quarta-feira, 20 de setembro de 2017

PORTO NOVO NA HISTÓRIA

Diz a tradição que o nome de “Porto Novo” ficou a dever-se a “ter-se aberto para dar mais saída às águas e servir de foz ao rio Alcabrichel”, abandonando-se “a foz antiga, que descrevia uma grande volta” (1).

Uma bem documentada alegação judicial proferida no tribunal de Torres Vedras, em 1939 questionou essa tradição ao demonstrar que a actual localidade de Porto Novo já foi em tempos um ilhéu, formando o areal de Santa Rita uma imensa lagoa, situando-se a foz do Alcabrichel mais no interior, aproximadamente no sítio onde se iniciam os agora desactivados campos de golfe (2).

A primeira tentativa de fundação de um porto junto à foz do Alcabrichel ocorreu durante o reinado de D. Dinis que, para o efeito, mandou edificar uma Igreja sob invocação de S. Dinis, cuja primeira pedra foi benzida em 15 de Outubro de 1318, na presença do monarca, do infante D.Pedro e de muita nobreza, objectivo que, contudo  não se concretizou por divergências entre o concelho de Torres Vedras e os frades de Alcobaça quanto à posse do local, diferendo que se arrastou até 1322, e que acabou por ser decidido a favor o mosteiro(3).

Finalmente, por carta régia de 6 de Maio de 1436, sabe-se que D. Leonor, esposa do rei D. Duarte, mandou abrir naquele lugar um “porto novo” ao qual deu o nome de Porto Real “em direito de pena firme”, concedendo várias isenções aos seus 10 povoadores. Para Veríssimo Serrão, razões “de defesa marítima contribuíram para a criação desse povoado que servia uma zona agrícola importante. Mas o local nunca se transformou num grande centro piscatório, visto a pequena baía não dispor de condições nem área para desembarque, não tardando um século para o vizinho porto de Peniche se tornar no local predominante daquela zona costeira” (4).

Essa falta de condições daquele local para se desenvolver como grande porto de pesca confirma-se em 1758, na memória Paroquial referente à Paróquia de A Dos Cunhados onde se pode ler que esse “porto” não é capaz de “embarcar calois grandes; mas tão somente barcos piquenos que no verão fazem suas pescas”.

Contudo, em 7 de Maio de  1902, foi inaugurada em Porto Novo uma armação de pesca “valenciana”, para a pesca de sardinha, por iniciativa de uma “Sociedade Piscatória de Porto Novo”, cujo êxito inicial levou à inauguração de uma nova armação de pesca em 16 de Abril de 1906, pertencente a Rufino de Carvalho. Contudo tal iniciativa não terá durado muitos anos, embora tenha contribuído para dar a conhecer  a beleza natural daquela praia (5).

Mesmo assim regista-se alguma actividade regular de pesca nas primeiras décadas do século XX, actividade que terminou “em Janeiro de 1938, na sequência da crise das pescas iniciada em 1935” (6).


Já em relação às condições como local de defesa, Porto Novo revelou-se mais importante.

A costa da zona de Porto Novo e Santa Rita, junto do hoje arruinado convento quinhentista, foi por várias vezes assaltada por piratas “mouros”, principalmente no verão e ao longo do século XVII.

O facto de nesse local existirem várias fontes de água e de se situar longe de povoações que pudessem rapidamente defender a costa, terá motivado esses assaltos.

Segundo a opinião de frei Agostinho de Santa Maria, os corsários que frequentavam esta costa “vinhão muitas vezes a fazer nella água em suas lanchas, e a furtar o gado que podião, e também a cativar alguns pescadores, que fugindo delles se hião recolher no Porto Novo, ou estavão naquella praza reparando seus barcos & redes & por vezes intentarão acometer o Convento, para roubar, & cativar os religiosos”(7).

Por causa desses assaltos os frades de Penafirme tomaram várias iniciativas para se protegerem: reforçaram as portas do convento com trancas de ferro, armaram-se e passaram a vigiar a costa de dia e de noite.

Se avistassem os piratas durante o dia, faziam tocar a rebate o sino da torre da Igreja. Se os avistassem durante a noite, usavam como sinal um facho que acendiam, colocado na mesma torre.
No caso de ataques de maior gravidade usava-se um sistema de sinalização luminosa, com fachos que eram acesos nos locais mais altos, desde a costa até Torres Vedras. Daí os nomes ainda hoje conhecidos, de “ponta da Vigia”, em Vale de Janelas, “Alto da Vela”, em Santa Cruz, ou “Casal do facho”, no Varatojo.

