia ao Partido Progressista, oriundo do extinto Partido
Histórico, apoiante do Duque de Loulé durante a Patuleia, chegando mesmo a
ministro, era proprietário nascido em Runa, em 1827, local onde veio a falecer
em 1882.
Barros e Cunha já havia denunciado antes, nas suas intervenções
parlamentares, aquilo que ele considerava como sendo fanatismo doutrinário e
religiosa dos frades do Barro, e apresentou este caso como prova das suas
preocupações.
Nessa sessão, o referido deputado apresentou um voto de louvor aos
cidadãos que “se distinguiram na ocasião dos perigos”, enfrentando os
atacantes, “o nobre presidente da Camara, o sr. Luiz Augusto Martins, (…) o
vice-presidente José Avellino Nunes de Carvalho, que se acha perigosamente
ferido, (…) o sr. Tavares de Medeiros Junior, recebedor da Câmara; o dr.
Ribeiro, advogado em Torres Vedras; o sr. Henrique Francisco Bizarro”, sendo
estes os nomes que lhe foram indicados pelas autoridades, mas acrescentando que
o “que já sei com certeza é que todo o povo, ricos e pobres, tudo se comportou
de maneira que mereceu o louvor do representante do paiz” (9).
Outras versões não incriminavam directamente os frades do Barro nesses
acontecimentos:
“Dizem outros que houve quem abusasse da influencia que os padres
alcançaram no povo, empregando o nome deles para provocar o mesmo povo a estes
excessos, a fim de os comprometerem”, acrescentando “que isto se confirma,
porque as pessoas que se amotinaram maltratarão, não são desafeiçoadas aos
frades” (10).
Para acalmar os animos foi enviada para Torres Vedras “uma força de
caçadores 5 e um piquete de cavalaria da Guarda Nacional” (11).
Sobre as consequência penais desse acto, talvez só consultando as
correspondência do Governo Civil de Lisboa, depositada na Torres do Tombo se
possa saber algo mais, já que, infelizmente, todo o arquivo da administração do
concelho de Torres Vedras, onde se publicavam os relatórios e se arquivava a
correspondência sobre as ocorrências locais, foi destruído por ocasião da
“Janeirinha”, em 1868, pelo que não existe, em Torres Vedras, esse tipo de
documentação, anterior a essa data.
Em anexo publicamos uma reprodução daquela que é a mais antiga imagem
sobre um acontecimento relacionado com o Carnaval em Torres Vedras.
Foi publicada no citado “Annuario do Archivo Pittoresco”, em primeira
página, na edição nº15, de Março de 1865 (página 113 da edição anual,
encadernada) e é da autoria de um dos mais consagrados desenhadores e gravadores
da imprensa no século XIX, João Barbosa de Lima.
Essa gravura foi realizada por esse desenhador, a partir do esboço de
uma testemunha dos factos, deslocando-se Barbosa de Lima a Torres Vedras para
rectificar o desenho com tal testemunha.
A gravura revela um largo, ladeado à esquerda por uma parede, que parece a estrutura de uma Igreja, na qual está um candeeiro. O único largo que conhecemos, que se parece com o do desenho, é o Largo de Santiago. As figuras em confronto usam aquilo que parecem varapaus, uma “arma” muito popular por essa altura.
Esta é, assim, uma das mais antigas descrições de um acontecimento local, ocorrido durante um Carnaval, revelando, igualmente, que já, nessa altura, os habitantes da vila de Torres Vedras reuniam-se num espaço teatral, para assistir a récitas e representações humorísticas e satíricas.
(1) – Annuario do Archivo Pittoresco [AAP], nº15, Março de 1865, pág.120;
(2) – in Diário do Governo [DG] – Cortes – Camara dos Senhores Deputados, sessão de 1 de Março de 1865, p. 575;
(3) – [AAP], ob. cit., p. 120;
(4) – [DG], ob. cit, p. 575;
(5) – in Correio Mercantil [CM], Rio de Janeiro, 4 de Abril de 1865;
(6) – [AAP], ob. cit., p. 120;
(7) – [AAP], ob. cit., p. 120;
(8) – [DG], ob. cit., p.576;
(9) – [DG], ob. cit, p. 577;
(10) – [CM], ob. cit.;
(11) - [CM], ob. cit;
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