segunda-feira, 23 de julho de 2018

Há 75 anos, o presidente Carmona visitou Torres Vedras




Em plena Segunda Guerra Mundial, no auge do Estado Novo, em 18 de Julho de 1943, um Domingo, Torres Vedras recebeu a visita do então presidente da República Óscar Carmona. 
O objectivo dessa visita foi a inauguração oficial do novo Hospital da Misericórdia e do novo edifício dos Correios. 
Esse acontecimento mereceu grande destaque na imprensa nacional, com honra de primeira página em quase todos, e no único jornal que então se editava no concelho, embora de periodicidade anual, “O Torrense”. 
(reportagem em "O Torreense") 
Com base na leitura de alguns desses jornais é possível reconstituir o pulsar desse dia em Torres Vedras. 
Refere o jornal “Novidades”, na sua edição de 19 de Julho, que, logo “de manhã cedo a vida começou a movimentar-se com a chegada de forasteiro das (…) freguesias do concelho, que utilizavam os mais variados meios de transporte”. 
Aliás, para que fosse possível a utilização de transportes pelos habitantes do concelho e dos concelhos vizinhos foi interrompido o racionamento a que estava sujeito o abastecimento de combustíveis, uma consequência do período de guerra em que se vivia, como o refere o mesmo jornal na sua edição de dia 18: 
“o Serviço de Racionamento do Instituto Português de Combustíveis comunica-nos que por motivo da visita do sr. Presidente da República a Torres Vedras, foi pelo sr.  ministro da Economia autorizado o abastecimento, durante o dia de hoje naquele concelho a todos os motociclos e carros ligeiros de particulares”. 
Ainda na edição do dia 19 daquele diário situacionista refere-se que, às “11 horas fez-se no Município a recepção  às bandas dos Bombeiros Voluntários da Lourinhã, Ermegeira, Aldeia Grande e Ribaldeira e dos legionários de Mafra, que foram aqui recebidos pela subcomissão de festas, presidida pelo sr. Joaquim Oliveira Manarte”. 
“Ás 13 horas fez-se no vasto Largo de S. Pedro a concentração de trinta carros que haviam de tomar parte no grande cortejo regional”, seguindo para os limites do concelho, na Freixofeira, onde foi recebido o Presidente e a sua comitiva aí chegados às 16 e 15. 
Carmona era acompanhado nessa visita pelo Ministro do Interior, pelo Subsecretário de assistência e Obras Públicas e pelo Governador Civil de Lisboa, entre muitas outras entidades oficiais e corporativas.
À sua chegada à Freixofeira, Carmona foi saudado pelo presidente da Câmara de Torres Vedras, D. José Maria Teles da Silva (Tarouca). 
“Momentos após esta cerimónia o estralejar dos foguetes e o ribombar dos morteiros marcaram o início da festa” (1) . 
A caminho de Torres, a comitiva foi surpreendida com uma manifestação não prevista de boas-vindas no Turcifal, sendo recebida pela população do lugar que se concentrou junto ao adro da Igreja, onde a “banda da Casa do Povo tocou o hino nacional” (2). 
Chegando à vila “foram lançadas flores em grande profusão”  sobre o carro presidencial (3). 
À entrada da vila “erguia-se um arco triunfal com a saudação – Salvé Carmona- “ (4). 
“Toda a vila estava engalanada de bandeiras, galhardetes, festões e das janelas pendiam lindas colgaduras” (5).  
Seguindo a comitiva pelas Avenidas 5 de Outubro e Tenente Valadim, “que se encontrava vistosamente engalanada com bandeiras”, chegou ao largo de S.Pedro “onde se encontrava formando um terço da “Legião Portuguesa”, com bandeira, banda de musica e  terno de corneteiros (…) que prestou as devidas honras militares ao Chefe do Estado entre vibrantes e patrióticas manifestações da multidão que no local se aglomerava”. 
Carmona, “apeando-se do seu automóvel, passou em revista a guarda de honra e, em seguida, dirigiu-se, pela Rua Miguel Bombarda, para o Largo do Município onde se achava uma formação constituída pela Corporação dos Bombeiros Voluntários com a respectiva banda de musica.” 
Ao longo do percurso, das “janelas, as senhoras lançam flores à passagem do cortejo, enquanto o povo apinhado junto aos passeios aumenta de entusiasmo”, entre o qual as “crianças das escolas, todas as colectividades, bombeiros, agremiações desportivas e de beneficência, com os seus estandartes, prestam também homenagem o Chefe de Estado” (6). 
Seguiu-se uma sessão no salão nobre dos  Paços do Concelho, onde discursaram o então presidente da Câmara, “D. José Maria Teles da Silva (Tarouca)”, o Ministro do Interior e, a encerrar, o general Carmona. 
De seguida o Presidente da República e a comitiva seguiu em “carro aberto”, pelas ruas Serpa Pinto e pelo Largo Graça, dirigindo-se ao “Novo Edifício dos Correios”, inaugurado na ocasião (7). 
“Ao longo do trajecto alinhavam-se os alunos das escolas primárias do concelho, elementos da “Mocidade Portuguesa”, Juntas de Freguesia, Juventude Católica, Bombeiros, Casas do Povo, Sindicatos, União Nacional, Associações desportivas e de beneficência, Grémios e a banda dos Bombeiros da Lourinhã” . 
Chegado ao edifício dos CTT o Presidente procedeu à tradicional corta da fita, percorrendo depois as instalações do edifício. De “linhas modernas e sóbrias” (8).    
(in "O Torreense". Autoria: Foto Rocha)


