terça-feira, 19 de junho de 2018

Torres Vedras e as eleições Presidenciais de 8 de Junho de 1958



Passam agora 60 anos sobre as eleições presidenciais de 1958, marcadas pela candidatura do general Humberto Delgado. 

Foi um momento que abalou a relativa estabilidade politica em que vivia o Estado Novo, no ano em que se comemorava o 30º aniversário de Salazar no poder, e depois de o regime ter conseguido travar as esperanças surgidas com o final da 2ª Guerra na instauração de um regime democrático. 

Craveiro Lopes terminava o seu primeiro mandato em ruptura com Salazar e a oposição viu nesse momento uma oportunidade para ganhar um novo alento. Inicialmente, a oposição democrática não comunista tentou avançar com a candidatura de Cunha Leal, um republicano conservador, num jantar de homenagem a essa personalidade que teve lugar no Porto em 11 de Janeiro. 

Mas é também no Porto que ganha peso uma outra candidatura, a do general Humberto Delgado, militar oriundo das fileiras do regime mas que, depois de cinco anos a viver nos Estados Unidos como adido militar da embaixada portuguesa, entre 1952 e 1957, sonhou com a implantação de um regime democrático em Portugal, seguindo o modelo presidencialista norte-americano, iniciando a ruptura com Salazar.

Cunha Leal anuncia a desistência da sua candidatura em 18 de Abril e, no dia seguinte 230 eleitores do Porto entregam no Supremo Tribunal de Justiça o processo de candidatura de Humberto Delgado às eleições presidências. 

Entre os seus principais apoiantes encontram-se figuras como António Sérgio ou Henrique Galvão, muitos dissidentes do salazarismo, como os “integralistas” e os “nacional-sindicalistas”, assim como figuras tradicionais do republicanismo, sendo também apoiado oficialmente pelo que restava do velho Partido Republicano Português. 

Muitos oposicionistas, principalmente antigas figuras do MUD e o PCP, desconfiavam de Delgado , devido à sua ligação anterior ao Estado Novo,  a quem chegam apelidar de “General Coca-Cola”, e apoiam a candidatura de Arlindo Vicente, anunciada em 20 de Abril. 

O regime foi apanhado de surpresa pela rapidez com que essas duas candidaturas se colocaram no terreno e só no dia 1 de Maio apresentaram o seu candidato, o então Ministro da Marinha. o contra-almirante Américo Tomáz, uma figura apagada e sem carisma e que surgiu como candidato de recurso da “União Nacional”, face à ruptura de Craveiro Lopes com o salazarismo. 

O carisma de Delgado acabou por se impor a toda a oposição, especialmente quando, numa conferência realizada no Café Chave de Ouro em Lisboa, em 10 de Maio, perante uma pergunta de um jornalista sobre o futuro de Salazar caso vencesse as eleições, o general pronunciou a célebre frase: Obviamente demito-o!”.
(a célebre sessão do Café Chave de Ouro)
 A partir daí a sua campanha foi em crescendo, com comícios gigantescos, como o do Porto em 14 de Maio, ou na sua recepção em Santa Apolónia, em 16 de Maio. 
(Delgado no Porto) 
Perspectivando uma oportunidade para pôr fim ao regime, Arlindo Vicente e os seus apoiantes assinam um acordo com Delgado, o chamado “Pacto de Cacinhas”, assinado em 30 de Maio, unificando a candidatura da oposição na figura do “General sem Medo” (1). 

Também em Torres Vedras esse período foi vivido com grande agitação.

 Na sua edição de 13 de Maio o jornal “República” divulgou um manifesto de apoio à candidatura de Arlindo Vicente , distribuído no concelho de Torres Vedras, transcrevendo-o na integra. Apresentando Arlindo Vicente como o “candidato próprio” da “Oposição Democrática” e o programa da candidatura, esse “manifesto” apela à formação de “uma ampla Comissão Eleitoral Concelhia pró-Candidatura”, e é assinado em nome dessa Comissão por António Catarino, Arnaldo Pedro Faria Rodrigues, Carlos Augusto Bernardes, Carlos Augusto Bernardes Portela, Emílio Luís Costa, Fernando Coelho da Silva, Fernando Vicente, Francisco Matias, João Carvalho Mesquita, João Ferreira dos Santos, João de Oliveira, Joaquim Augusto de Oliveira, Luís Adelino, Luís Perdigão, Mário de Almeida Carvalhosa, Miguel Cunha, Pedro Mendes Fernandes, Reinaldo Ferreira da Silva e Rui da Costa Tomás dos Santos. 

Em 18 de Maio teve lugar, a partir das 21 horas, no Teatro-Cine Ferreira da Silva, uma sessão de apoio a Arlindo Vicente, com a presença do candidato, sessão anunciada nas páginas do jornal “República” , na sua edição de 17 de Maio, e que merece amplo destaque de primeira página naquele mesmo diário, destacando o “Grande Entusiamo” que se viveu nessa sessão, perante uma sala “completamente cheia”. 