Nesses tempos, os habitantes de Penafirme estavam isentos da prestação do serviço militar, para ocorrerem à defesa da costa.

Data dessa época o episódio que imortalizou o frade Roque da Gama. Ajudado por quatro lavradores, defendeu o convento de um ataque de 14 piratas, em 30 de Junho de 1620, conseguindo aprisioná-los.

Terá sido em resultado desse acontecimento que o rei Filipe III decretou “que ouvesse no Convento hua (...) praça de armas (...) & assim mandou dessem para o convento hus tantos mosquetes, & lanças, hum tambor, & frascos, que alli se conservão para esse fim; & ordem para cobrarem em Lisboa cada hum anno certa quantidade de polvora & balas” (8).

Perante a continuação e frequencia dos actos de pirataria naquele local, D. Afonso VI mandou construir uma fortaleza junto de Porto Novo, o forte de Nossa Senhora da Graça, cuja construção se iniciou em 1662.

Nessa fortificação foram instaladas cinco peças de artilharia, com uma pequena força militar, que ainda se mantinha artilhado e guarnecido em 1707 (9), mas terá sido totalmente destruído por ocasião do terramoto de 1755.

A costa de Porto Novo foi bastante assolada pelo maremoto que se seguiu a esse terremoto sendo deste local a única descrição desse fenómeno referente ao litoral do distrito de Lisboa.
Quando se deu o terramoto, o “mar estava acabando de encher”. O maremoto deu-se nesta costa cerca de 1 hora e 1/4 depois do abalo, por volta das 11 da manhã.

A descrição daquele padre confirma as descrições do que por essa altura se passou em Lisboa, registando-se três grandes fluxos de subida e descida da água: “o fluxo e refluxo extraordinário só foi por três vezes (…) porém, toda aquela tarde continuou enchendo e vazando, recolhendo as águas com tanta velocidade que ficava tudo enchuto até à distância em que se tinha levantado e mandando-as com a mesma velocidade para terras”, ou seja, para além daquelas três grandes ondas, outras ondas mais pequenos tiveram lugar nesse dia, calculando-se actualmente que se registaram ao todo 16 ondas de grandes dimensões, destacando-se, contudo, aqueles três momentos.

Observada a partir de Penafirme e Porto Novo, “a novidade que se viu do mar (…) foi o levantar-se esta coisa de meia légua |cerca de 2 quilómetros e meio| distante da terra em um grande monte em que algumas pessoas divisaram diversas cores nas águas, pondo esta novidade em tão grande pasmo e temor a toda aquela vizinhança, que quase toda, imaginando era chegado o tremendo dia do juízo, da mesma sorte que estavam, ou bem ou mal compostos, sem fecharem suas casas e sem cuidarem de seus bens, fugiram para este lugar e igreja”.

Continuando a relatar-nos o tsunami, refere o cura António Duarte: “esse grande monte de mar veio discorrendo com voracidade para terra e combateu as arribas na altura de nove ou dez braças (…) Em um vale que corre do Sul para o norte e desagua na praia de Porto Novo, passando-se naquele tempo a pé enchuto correu tão cheio de água que por algum tempo se não pôde passar, cuja enchente lhe procedeu dos muitos olhos de água que circunvizinhos rebentaram (…).

“Os palmos que cresceu mais do ordinário se pode conjecturar pela altura das nove ou dez braças |algures entre os 16 e 20 metros de altura| em que combateu as arribas (…) chegando pela terra dentro a distancia que não há tradição chegasse em tempo algum [de facto, terá entrado, na zona de Porto Novo, pelo menos até às proximidades da actual “fonte dos frades]”(10).

Porto Novo voltou a entrar na história por ocasião da Batalha do Vimeiro, por junto a esta localidade desembarcaram parte das tropas inglesas, as divisões dos generais Anstruther e Ackland.

Foi, aliás, para defender aquele desembarque que Arthur Wellesley, posicionou as tropas terrestres, sob seu comando,  entre o Vimeiro e a Maceira, na tarde de 19 de Agosto de 1808.

