Durante séculos, até meados do século XIX, a “Praça do Município” foi
um dos largos mais movimentados de Torres Vedras, talvez mesmo o “centro” da
vida local.
Ainda na segunda metade do século XIX os anotadores de Madeira Torres
confirmavam a sua importância, referindo ter “esta
villa a sua praça no centro, ainda que pequena, segundo o costume das terras
antigas” (1).
Muitos outros largos existiam na
então vila, mas sem a importância daquele, posição que seria apenas disputada
pelo Largo em frente à Igreja de S. Pedro.
Essa centralidade só lhe terá sido arrebatado pelo popularmente
conhecido “Largo da Graça” em finais do século XIX.
Um dos aspectos que contribuiu para a importância do Largo do Município
foi o facto de aí se localizar o edifício municipal.
Segundo Ana Maria Rodrigues, na Idade
Média esse largo constituía “ como que o alargamento da Rua de S. Pedro na sua
extremidade final, albergando o Paço do Concelho e o Pelourinho” (2).
A partir do século XVI são várias as referências ao edifício municipal
Em 1591 um alvará régio, datado de 4 de Agosto, autorizava o lançamento
da finta até 200 mil réis, destinados a restaurar o edifício da câmara e,
poucos anos depois, em 1597, em sessão camarária de 1 de Fevereiro, decidiu-se
chamar o povo da vila e do termo, representado pelos juízes de vintena, para
aprovarem a aplicação de 100 mil réis das sisas para a reconstrução do
edifício, “porquãoto as rendas do concelho são tão poucas que não bastão para
as ditas obras”. Estas já se tinham iniciado, mas estavam “em perigo de cairem
de todo”. Os representantes do “povo” concordaram todos com essa despesa em
sessão ocorrida no dia 8.
Em 22 de Fevereiro a camara elege um tal João Pinto para depositário
daquela quantia. Cerca de um ano depois, na sessão de 10 de Janeiro de 1598,
fica a saber-se que as obras estavam quase acabadas, faltando ainda concertar a
casa de audiências.
Em 1634, por provisão do
desembargador do paço desse ano, autorizou-se a aplicação de 95 mil réis do
depósito dos bens de raíz para obras na cadeia.
Deste edifício municipal quinhentista não existem vestígio e, a existirem,
devem estar a bastante profundidade já que, como refere Júlio Vieira, devido
aos terrenos aluvianos em que assenta o centro histórico, foi frequente o
“alteamentos das ruas da vila (…) que se estendeu à própria praça do Município”
(3).
Um poço descoberto no início deste
século confirma essa situação, dada a profundidade a que se começaram a
recolher objectos nesse poço, existente num pátio a norte do actual edifício
municipal, objectos datados desde o
século XV, mas com principal incidência nos finais do século XVI, princípio do
XVII, destacando-se várias peças de olaria, muitas intactas, que ao longo do
séculos foram lançadas naquele poço.
Mas a existência do edifício municipal não foi o único que caracterizou
a vivência do largo.
Nele existiu a Estalagem da albergaria de S. Brás, referida num
documento de 1387 .
Também aí se situava a Capela de Santo António , situada frente aos
paços do concelho, “nas casas fronteiras da parte sul, pertencentes então a
Miguel Ignácio da Silva Lobo” que servia para dar missa aos presos. Servia
também de passo da irmandade dos passos.
Aquele proprietário obteve licença para derrubar aquela capela “com a
condição de fazer defronte da Misericórdia, à sua custa, um novo Passo (…) como
fez, mudando para alli o que estava na dicta capella” em 1809 (actualmente é um
dos Passos da Procissão do Senhor dos Passos, localizado frente à
Misericórdia).
Numa provisão do cartório da Igreja de S. Pedro, de 21 de Maio de 1647
é referenciada como “capela de Santo António da Graça” (4).
No século XVIII o largo ganhou as características actuais, na sequência
do incêndio que destruiu o edifício municipal.
O incêndio foi ateado por um preso, para se evadir.
O preso em causa era “filho do serventuário do officio de escrivão dos
orphãos, que então era João Franco da Costa”.
Para pagar os estragos e a reconstrução do edifício, procedeu-se ao
“sequestro na legítima do incendiário, na mão de seu pae”, processo que ainda
decorria em 1776 (5).
Nesse incêndio arderam os arquivos mais antigos do concelho,
salvando-se o foral manuelino de 1510, cartas régias assinadas por D. Sebastião
e pelo cardeal D. Henrique, e os livros de acordãos posteriores a 1572
Após o incêndio iniciou-se, em Julho de 1752, a reconstrução do
edifício, para a qual se arrematou “a obra de pedreiro por 160$ooo réis, e a de
carpinteiro por 274$000 réis”, obra terminada em 1776 (6).
