Com a autorização do próprio, publicamos em baixo um texo do professor e investigador de história local Jorge Ralha, um contibuto informado para o debate sobre o "centenário" e a história do Carnaval de Torres
"Nos últimos meses, inúmeras
vezes fui questionado por amigos e conhecidos, sobre o início do Carnaval de
Torres no século XVI. Fui explicando que uma coisa é “carnaval em Torres”;
outra, “Carnaval de Torres”. O primeiro, (quase) sempre houve; o segundo, tem
caraterísticas próprias (como, no último documento, se procura identificar,
previamente à resposta à questão).
Para não perturbar os festejos
de um centenário no mínimo questionável, e que pode configurar uma enorme
fraude cultural coletiva, o que se publica agora e de seguida, são documentos –
todos eles existentes na Biblioteca Municipal - sobre o Carnaval de Torres.
Tudo o que é opinião, cabe ao
leitor.
O cidadão que goste de
questionar-se, em que conceito se revê?
a)Na descrição do século XVI
em que se bate num galo (a perseguição de animais e, eventualmente, o seu
manjar, não é uma raridade na Europa);
b)Na descrição de 1923 em que
um rei de Carnaval chega à estação de caminho de ferro, forma-se um cortejo e
visita as coletividades;
c)Na descrição de 1931 em que
o rei acompanhado da rainha, assistem ao corso com carros alegóricos e batalha
de flores, com entradas pagas cuja receita é a favor da Colónia Balnear
Infantil (da Física).
Quando começou, afinal, o
Carnaval de Torres Vedras: no século XVI? Em 1923? Ou serão os torrienses tão
“à frente” que começam a comemorar o centenário do Carnaval de Torres oito anos
antes?
Estranho, é que tantos sábios
e experientes reunidos, ainda não tenham dito nada!!! (exceto Venerando Matos
no Badaladas de 20.01.23, porem não retirando as lógicas conclusões). Ficará
para o futuro o anacronismo de nas comemorações aparecerem um conjunto de
casais reais cuja rainha só aparecerá no ano seguinte (1924).
Assentemos que a história se
constrói segundo processos cumulativos no tempo, até se fixar numa matriz,
mesmo assim, dinâmica. Exemplifico para melhor compreensão: a humanização percorreu
um caminho até assentar na versão conhecida como homo sapiens sapiens.
Ainda ninguém se lembrou de estabelecer o aparecimento do Homem nos espécimes
anteriores do australopitecos ou do “homem” de Neanderthal, pois não?. Assim, o
Carnaval de Torres, como todos os processos humanos. Quanto ao argumento da
tradição, também houve tempo em que se considerava que o Sol girava em volta da
Terra! O conhecimento humano emendou o erro, até hoje!
Uma nota de otimismo: talvez possamos começar a preparar convenientemente o centenário do Carnaval de Torres, em 2031, cujos cem anos se celebrarão obviamente no ano seguinte.
a)O Carnaval de Torres começou
no sec. XVI?
(…) “andando uns moços
folgando com um galo no dia de Entrudo de 1574 … trazendo os moços paus como é
costume no tal dia para matarem o galo (…) passando pela porta do mestre de
gramática … chegaram outros moços doutra escola e ali se juntaram uns com os
outros, onde tiveram os seus passatempos e brincadeiras de brigas com o galo
como sempre houve e (…) em zombaria (um estudante) para rirem pegou na besta … e por acidente,
atirando ao galo acertara no beiço dum moço de nome João criado de João Luís,
barbeiro, morador na dita vila (…)”
FONTE: Documento citado por Venerando de Matos, Carnaval de Torres. Uma história com tradição (1923 – 1998), CMTV, 1998, p. 26 (adaptado)
b)O Carnaval de Torres Vedras
começou em 1923?
(O relato dos acontecimentos
de 1923 não está acessível na Biblioteca Municipal. Está o mesmo jornal – O
Torreense - que é a fonte, também, para o ano seguinte que decorreu de forma
semelhante, seguramente melhorada). Eis o que se escreve:
“Eram 10 horas e 17 minutos quando
o comboio entrou na estação. Sobem ao ar muitos foguetes. A banda musical atroa
os ares com uma marcha.
Sua Magestade* desembarca e é
recebido pelos altos dignatários, dirigindo-se depois … para o coche que
o aguarda.
A guarda de honra é feita,
fora da estação, pelo batalhão de marinheiros de água doce.
(…) Organiza-se então o
cortejo, que há de acompanhar Sua Magestade na sua visita às sociedades de
recreio.
À frente um terno de
trombeteiros … A seguir o batalhão de cavalaria e burraria de penachos
ao vento.
Seguia o estandarte real
escoltado por dois soldados de cavalaria montados em burros.
No primeiro carro seguia o ministério
(depois) o carro do clero (…) o carro dos embaixadores (…)
Coche real , no qual seguiam,
além de Sua Magestade, o presidente do ministério (…) e o chefe do protocolo
(…) ministro da guerra. Cavalgavam à estribeira os generais (…)
Seguia o batalhão de
marinheiros de água doce. (…)
Carro da burguesia (…)
Fechava o cortejo a
Filarmonica Torreense.
