quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Ainda o 40º aniversário da CCC : um texto de Aurelindo Ceia


    "ÁREA, BREVE HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA

por AURELINDO CEIA

    "Estávamos em finais de 1978. O Portugal democrático estava em plena construção, num  processo onde se cruzavam realizações, contradições, insuficiências e desejos – esbracejando na aprendizagem (teórica e prática) do viver em liberdade.

   "Este processo, depois de quatro décadas do fascismo lusitano, veio a revelar-se bem mais difícil do que a simples vontade de o concretizar. Muitas alegrias, no meio de inúmeras decepções.

 "Demora a aprender o modo de passar do sonho à realidade, porque a liberdade tem que ser arduamente construída, nunca nos é ofertada numa embalagem fácil. E é condição necessária à democracia, mas não suficiente.

  " O 25 de Abril cavou muito sobre a nossa alegria ingénua e sobre as nossas fragilidades. Sair de quatro décadas de obscurantismo implica longas marchas em vias abertas na esperança, mas detrás de cujas margens começaram logo a emergir monstros diversos para assalto ao poder. Isto para além do ressabiamento e desejo de vingança dos vencidos, súbita e inesperadamente despojados das benesses e dos longos banquetes da ditadura salazarenta.  
   
   "No dia 22 de Setembro de 1978 dezoito jovens reuniram na praia de Santa Cruz, em casa do Fernando Mouro e da Manuela Ribeiro, com o objectivo de fundar um jornal.

  " Parecia fácil. Era, pelo menos bem intencionado – concretizar algo para poder partilhar com os outros as alegrias, as críticas e as expectativas da revolução de Abril, quatro anos depois.

  " Ainda não era bem um jornal – a ideia era mais a de uma “revista”, não se temiam quaisquer obstáculos. Todos se dispuseram a colaborar nas diferentes secções de trabalho. A coisa era ambiciosa: desde a história e a educação, até à música, literatura, cinema, ecologia, religiões fotografia, psicologia, sociologia política, teatro, saúde... Só.

 "  Primeira decisão: organizar um grupo para marchar até Lisboa, onde se realizariam contactos com agências publicitárias, gráficas, distribuidoras, sindicato dos jornalistas. Objectivo: perceber as condições concretas para começar a construir um edifício com estruturas sólidas.

  " Na segunda reunião, uma semana depois, analisaram-se as informações colhidas e percebeu-se que não adiantava avançar nada por fora, sem estruturar a ideia por dentro.

 "  Objectivos aprovados para a (ainda) revista? Primeiro: ter como alvo a “população do distrito de Lisboa, especialmente região do Oeste”. Restantes: complicado, seriam discutidos na reunião seguinte.

 "  Entretanto, achou-se por bem consultar a “lei de imprensa” e, no terceiro encontro (6 de Outubro), as catorze pessoas então presentes debateram os erros a evitar, abordaram algumas alternativas e tentaram distribuir os colaboradores pelos principais temas entretanto afinados.

  " A 10 de Outubro foi enfim possível encontrar os responsáveis pelos assuntos principais: criatividade, direito à diferença, informação, teatro, sociedade em análise, bd, música...

  " Será interessante que se mencionem alguns dos nomes que resistiam então desde a primeira hora: Fernando Mouro, Manuela Ribeiro, Venerando António, Guilhermina Pacheco, Armando Jorge, Joaquim Esteves, Carlos Ferreira, Jorge Vareda, Travanca Rodrigues, Jorge Barata, Constância Bataglia, Luis Filipe Rodrigues, o Ceia na parte gráfica. Outros se lhe vieram juntar, como o Vitor-Luis Grilo (primeiro director indigitado, que recusou por, aparentemente, não lidar muito bem com o razoável granel naturalmente instalado) e o José Eduardo Miranda (que viria a ser o primeiro director).

 "  A ideia da revista desaparece das actas e, a partir de 18 de Outubro já se fala de “jornal”.

 "  Um ano correrá ainda, antes do primeiro número sair dos prelos, em Novembro. Entretanto, o trabalho não pára. Duas questões importantes surgem. Uma, o contacto com a imprensa próxima, “Oeste Democrático”, “Badaladas” e “Gazeta das Caldas”.

"Outra: “questões relacionadas com objectivos e viabilidade técnica e financeira da publicação”.