Data dessa obra a colocação de um chafariz no largo, assim descrito por
Júlio Vieira:
“Tem uma frontaria de um andar, com quatro pequenas janelas de ressaibo
pombalino, únicas nesse género, que existem nesta vila”(7).
Recebia agua de um “ramal
subterrâneo do aqueduto do Chafariz dos Canos, do qual se aparta em frente ao
mercado do peixe”, nas traseiras da Igreja de S. Pedro (8).
Inclui umai nscrição onde se pode ler:
“Governando El-Rei D. José I, Pae da Pátria, para commodidade da
cadeia, e do povo, o corregedor da comarca fez edificar esta fonte à custa do
público no ano de 1776”(9) [era então corregedor da comarca Joaquim José Jordão]
É encimado por um curioso “escudo em forma de coração (…) no centro do
qual estão duas torres inclinadas semelhantes às antigas insígnias das armas da
vila do Chafariz dos canos” (10).
No primeiro andar era sala de audiências e no segundo andar a sala de
sessões da Câmara e cartório (segundo anotadores de Madeira Torres);
Nele funcionou a prisão e o Tribunal de Comarca até 1887, foi depositário
do arquivo histórico municipal até aos finais do século XIX, foi escola
municipal entre 1890 e 1903 e o primeiro quartel dos bombeiros entre 1903 e
1934.
No século XIX a cadeia era descrita como tendo “além da enxovia (…) dois andares, constando
o primeiro da chamada sala livre, e o
segundo de dois quartos, que servem de prisão para mulheres, e nesse mesmo
andar existia o segredo, que é um pequeno quarto dom pouca claridade”.
A porta de entrada e “habitação para o carcereiro”, ficava do lado da
“rua do Espírito Santo”.
“Antigamente” o carcereiro era nomeado pelo alcaide-mor e recebia de
ordenado 24:000 réis.No séc. XIX era nomeado pela Câmara, e recebia de ordenado
12$000 réis” mais “carceragens” (11).
Associado à cadeia, estava o pelourinho que aí esteve até ao principio
do século XIX .
Poucos dias depois de ser reparado, foi deitado abaixo, em 13 de Maio
de 1852, por ordem do administrador do concelho Maurício José da Silva, por
considerar que estorvava a passagem da comitiva da rainha D. Maria II, cuja
visita ocorreu a 1 de Junho.
Durante anos não se soube do seu paradeiro, até ser descoberto por
Leonel Trindade uma parte do seu fuste.
Esteve exposto no Museu Municipal, no tempo em que este esteve
instalado no antigo hospital da Misericórdia.
Por decreto de 11 de Outubro de 1933 o que resta do antigo pelourinho
foi classificado imóvel de interesse público e, no princípio do século XXI, por
ocasião das obras de remodelação do edifício e do espaço envolvente, o fuste do
antigo pelourinho foi recolocado no largo, como memória.
Na Idade Média, na a zona do largo do Município existiam “vários artesãos e comerciantes” que “exerciam o seu mestre e vendiam os seus
produtos. Era esta, sem dúvida, a parte mais animada e concorrida”, segundo Ana
Maria Rodrigues (13), que encontrou referências a ferreiros, mercadores,
correeiros, tecelões e tecedeiras, sapateiros e “até mesmo um estalajadeiro”.
Ana Maria Rodrigues considera provável que, para além daquela praça
diária, já houvesse um mercado semanal na Idade Média, “realizado na Praça,
onde os aldeões das redondezas vinham, de vontade própria ou à força, vender os
produtos da sua lavoura” (14).
Aos domingos estendia-se pelas ruas laterais.
No mercado dos domingos, no séc.XIX, aí se vendiam “muitos generos de
cereaes e outros comestíveis, bem como de loiça, junco, cousas estas que ainda
não há muitos anos alli não appareciam”(15).
A primeira referência conhecida a um mercado semanal naquele sítio data
de 1736, realizando-se à 3ª feira. A Câmara quis mudá-la para o Largo da Graça,
por ser este lugar mais espaçoso, por concessão de 24 de Maio de 1792.
Um outro momento ligado àquele largo era a Quebra do Escudo, solenidade
que se realizava por ocasião do falecimento de um monarca.
A cerimónia tinha inicio nos Paços do Concelho, de onde saia um
cortejo, acompanhado pelas autoridades, pela “nobreza” e pelo povo.
À frente ía a cavalo “a pessoa
principal”, com uma “bandeira de luto que arrastava pelo chão”, seguido de três
vereadores, cada um transportando três escudos com as armas reais.
