(Uma Cheia em Torres Vedras nos anos 40, na "várzea" - Foto Estúdio)
Até há poucos anos, antes das grandes obras de regularização do rio Sizandro, realizadas depois da catástrofe de 1983, a zona baixa de Torres Vedras sofria quase todos os anos, pelo inverno, o incómodo das cheias, umas maiores que outras. Aquela que ficou na memória colectiva por mais tempo foi a chamada “Cheia Grande” de 7 de Dezembro de 1876.
Teve origem na forte precipitação que se registou em todo o país, tendo
originado a maior cheia histórica do rio Tejo, com um caudal que só seria
ultrapassado em 1997, e que foi a mais devastadora de sempre na região do baixo
Tejo (1). Nesse dia também o rio Guadiana registou a maior cheia da sua história.
Em Torres Vedras o rio Sizandro atingiu um nível de cheia nunca visto
anteriormente e que foi um dos maiores até 1983. A situação que então se viveu neste
concelho foi referida por vários autores
coevos, como Pinho Leal:
“(…) Ainda com os temporaes do
inverno de 1876, [o rio Sizandro] cresceu tanto, que causou graves prejuïzos
nas terras das suas margens . Em 30 [?] de dezembro d' esse anno, se viu passar pelos sitios da
Ponte do Rol , uma cavalgadura morta , arrastando, preso por um pé ao estribo ,
um homem tamb6m morto.
“As chuvas torrenciaes do inverno de 1876 causaram grandes prejuizos
n’esta villa.
“0 Sizandro, que muitas vezes secca completamente na estiagem, cobriu de
agua todas as varzeas das suas margens.
“Todas as casas na baixa da villa
foram abandonadas . A gente pobre foi recolhida no hospital , onde lhe
deram alimento e agasalho. Muitos habitantes foram salvos às costas por pessoas
dedicadas e transportados em carros para sitio seguro. Andaram empregados
n’este serviço , sete carros, generosamente emprestados por varios
particulares. Os empregados da administração do concelho foram salvos do mesmo
modo.
“Houve scenas afflitivas . No largo da egreja de S . Miguel , ha umas
barraquinhas que serviam de abrigo a uma pobre gente. Quando lhe accudiram
dava-lhe já a agua pelos peitos . Imagine-se a sua afflicção.
“Os prejuizos foram grandes em vinho , azeite, milho , etc . 0 campo da
Feira Nova, às portas da Varzea, ficou todo inundado, padecendo immenso os
numerosos armazens que alli há . No lagar do sr. Augusto Miranda, a cheia fez
grande destroço; a rua da Olaria , onde elle esta estabelecido, parecia um rio
de azeite. No armazem do sr. Fivelim, na rua Nova , os cascos e pipas de vinho
andaram boiando. A agua n’esta rua chegava à bocca do forno de pão que aIli há
.
“Ameaçavam ruina varias casas, entre outras a do sr. João dos Reis ,
edificada recentemente , onde morava o Sr. Schiappa, conductor das obras
publicas ; a do medico, o Sr. dr . Mauricio, etc .
“Estas inundaçoes teem-se repetido com
frequencia, todas as vezes que o Sizandro, de humilde ribeiro, se torna um rio
furioso, sahindo do seu leito alagando
as suas margens, e causa de grandes destroços e ruinas .
“Em 1876, subiu em alguns pontos a altura de trez metros .
“O lençol d' agua estendia-se pelas varzeas do Arial , Ramalhão, Maxial
e Ermigeira até Villa Verde, n’uma extensão de cerca de 15 kilometros ; proximo
d’esta ultima povoação morreu afogado um rapaz que andava apascentando gado.
“A importante povoação da Merceana , situada ao
sul e nas faldas da serra de S . Matheus, esteve prestes a submergir-se .
“Na estrada que vae de Monte Redondo para a Ermigeira , abateu o muro
da tapada da quinta das Lapas, n' uma grande extensao, ficando impedido o
transito.