A sessão foi aberta pelo próprio candidato que convidou para a mesa “João Carvalho Mesquita, Mário Carvalhosa, Pedro Fernandes, Arnaldo Pedro Faria, Fernando Vicente e D. Leónia Augusta Rodrigues todos membros da comissão concelhia de Torres Vedras”. Usaram da palavra Luís de Almeida Perdigão, João Carvalho Mesquita, José Prudêncio, a escritora Lília da Fonseca e Arnaldo Faria.

Pelo meio “uma comissão de senhoras subiu ao palco para oferecer ao candidato três ramos de rosas vermelhas, atadas com fitas das cores nacionais”, sendo igualmente oferecido ao candidato “um artístico barril, com vinho da região”.

 Logo após a desistência de Arlindo Vicente, a favor da candidatura de Humberto Delgado, o jornal “República” de 1 de Junho anuncia para esse dia, sem aprofundar o teor da mesma, a realização de uma sessão de “propaganda oposicionista” em Torres Vedras, onde usaram da palavra a “Drª D. Maria Isabel Aboim Inglês e os srs. Alexandre Cabral, Dr. Vareda, Dr. Palma Carlos, Demétrio Duarte, D. Maria Alçada Padez e Domingos Carvalho”. 

Refira-se que Humberto Delgado não esteve presente em Torres Vedras durante qualquer comício ou manifestação durante essa campanha eleitoral.

 Contudo, o general já tinha estado em Torres Vedras, mas quando ocupava um importante cargo da aeronáutica portuguesa, ainda longe da ruptura com o regime, por ocasião da inauguração do hangar do aeroclube de Torres Vedras em Santa Cruz, em Setembro de 1946, então como representante oficial do governo salazarista. 

Voltando ao ano de 1958, num folheto aqui reproduzido, divulgou-se a lista dos lugares em Torres Vedras onde os apoiantes locais podiam levantar as "listas eleitorais" (os votos) para votarem em Humberto Delgado: na Papelaria Progresso, no consultório do Dr. Troni, no escritório do Dr. Carvalho dos Santos, na Alfaiataria de Mário Carvalhosa, na Papelaria Ribeiro e na Loja de Francisco Matias.
 
 Com a data de Junho foi distribuído  um folheto de apoio a Delgado, intitulado “Ao Povo de Torres Vedras”, distribuído no dia 1 desse mês, assinado pelos membros da Comissão Concelhia dessa candidatura. 

Segundo a PIDE, a distribuição foi feita por “Adalberto Carvalho dos Santos, Dr. Troni, António Leal d’Ascenção, Antolins e Victor Fonseca, que se deslocaram nos seus automóveis”.

 Faziam parte dessa Comissão Adalberto Simões de Carvalho, contabilista, Augusto Bastos Troni, médico, José Carvalho Mesquita, professor, todos classificados como “comunistas” pela PIDE, António Leal d ‘ Ascenção, comerciante, António Soares Antolin, comerciante, Ernesto Carvalho dos Santos, advogado, Faustino Soares de Antolin Hourmat, comerciante, Francisco Roque Gomes Ferreira, médico e proprietário, Luís Brandão Pereira de Melo, contabilista, Victor Cesário da Fonseca, comerciante e industrial, estes classificados pela mesma polícia como “Democratas, maçons” , Adriano Estevinha Lopes, proprietário e Armando Pedro Lopes, estes dois últimos registados como “novos” pela mesma policia politica.

 A mesma policia chamava a atenção para dois nomes, Adalberto Carvalho, “individuo manifestamente comunista e perigoso”  e para Faustino Soares Antolin, que era director “do Campo de Aviação de Santa Cruz e” tinha “à sua disposição um avião de turismo biplace Piper-Club e um avião de carcteristicas militares Tinger Moth, cedido pela Aeronutica Militar ao Aero Club de Torres Vedras” (2).

 Da propaganda do candidato do Estado Novo, Américo Tomaz, encarregaram-se as estruturas locais do regime, como a União Nacional, a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa e a Câmara Municipal, como se revela pela leitura do jornal “Voz do Oeste” , mensário da Comissão Concelhia da União Nacional em Torres Vedras, que dedica quase toda a edição de 25 de Maio ao tema, ainda antes da unificação das candidaturas da oposição. 

A primeira página dessa edição, como uma fotografia de Américo Thomaz, sob o título “Três Candidatos”, procurou fazer uma apresentação dos candidatos, obviamente realçando, ao longo das páginas do jornal, as “qualidades” do candidato oficial do Estado Novo. 

Américo Thomaz é apresentado pelo jornal torriense como “o homem que tem por fiador Salazar, e que portanto é a garantia de que continuaremos a viver em paz em ordem e dignidade”, enquanto, pelo contrário, Humberto Delgado era “o homem que, para chamar a atenção sobre si mesmo nesta campanha, precisou de dar espectáculo, num recital de frases caricatas, impolíticas e ofensivas (…) com palavras repassadas de ódio”, e Arlindo Vicente “o homem a quem os comunistas apoiam, e isto, ao país, basta”. 