O cortejo, acompanhado de carpideiras, parava em três lugares públicos
onde se procedia à quebra do escudo, que simbolizava o fim do reinado (16).
As principais visitas régias documentadas da história torriense
incluíram como um dos principais momentos solenes a passagem da comitiva por
esse largo, como aconteceu com a visita de D. Pedro V em 16 de Junho de 1859. O
rei D. Pedro V e a rainha Dª Estefânia, eram acompanhados pelo Príncipe de
Gales e, depois de se realizar missa na Igreja de S. Pedro a comitiva real
deslocou-se aos Paços do Concelho “para tomar uma refeição, que na véspera para
lá havia sido mandada do Real Palácio de Mafra, e ahi acharam SS. Mag. Tudo
preparado, e em parte por prevenção da Camara Municipal, que lhes offereceo também
o refreco d’uma boa cobertura de dôces”.
No ano seguinte, em 1 de Setembro de 1860, vindo de Peniche, o mesmo
monarca fez uma curta paragem em Torres Vedras, para “uma breve refeição” nos
Paços do Concelho (17).
A última visita de um monarca a Torres Vedras foi ade D.Manuel II, em
21 de Agosto de 1908, por ocasião das Comemorações do Centenário da Batalha do Vimeiro.
Mas aquele largo, pelo seu simbolismo, foi também o palco de várias
movimentações populares.
Em 1 de Março 1599 foi o centro de um motim popular, devido à nomeação
do guarda-mor.
Um outro motim popular ocorreu em 9 de Fevereiro de 1868 e ficou
conhecido por “batalhôa”, sendo um reflexo local da conhecida revolta da
“janeirinha” contra o aumento de impostos.
A população enfurecida, parte oriunda das freguesias rurais, invadiu a
travessa da Olaria, onde estava instalada a sede da administração do concelho e
a repartição da fazenda, queimando os seus arquivos.
De seguida dirigiram-se para os Paços do concelho com o mesmo
objectivo.
A revolta acabou junto ao município “pela persuasão com que os membros
da câmara aí presentes” defenderam o
arquivo, que assim escapou a ser queimado (19).
As grandes manifestações da República e do Estado Novo tiveram
igualmente aquele largo como palco, como aconteceu com a “manifestação de
desagravo” pelos “acontecimentos no Estado da Índia Portuguesa” ocorrida em 24 de Julho de 1954, e assim descrita pelo “A
Voz”:
Na manifestação de aclamação do 25 de Abril de 1974 foi mais uma vez um
dos lugares escolhidos para o seu percurso e continuou a ser o principal centro
de manifestações e acontecimentos políticos enquanto aí esteve sedeada Câmara
Municipal, até à inauguração do novo edifício na Av. 5 de Outubro, em 31 de
Março de 2006.
(Nota: um resumo deste texto foi publicado na passada edição do jornal “Badaladas”
de 25 de Novembro de 2016, na série “Vedrografias”.
Por sua vez, a versão que aqui se divulga é um resumo de uma comunicação oral
inédita apresentada numa sessão de “Sopa de Pedras”, realizada em 16 de Março
de 2012. As notas em baixo são ainda um esboço das anotações correctas, mas que
penso que são perceptiveis por todos os que se interessam pela história
torriense)
(1)
- anotadores
de Madeira Torres – p.13, parte
Histórica, 1862;
(2)
-Ana
Maria Rodrigues, p.147-148;
(3)
-Júlio
Vieira;
(4)
-Fontes:
Júlio Vieira, anotadores MT, Carlos Guardado;
(5)
-anotadores
Madeira Torres, p.14, parte Histórica, 1862;
(6)
-anotadores
MT, 1862, p.14;
(7)
- Júlio
Vieira;
(8)
- Júlio
Vieira, p.143;
(9)
-proposta
de tradução dos anotadores de MT, p. 15, 1862;
(10)
- Júlio
Vieira, p. 142;
(11)
-
anotadores de MT, p.15, 1862;
(12)
- anotadores
MT, p16, 1862;
(13)
- Ana
Maria Rodrigues, pág.148;
(14)
–Ana Maria
Rodrigues, pág.328;
(15)
-anotadores
da parte económica (manuscrita) de Madeira Torres, 1865;
(16)
-segundo
Júlio Vieira, pp.302-303;
(17)
- anotadores
MT,p.55, 1862;
(18)
- in
O Occidente, nº 1068 de 30 de Agosto de 1908;
(19)
-Júlio
Vieira, pp.304-305;
(20)
-A
Voz de 27 de Julho de 1954.
Mais um bom contributo para a nossa História Local.
ResponderEliminarObrigado, Venerando!