(Edificio dos Correios inaugurado por Carmona. Fotos de Mário Novais, arquivo da Fundação Calouste Gulbenkian) .
Depois, pela rua Santos Bernardes, seguiu a comitiva até ao lugar do “Novo Hospital da Misericórdia”, igualmente inaugurado oficialmente nessa data. 
O  Hospital foi “construído por contribuição do Estado e da Câmara Municipal”, e com a contribuição de vários beneméritos locais, homenageados numa lápide comemorativa descerrada na ocasião, no átrio do hospital. Entre os beneméritos foram citados os “srs. Álvaro Galrão, dr. José Alberto Bastos, Joaquim Vaquinhas, dr. Júlio Lucas e D. Teresa de Jesus Pereira” (9) . 
(Gravura do edificio original do Hospital de Torres Vedras. Fonte: Site da Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras) 
Foi também descerrada outra lápide de homenagem a Carmona pelo acto de inauguração. 
O corpo clinico foi constituído por “uma chefe e cinco enfermeiras das irmãs hospitaleiras portuguesas da Ordem de S. Francisco” e pelos médicos “drs. Alberto José de Bastos, Boaventura Dias Sarreira e Afonso Pedreira Vilela”. 
Carmona acabou por ser o primeiro “doente” assistido no Hospital, por se ter magoado num dedo ao fechar a porta do seu carro. (10). 
(o Dr. Dias Sarreira tratando do dedo ferido de Carmona. Foto retirada do blog Concept Board , num artigo biográfico sobre aquele médico torriense)
Na estrada que ligava o Largo da Graça ao novo Hospital, “em longa fila, alinhavam-se os carros  das freguesias com oferendas  para a Misericórdia, sendo: 5 do Ramalhal, 3 de Matacães, 3 de São Pedro da Cadeira, 3 da Carvoeira, 2 do Maxial, 2 da Casa do Povo e Freguesia de Runa e de São Domingos de Carmões e vários outros da Silveira, Turcifal, Dois Portos, Campêlos (Santa Maria), A-dos-Cunhados, da Quinta da Macheia ( e veraneantes dos Cucos), Ponte do Rol, Freiria, Monte Redondo, Santa Maria e São Pedro”. 
“Os carros, artisticamente ornamentados, com o folclórico das respectivas freguesias, traziam de tudo e com abundância: batatas, feijão, hortaliça, coelhos, galinhas, uma vitela, roupas e enxovais para crianças, e, até dinheiro” (11) . 
(Fonte: "O Torreense". Autoria "Foto Rocha"). 
Após inauguração do novo Hospital a comitiva regressou à Praça da República, à sede da Santa Casa da Misericórdia, para um “Torres de Honra”. 
“Antes de entrar na Misericórdia o Chefe do Estado, apeando-se do automóvel (…) condecorou a bandeira dos Bombeiros Voluntários com a Ordem de Benemerência e o operário da Casa Hipólito sr. André Ferreira com a Ordem de Mérito Industrial”. 

(Fonte: Jornal "O Torreense". Autoria de "Foto Rocha") 
O salão nobre da Misericórdia estava decorada com bandeiras e flores e aí discursaram o Dr. Afonso Vilela, presidente da Comissão concelhia da União Nacional, após o qual o presidente Carmona condecorou o Presidente da Câmara com a Ordem de Cristo (12). 
A seguir, Carmona e a sua comitiva abandonaram a vila, a caminho de Lisboa, sendo acompanhados pelas entidades locais até ao limite do concelho, na Freixofeira. 
Na passagem pelo Turcifal, “vistosamente engalanado com colgaduras e festões, foi Sua Ex.ª alvo de uma verdadeira manifestação de carinho, caíndo-lhe uma autêntica chuva de flôres” (13) . 
À noite “as bandas de musica “ da Lourinhã e de Torres Vedras deram concertos na Praça da República e Avenida 5 de Outubro”, queimando-se “um esplendido fogo de artificio” (14). 
Foi uma das últimas grandes manifestações locais de apoio ao Estado Novo, como se comprova pelo tom apologético das reportagens da imprensa nacional. 
Parafraseando ironicamente a obra do cineasta Ettore Scola, foi “um dia inesquecível” para os torrienses, o regime e os seus apoiantes (15). 
(1)    – in Diário da Manhã de 19 de Julho de 1943:
(2)    – in O Século de 19 de Julho de 1943;
(3)    – in Novidades de 19 de Julho de 1943;
(4)    - in O Torrense de 11 de Outubro de 1943;
(5)    - In O Século de 19 de Julho de 1943;
(6)    -  in Diário da Manhã de 19 Julho 1943;
(7)     - in Novidades de  19 de Julho de 1943;
(8)    – in  Diário da Manhã 19 Julho 1943;
(9)    – in Novidades de 19 de Julho de 1943;
(10)    - in Diário da Manhã 19 Julho 1943;
(11)     - in O Torreense de 11 de Outubro de 1943;
(12)     - in Diário da Manhã de 19 Julho 1943;
(13)      - in O Torreense, de 11 de Outubro de 1943;
(14)     - in Diário da Manhã de 19 de Julho de 1943.
(15)    - O filme “Um Dia Inesquecível”, de 1977,  relata a história de um amor adultero entre a esposa de um camisa negra fascista e um antifascista a caminho do exílio, em Roma, no dia 6 de Maio de 1938, dia em que a cidade  se engalanou para o encontro entre o Duce e Hitler.
(NOTA: um texto mais resumido foi publicado no Jornal "Badaladas" de 13 de Julho de 2018,    na secção Vedrografias de Julho de 2018). 

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