terça-feira, 21 de março de 2023

AFINAL, QUANDO COMEÇOU O CARNAVAL DE TORRES? por Jorge Ralha

                                  

Com a autorização do próprio, publicamos em baixo um texo do professor e investigador de história local Jorge Ralha, um contibuto informado para o debate sobre o "centenário" e a história do Carnaval de Torres

"Nos últimos meses, inúmeras vezes fui questionado por amigos e conhecidos, sobre o início do Carnaval de Torres no século XVI. Fui explicando que uma coisa é “carnaval em Torres”; outra, “Carnaval de Torres”. O primeiro, (quase) sempre houve; o segundo, tem caraterísticas próprias (como, no último documento, se procura identificar, previamente à resposta à questão).

Para não perturbar os festejos de um centenário no mínimo questionável, e que pode configurar uma enorme fraude cultural coletiva, o que se publica agora e de seguida, são documentos – todos eles existentes na Biblioteca Municipal - sobre o Carnaval de Torres.

Tudo o que é opinião, cabe ao leitor.

O cidadão que goste de questionar-se, em que conceito se revê?

a)Na descrição do século XVI em que se bate num galo (a perseguição de animais e, eventualmente, o seu manjar, não é uma raridade na Europa);

b)Na descrição de 1923 em que um rei de Carnaval chega à estação de caminho de ferro, forma-se um cortejo e visita as coletividades;

c)Na descrição de 1931 em que o rei acompanhado da rainha, assistem ao corso com carros alegóricos e batalha de flores, com entradas pagas cuja receita é a favor da Colónia Balnear Infantil (da Física).

Quando começou, afinal, o Carnaval de Torres Vedras: no século XVI? Em 1923? Ou serão os torrienses tão “à frente” que começam a comemorar o centenário do Carnaval de Torres oito anos antes?

Estranho, é que tantos sábios e experientes reunidos, ainda não tenham dito nada!!! (exceto Venerando Matos no Badaladas de 20.01.23, porem não retirando as lógicas conclusões). Ficará para o futuro o anacronismo de nas comemorações aparecerem um conjunto de casais reais cuja rainha só aparecerá no ano seguinte (1924).

Assentemos que a história se constrói segundo processos cumulativos no tempo, até se fixar numa matriz, mesmo assim, dinâmica. Exemplifico para melhor compreensão: a humanização percorreu um caminho até assentar na versão conhecida como homo sapiens sapiens. Ainda ninguém se lembrou de estabelecer o aparecimento do Homem nos espécimes anteriores do australopitecos ou do “homem” de Neanderthal, pois não?. Assim, o Carnaval de Torres, como todos os processos humanos. Quanto ao argumento da tradição, também houve tempo em que se considerava que o Sol girava em volta da Terra! O conhecimento humano emendou o erro, até hoje!

Uma nota de otimismo: talvez possamos começar a preparar convenientemente o centenário do Carnaval de Torres, em 2031, cujos cem anos se celebrarão obviamente no ano seguinte.

a)O Carnaval de Torres começou no sec. XVI?

(…) “andando uns moços folgando com um galo no dia de Entrudo de 1574 … trazendo os moços paus como é costume no tal dia para matarem o galo (…) passando pela porta do mestre de gramática … chegaram outros moços doutra escola e ali se juntaram uns com os outros, onde tiveram os seus passatempos e brincadeiras de brigas com o galo como sempre houve e (…) em zombaria (um estudante)  para rirem pegou na besta … e por acidente, atirando ao galo acertara no beiço dum moço de nome João criado de João Luís, barbeiro, morador na dita vila (…)”

FONTE: Documento citado por Venerando de Matos, Carnaval de Torres. Uma história com tradição (1923 – 1998), CMTV, 1998, p. 26 (adaptado)

b)O Carnaval de Torres Vedras começou em 1923?

(O relato dos acontecimentos de 1923 não está acessível na Biblioteca Municipal. Está o mesmo jornal – O Torreense - que é a fonte, também, para o ano seguinte que decorreu de forma semelhante, seguramente melhorada). Eis o que se escreve:

“Eram 10 horas e 17 minutos quando o comboio entrou na estação. Sobem ao ar muitos foguetes. A banda musical atroa os ares com uma marcha.

Sua Magestade* desembarca e é recebido pelos altos dignatários, dirigindo-se depois … para o coche que o aguarda.

A guarda de honra é feita, fora da estação, pelo batalhão de marinheiros de água doce.

(…) Organiza-se então o cortejo, que há de acompanhar Sua Magestade na sua visita às sociedades de recreio.

À frente um terno de trombeteiros … A seguir o batalhão de cavalaria e burraria de penachos ao vento.

Seguia o estandarte real escoltado por dois soldados de cavalaria montados em burros.

No primeiro carro seguia o ministério (depois) o carro do clero (…) o carro dos embaixadores (…)

Coche real , no qual seguiam, além de Sua Magestade, o presidente do ministério (…) e o chefe do protocolo (…) ministro da guerra. Cavalgavam à estribeira os generais (…)

Seguia o batalhão de marinheiros de água doce. (…)

Carro da burguesia (…)

Fechava o cortejo a Filarmonica Torreense.