O mesmo mensário da UN torriense inclui na primeira página um apelo aos eleitores: “Quereis os tempos da desordem e das revoluções?“Se quereis, deixai-vos ficar em casa com medo dos homens que, indiferentes ao ridículo e ao grotesco berram que são os homens sem medo.“Se quereis voltar a acordar ao som dos tiros e das bombas votai no General Humberto delgado ou no Dr. Arlindo Vicente.“eles vos farão a vontade dando-vos os partidos, e atrás dos partidos, a intranquilidade (…)”.

 Grande parte do jornal divide-se entre tentar desmontar e desacreditar os candidatos da oposição, em especial Humberto Delgado, apresentando-se em grande destaque as opiniões de apoio ao salazarismo que este tinha revelado nos anos 30, como “prova” da sua “incoerência” e, com menos destaque, denunciando as ligações de Arlindo Vicente aos comunistas, chegando mesmo, para o efeito, a transcrever um longo texto do jornal “Avante” onde se justificava o apoio do PCP ao candidato.

 Relatava ainda um episódio passado em Torres Vedras, “do dia em que fez a sua sessão nesta vila”.

Quando o candidato, Arlindo Vicente,  “seguia a pé para o Teatro, a certa altura, voltando-se, reparou que um oficial, encarregado de manter a ordem, mantinha-a mesmo.“O Dr. Arlindo interpelou-o:

“ – Parece impossível que o Governo…
“ – V. Ex.ª – replicou o oficial  - reclame ao Governo; eu cumpro e cumprirei as ordens.
“ – Mas olhe que eu posso vir a ser eleito Presidente da República…
“ – Não interessa – atalhou o oficial – quando V. Ex.ª for eleito Presidente, eu continuarei a cumprir as ordens que receber.”. 

O outro jornal que então se editava em Torres Vedras, então quinzenário, o “Badaladas”, pouco destaque deu à campanha eleitoral, limitando-se a transcrever, na sua edição de 1 de Junho, um artigo do jornal “Novidades” sobre a posição oficial da Igreja, que, sem nomear o candidato, assumia, nas entrelinhas, o apoio ao candidato do regime, e dois artigos de opinião, um da autoria de Maria da Conceição Gomes Leal e outro de Teixeira de Figueiredo, de apoio a Salazar a ao seu candidato.

 A campanha eleitoral acabou em 4 de Junho e as eleições decorreram no dia 8.

 Américo Thomás venceu com mais de 70% de votos, sob suspeita de uma enorme fraude eleitoral, agravada pelo próprio funcionamento dos actos “eleitorais” do salazarismo, com caderno eleitorais forjados, sem a presença de representantes da oposição na maior parte das mesas eleitorais, com a censura a impedir  a divulgação das candidaturas em condições de igualdade na imprensa e a PIDE a dificultar a realização de manifestações e comícios por parte do candidato Delgado, sem esquecer o facto de os votos, que os eleitores transportavam consigo, terem cores e formatos diferentes conforma as candidaturas, o que permitia conhecer em quem se votava, um forte factor dissuasor, sabendo-se que, assim que terminava o acto eleitoral, se seguia uma onda de prisões.
(folheto da candidatura de Humberto Delgado, com indicações sobre a forma de exercer o voto) 
O resultado eleitoral no concelho, que aqui publicamos, foi divulgado nas páginas do Jornal “Voz do Oeste” de 25 de Junho. 

É de registar que, apesar de todas as dificuldades com que se confrontou a candidatura de Humberto Delgados e das fraudes registadas, este conseguiu vencer o candidato do regime numa das mesas do Maxial, obtendo igualmente bons resultados em Matacães, Monte Redondo, Ramalhal e na mesa de S. Pedro, na vila.
Delgado teve de fugir para o estrangeiro e foi assassinado em 13 de Fevereiro de 1965, em Espanha, por uma brigada da PIDE, depois de ser atraído a uma cilada, brigada essa comandada por Rosa Casaco. Casimiro Monteiro terá sido o seu executor (3). 

Arlindo Vicente dedicou-se às artes plásticas, continuando a conspirar contra o regime, falecendo em 1977. 

A partir de então as eleições presidenciais deixaram de ser se realizar por “voto universal” e Américo Tomaz voltou a ser reeleito por um colégio eleitoral escolhido pelo Estado Novo até ser derrubado no 25 de Abril de 1974. 
 (1)    – Existem diversos estudos e memórias sobre esta eleição e sobre Humberto Delgado. Muitos documentos sobre este acontecimento estão em linha, no site da Fundação Mário Soares. A melhor síntese sobre as eleições presidenciais de 1958 é o livro “Humberto Delgado – As Eleições de 58”, coordenado por Iva Delgado, Carlos Pacheco e Telmo Faria, com prefácio de Fernando Rosas, ed. Veja, 1998.

(2)    – Torre do Tombo, Arquivo da PIDE, processo de 3194-SR/56, de Armando Pedro Lopes.

(3)    – Sobre o assassinato do General Humberto Delgado leia-se a reportagem de José Pedro Castanheira intitulada “Rosa Casaco conta tudo”, publicada na “Revista” do jornal “Expresso” de 14 de Fevereiro de 1998, acessível na internet.
  
(uma versão resumida desta texto foi publicada na nossa secção "Vedrografias", no jornal "Badaladas" de 15 de Junho de 2018)

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