O desembarque daquelas divisões efectuou-se “a uma legua de distancia do” Vimeiro, “na pequena bahia ou sitio do Porto Novo, junto a Maceira, onde desemboca uma ribeira ou pequeno rio chamado Alcobrichel (sic)”.

“No Vimeiro o campo de Wellesley era formado pela seguinte maneira: a sua ala esquerda achava-se postada na capella do referido logar, tendo a direita na praia da Maceira. Na ponta d’esta ala achava-se ancorada uma fragata de guerra e uns trinta navios de transporte com barcaças fóra. No dia 20 desembarcára a brigada do general Antruther, que se uniu ao exercito de Wellesley na força de 2:400 homens, e de tarde chegou á Maceira o tenente general sir Harry Burrard. Aos 21 pela manhã cedo desembarcou e se juntou ao exercito inglez a brigada do general Ackland, na força de 1:750 homens”. (11).

Foi para tentar travar aqueles desembarques que Junot avançou sobre o Vimeiro, desencadeando a célebre batalha.

Já depois da Batalha do Vimeiro de 21 de Agosto de 1808, no dia 24, chegaram a Porto Novo as tropas de sir John .Moore que só fundearam  a 25.

“O desembarque das tropas de sir John Moore fez-se com grande difficuldade, pois levou 5 dias, e pereceram afogados bastantes marinheiros e soldados. Os transportes soffreram taes estragos que só 30 ficaram em condições de prestarem serviço (12)”.

Já mais perto de nós, durante a 2ª Guerra Mundial, há a noticia de no grande vale arenoso em frente à praia de Santa Rita, aí ter aterrado, em 31 de Março de 1943, um bombardeiro inglês, o “Consolidated Catalina IB da RAF com dez tripulantes”. Segundo o relato que seguimos, depois “ de várias tentativas foi possível desencalhá-lo da areia e levá-lo para o Centro de Aviação Naval de Lisboa, onde ficou a degradar-se” (13).


Porto Novo e a sua “irmã” Santa Rita, apesar de um passado histórico mais “rico”, perderam terreno, ao longo do século XX, para a praia de Santa Cruz, como lugar de destaque no litoral torriense.

Foi esse interessante passado que procurámos aqui destacar.

(1)   COSTA, António Baptista da, “Porto Novo” in Enciclopédia das Famílias, nº 259, ed. 1908;
(2)   SILVA, Dr. Augusto Paes de Almeida e, Em Defesa do Património Nacional (…), ed. Biblioteca Municipal de Torres Vedras, ed. 1939;
(3)   FONTES, João Luís Inglês, in A Dos Cunhados – Itinerários da Memória, ed. Pró-Memória, 2002, pág.88, e RODRIGUES, Ana Maria, “O Porto Novo de D. Dinis e o “Porto Carro” de D. Fernando”, comunicação apresentada ao IV Congresso sobre Monumentos Militares Portugueses, Santarém, 2 e 5 de Outubro de 1987;
(4)   SERRÃO, J. Veríssimo, História de Portugal, Vol. II, pág. 176;
(5)   Anuário da “Folha de Torres Vedras” para o ano de 1907;
(6)   CORDEIRO, Ana Sofia Nunes, in FONTES, João Luís Inglês (coord.), A Dos Cunhados – Itinerário da Memória, ed. Pró-Memória, 2002, pág. 286;
(7)   SANTA MARIA, frei Agostinho de, Santuário Mariano, tomo II, ed. 1707, p.74.
(8)   SANTA MARIA, ob. cit., p.75;
(9)   ANACLETO, Pedro Garcia, “Grandezas e desventuras na história de um pequeno porto do litoral de Torres Vedras”, in Panorama, nº 41, IV série, Março de 1972;
(10)DUARTE, padre António, cópia do manuscrito existente nos registos paroquiais de A-Dos-Cunhados (original de 1756, cópia de 1908).
(11)SORIANO, Simão José da Luz, Historia da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal- segunda epocha- guerra peninsular, tomo II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1871, p. 392
(12)CÉSAR, Victoriano J. Invasões Francesas em Portugal - 1ª parte (...) Roliça e Vimeiro, Lisboa 1904, pp.141 a 143.
(13)OLIVEIRA, Hermínio de, in “Crónicas do meu pequeno mundo”, Gazeta das Caldas de 22 de Agosto de 2009.

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