“Na quinta de Ermigeira, propriedade do sr. visconde de Balsemão, foi
completamente destruido um importante encanamento de agua na extensao de 500
metros”(2) .
António Batista da Costa, autor de uma monografia manuscrita inédita,
“Memórias de Torres Vedras”, escrita no inicio do século XX, também escreveu, de
memória, sobre o efeito da cheia de 1876, classificando-a como a “maior cheia
que visitou Torres Vedras, desde de tempos conhecidos (…)”, descrevendo os seus
efeitos:
“Toda a vila baixa fôra inundada, chegando a agua à Praça do Município,
a S. Pedro, ao Largo do Rozario, etc, etc.
“Foi no sitio denominado a Porta da Varzea, onde a agua atingiu a sua
maior altura, correndo risco a vida d’algumas famílias que ali moravam, as
quaes foram salvas pelo benemérito
cidadão Victorino Pereira da Costa, que então exercia o cargo de Secretário da
Administração do Concelho, e outros cujos nomes não me ocorre.
“Muitas creaturas reciosas de que a cheia aumentasse e tomasse outras
proporções invadindo as suas habitações, por quanto a noite continuava sob o
mesmo aspecto tempestuoso, abandonaram-nas , ouvindo-se ais e gritos de angustia e de aflição que, ecoando por
entre o sussurro murmurado e patético das aguas, causava um certo pavor, ainda
aos mais animosos. Essa gente deveras apavorada com o aspecto tenebroso que a
cheia ía tomando, pois que até às 2 da madrugada ainda chovia torrencialmente,
dirigiu-se ao Hospital [da Misericórdia, junto à Igreja da mesma instituição],
afim de ali encontrar guarida, a qual lhe fôra pronto e generosamente dada pela
sua ilustre direcção, ficando ali umas três noites”.
O autor refere que, “na actualidade”[por volta de 1915] “esse mal”, das
inundações do Sizandro que invadiam a zona baixa da vila, “desapareceu um
pouco”, dado que se tinha procedido a sucessivos aterramentos , “atingindo
n’alguns pontos a altura de 2 metros, pouco mais ou menos” (3).
Dias depois, o mesmo executivo, “considerando o imenso prejuízo que
soffre a rua da Olaria, pelo facto de por ella passar em caudaloza torrente a
agua que corre das montanhas a sudueste da villa; e reconhecendo a impreterível
necessidade do seu imediato desvio, deliberou convidar o Ill.mo Sr. Francisco
de Borja, a fim deste cavalheiro declarar se consentia que pella sua
propriedade da Graça se effectuasse aquelle desvio d’aguas” tendo esse
proprietário anuído “com condição” de ser indemnizado pela câmara “dos prejuízos que sofresse, o que esta acceitou”(5).
Fica aqui retratado, em jeito de reportagem, um dos acontecimentos mais
marcantes registado na memória colectiva dos habitantes de Torres Vedras.
1 – ver LOUREIRO, João Mimoso, “Rio Tejo –As Grandes Cheias –
1800-2007”, colecção Tágides, ed. ARH do Tejo, Lisboa 2009 (versão disponível
na internet);
2 - LEAL, Pinho, “Sizandro” in PORTUGAL ANTIGO E MODERNO vol . IX, 1880
pp . 405 ; 661—662;
3 – COSTA, António Batista, “Memórias de Torres Vedras”, manuscrito
inédito, AMTV, [1915?], folhas 15 e 16;
4 – Livro de Actas da Câmara, sessão de 9 de Dezembro de 1876, ff170
e170v;
5 Livro de Actas da Câmara, sessão de 26 de Dezembro de 1876, f.171
verso.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarMuito bem!
ResponderEliminarEste blogue continua muito bom, apesar de hoje ter metido muita água...
Obrigado pelo teu trabalho, Venerando.