Começa então a visita das
colectividades começando pelo Casino (…) Seguiu-se o Grémio Artístico
Comercial (…) Na Tuna Comercial
Torreense que a seguir foi honrada (…)
A seguir dirigiu-se o cortejo
para o Largo da República onde, depois de serem passadas em revista as suas
forças militares, se dissolveu. (…)**
*O rei, em 1923, ainda sem
rainha que aparece em 1924
**Os atos que se seguem
reportam-se especificamente a 1924
FONTE: O Torreense de 02.03.1924 (existe original do jornal na Biblioteca Municipal)
c)O Carnaval de Torres Vedras
começou em 1931?
“Terá também realização este
ano esta parodia a que se chama “O Rei Carnaval”.(…)
Suas Magestades (…) dignar-se
hão também assistir ao corso que terá logar na Avenida, pelas 15 horas,
destinando-se o producto da portagem à Colónia Balnear Infantil na Praia de
Santa Cruz.
Para o corso consta estarem já
inscritos bastantes carros alegóricos, cujos nomes oportunamente informaremos.
Por este motivo se espera que esta festa, pela primeira vez realizada em Torres
Vedras, venha a ter grande brilhantismo (…)
Fonte; Gazeta de Torres,
25.01.1931
(…)
A recepção e o cortejo de S.
Magestade D. Carnaval VI
(…)
Meio dia. Largo da Estação e a
Avenida 5 de Outubro formam um mar de cabeças. Esperam Ss. Magestades perto de
50 carros, entre automóveis e camionetes (…)
Largo da Graça. Recepção de S.
Magestade a toda a Corte. Chegada de S. A. Real o Príncipe D. Pimpalhudo.
Discurso-elogio do Duque de Al-Miar … E o cortejo põe-se outra vez em marcha
para visitar as colectividades de recreio.
(…)3 horas – Abertura do Côrso
e começo da Batalha de Flores. Todos os carros do cortejo. Muitos carros
alegóricos, artísticos e lindíssimos (…)
S.Majestade com um cerimonial
interessante corta a fita que veda a passagem do publico e inicia-se a Batalha
de Flores. É agora a ocasião para enumerarmos e apreciarmos certos carros de
reclame. Apontamos em primeiro lugar o monumental carro de Raul Rocha, de
reclame à sua acreditada fotografia (…) o de João Rufino dos Santos, um grande
e lindo sapato (…)
Sousa & Manarte, um enorme
bacalhau (…) o de João Henriques dos Santos com seus 5 diabos malditos (…) o
carro do vinho, com vindimadeiras e vindimadores (…) o carro das Ceifeiras (…)
e muitos outros de real valor, dando ao côrso uma vida verdadeiramente
agradável e interessante.
Brincou-se até às (…) 5 horas,
num constante batalhar frenético e aguerrido. Presume-se receita regular em
benefício da Colonia Balnear Infantil. Assistiram à Batalha mais de 3 mil
pessoas.
(…)
Fonte: O Jornal de Torres Vedras, 22.02.1931 (existe original do jornal na Biblioteca Municipal)
d)A identidade do Carnaval de
Torres
“O Carnaval de Torres
acompanha o modelo de Nice mediado pelos de Lisboa e do Porto que a imprensa
divulgava. É um Carnaval composto por “Corso” e “Batalha de Flores”, tendo o
cocote uma feição local.
O “Rei Carnaval” é distinguido
pela numeração ordinal, até 1961, como em Nice e em Lisboa. A partir de 1935
(é gralha; o ano correto é 1924), o Rei será acompanhado por uma “Rainha”, na
composição de um travesti, tal como se tinha experimentado no Carnaval de
estudantes de Lisboa. Mais tarde, aparecem as designações irónicas, cacafonias
e de inspiração brejeira, iniciadas pelos estudantes de Lisboa e Porto.
Em Torres Vedras os reis
iniciam o Carnaval, sendo recebidos, quase sempre, no “Largo da Estação”, que
se equipara à Praça do Comércio, em Lisboa, e antes, à Praça Massena, em Nice.
Mais tarde ser-lhes-á atribuída a “Chave da Cidade”, como se fazia em Nice e
acabará queimado, como em Nice e outras personagens de muitas manifestações de Entrudo
em Portugal.
A animação musical dos Corsos é feita em Torres Vedras, como em Lisboa, por bandas filarmónicas. Provavelmente, só a partir de 1960 aparecem “Zés Pereiras”, como em Lisboa e Porto, e “Gigantones” (porventura, também, cabeçudos), como em Nice e Lisboa. Nesta época instala-se um circuito sonoro ao longo do Corso que emite música de samba.
No “Corso” concorrem inicialmente viaturas particulares, “carros reclame” e carros alegóricos, tal como em Lisboa e no Porto (…)Tudo concorre para ter
existido, também em Torres Vedras, uma separação entre Entrudo “bárbaro” e
Carnaval “civilizado”. As matrafonas, com raízes no Entrudo tradicional acabam
por se impor (,,,)
O Enterro do Entrudo, com
realizações anteriores, só é integrado no programa do Carnaval de Torres a partir
de 1978 (…)
Uma originalidade tem o
Carnaval de Torres: a ausência de separação entre atores e espetadores.
Apesar de todas as
vicissitudes, em quase um século, o Carnaval de Torres deixou marcas no
envolvimento cívico dos cidadãos na sua construção, na contribuição beneficente
para instituições locais, no impacto económico ao longo dos tempos, na projeção
da imagem do território e da sua notoriedade, e no clima social local de
tolerância.”
Jorge Ralha, À espera do
Carnaval de Torres (…) in Carnaval – História e Identidade, Turres Veteras
XVIII, CMTV – Colibri – IAH, 2016, pp. 156 e 157
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