Começa então a visita das colectividades começando pelo Casino (…) Seguiu-se o Grémio Artístico Comercial  (…) Na Tuna Comercial Torreense que a seguir foi honrada (…)

A seguir dirigiu-se o cortejo para o Largo da República onde, depois de serem passadas em revista as suas forças militares, se dissolveu. (…)**

*O rei, em 1923, ainda sem rainha que aparece em 1924

**Os atos que se seguem reportam-se especificamente a 1924

FONTE: O Torreense de 02.03.1924 (existe original do jornal na Biblioteca Municipal)

c)O Carnaval de Torres Vedras começou em 1931?

“Terá também realização este ano esta parodia a que se chama “O Rei Carnaval”.(…)

Suas Magestades (…) dignar-se hão também assistir ao corso que terá logar na Avenida, pelas 15 horas, destinando-se o producto da portagem à Colónia Balnear Infantil na Praia de Santa Cruz.

Para o corso consta estarem já inscritos bastantes carros alegóricos, cujos nomes oportunamente informaremos. Por este motivo se espera que esta festa, pela primeira vez realizada em Torres Vedras, venha a ter grande brilhantismo (…)

Fonte; Gazeta de Torres, 25.01.1931

(…)

A recepção e o cortejo de S. Magestade D. Carnaval VI

(…)

Meio dia. Largo da Estação e a Avenida 5 de Outubro formam um mar de cabeças. Esperam Ss. Magestades perto de 50 carros, entre automóveis e camionetes (…)

Largo da Graça. Recepção de S. Magestade a toda a Corte. Chegada de S. A. Real o Príncipe D. Pimpalhudo. Discurso-elogio do Duque de Al-Miar … E o cortejo põe-se outra vez em marcha para visitar as colectividades de recreio.

(…)3 horas – Abertura do Côrso e começo da Batalha de Flores. Todos os carros do cortejo. Muitos carros alegóricos, artísticos e lindíssimos (…)

S.Majestade com um cerimonial interessante corta a fita que veda a passagem do publico e inicia-se a Batalha de Flores. É agora a ocasião para enumerarmos e apreciarmos certos carros de reclame. Apontamos em primeiro lugar o monumental carro de Raul Rocha, de reclame à sua acreditada fotografia (…) o de João Rufino dos Santos, um grande e lindo sapato (…)

Sousa & Manarte, um enorme bacalhau (…) o de João Henriques dos Santos com seus 5 diabos malditos (…) o carro do vinho, com vindimadeiras e vindimadores (…) o carro das Ceifeiras (…) e muitos outros de real valor, dando ao côrso uma vida verdadeiramente agradável e interessante.

Brincou-se até às (…) 5 horas, num constante batalhar frenético e aguerrido. Presume-se receita regular em benefício da Colonia Balnear Infantil. Assistiram à Batalha mais de 3 mil pessoas.

(…)

Fonte: O Jornal de Torres Vedras, 22.02.1931 (existe original do jornal na Biblioteca Municipal)

d)A identidade do Carnaval de Torres

“O Carnaval de Torres acompanha o modelo de Nice mediado pelos de Lisboa e do Porto que a imprensa divulgava. É um Carnaval composto por “Corso” e “Batalha de Flores”, tendo o cocote uma feição local.

O “Rei Carnaval” é distinguido pela numeração ordinal, até 1961, como em Nice e em Lisboa. A partir de 1935 (é gralha; o ano correto é 1924), o Rei será acompanhado por uma “Rainha”, na composição de um travesti, tal como se tinha experimentado no Carnaval de estudantes de Lisboa. Mais tarde, aparecem as designações irónicas, cacafonias e de inspiração brejeira, iniciadas pelos estudantes de Lisboa e Porto.

Em Torres Vedras os reis iniciam o Carnaval, sendo recebidos, quase sempre, no “Largo da Estação”, que se equipara à Praça do Comércio, em Lisboa, e antes, à Praça Massena, em Nice. Mais tarde ser-lhes-á atribuída a “Chave da Cidade”, como se fazia em Nice e acabará queimado, como em Nice e outras personagens de muitas manifestações de Entrudo em Portugal.

A animação musical dos Corsos é feita em Torres Vedras, como em Lisboa, por bandas filarmónicas. Provavelmente, só a partir de 1960 aparecem “Zés Pereiras”, como em Lisboa e Porto, e “Gigantones” (porventura, também, cabeçudos), como em Nice e Lisboa. Nesta época instala-se um circuito sonoro ao longo do Corso que emite música de samba.

No “Corso” concorrem inicialmente viaturas particulares, “carros reclame” e carros alegóricos, tal como em Lisboa e no Porto (…)

Tudo concorre para ter existido, também em Torres Vedras, uma separação entre Entrudo “bárbaro” e Carnaval “civilizado”. As matrafonas, com raízes no Entrudo tradicional acabam por se impor (,,,)

O Enterro do Entrudo, com realizações anteriores, só é integrado no programa do Carnaval de Torres a partir de 1978 (…)

Uma originalidade tem o Carnaval de Torres: a ausência de separação entre atores e espetadores.

Apesar de todas as vicissitudes, em quase um século, o Carnaval de Torres deixou marcas no envolvimento cívico dos cidadãos na sua construção, na contribuição beneficente para instituições locais, no impacto económico ao longo dos tempos, na projeção da imagem do território e da sua notoriedade, e no clima social local de tolerância.”

Jorge Ralha, À espera do Carnaval de Torres (…) in Carnaval – História e Identidade, Turres Veteras XVIII, CMTV – Colibri – IAH, 2016, pp. 156 e 157

 por JORGE RALHA

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