"Pequenas coisas, não é? O entusiasmo não esmorecia, talvez porque o mundo da realidade estava ainda muito embalado no mundo dos sonhos. Mas, pergunta-se: não é assim que deve ser? De outro modo, como avançar, como progredir, como inovar? E foi isso mesmo que o futuro ÁREA procurou fazer, em boa parte o tendo conseguido. “Viabilidade financeira”? Claro que havemos de lá chegar! Pensar, escrever, paginar, editar, administrar, distribuir, vender – isso tudo se conseguirá, verão! A verdade é que, nos primeiros tempos, o núcleo de trabalho inicial, com mais uma ou duas aquisições, o conseguiu fazer.

   "Ainda se não mencionou outro aspecto. Quem ou que organização assumiria a propriedade legal da publicação? Achou-se que este problema seria resolvido com a criação de uma Cooperativa cultural – que vem a denominar-se “Cooperativa de Comunicação e Cultura” (1).

  " O título do jornal começou a ser debatido nas primeiras reuniões de Novembro.

  " Avançam-se, em jeito de curiosidade, com alguns dos nomes, dos mais de três dezenas sugeridos e sujeitos a votação do grupo: Novoeste, Encontro, Diálogo, Interoeste, Ensaio, A Palavra, Novos Caminhos, Evolução, Pesquisa, Novo, Oeste Regional, Fase 1, Gazetilha, Espaço, Terra Cultura, Terra Nova...

 "   Um nome – ÁREA – curiosamente, nunca foi mencionado e não aparece nas hipóteses em discussão registadas nos papéis do Venerando, mas veio a ser o escolhido numa reunião em que foi proposto pelo A. Ceia, que entretanto já apresentara uma maquette para a capa. Será aqui justo que se registe ter o José Pedro Sobreiro sido entretanto proposto pelo Vitor-Luis Grilo para responsável gráfico, ideia que não chegou a vingar.

"   A Cooperativa assumiu o papel de suporte legal do jornal e passou a promover diversas actividades culturais, para apresentação da ideia à comunidade. A primeira realiza-se em 18 Novembro de 1979, já com Torres promovida a cidade, para lançamento do número 1 do ÁREA – “1º. Passeio de Domingo - Um itinerário histórico em Torres Vedras”, liderado por Cecília Travanca e Manuela Ribeiro.

  " O jornal insiste numa tonalidade local, aberta à modernidade e à diversidade cultural. O número inaugural publica uma extensa mesa redonda (5 páginas) – “Torres Vedras, Cidade / Novos Rumos, Velhos Problemas”, na qual participam Alberto Avelino, António Augusto Sales, Filomena Moura Guedes, José António Gomes e Padre José Manuel. Durante muito tempo o público se interrogou, perplexo sobre “quem estaria por trás deste arraial de putos” – isto é: que partido movimentava estas tropas? Nunca o desvendaram, pela elementar razão de não haver nenhum! Os jovens (na maioria estudantes e professores) queriam agir, com prazer e sentido cívico, apenas. Pena que o tal pormenor “viabilidade financeira” tenha sempre sido encarado com excessivo optimismo (sejamos simpáticos). Após a saída dos dois primeiros números o gerente da tipografia “Sogratol” mandou parar as máquinas, face às dificuldades em resolver a factura da respectiva produção.

  " As coisas depois equilibraram-se, porque a direcção da Cooperativa conseguiu encontrar uma gráfica alternativa (a Grafibom, do Bombarral) e reunir fundos que fossem permitindo aguentar uma publicação mais ou menos periódica. O jornal, “mensal”, publicaria até Junho de 1981 treze edições... Nesta altura assiste-se a uma cisão dentro do pessoal que fazia e vendia o jornal, e que era, em boa parte, pessoal da Cooperativa. O seu director, José Eduardo Miranda, publicou então um Editorial (assinado, ironicamente, por “Os putos do ÁREA”), onde dizia, despedindo-se até Outubro: “Aliás, só nos lê quem gosta, quem quer, quem pode. E, quem gosta, quer. E como ‘querer é poder’, somos um jornal difícil para toda a gente.”

 "  O número seguinte sairia em... Junho de 1982, dirigido agora por Luis Filipe Rodrigues.

"   Número 15, Junho 1983; número 16, Novembro 1984; número 17, número 17, Abril 1990, número 18, Novembro 1999; número 19, Outubro 2009...

  " Esta sequência diz tudo sobre a morte lenta – adiada – de um projecto editorial cujas bases amadoras não foram suficientes. O entusiasmo precisava de estrutura. Esgotou-se. A soma das ideias e dos sonhos sucumbiu à dureza da realidade e, sejamos claros, à inexistência de uma orgânica profissional. Há quem opine que o esforço feito para desenvolver o programa cultural da Cooperativa terá matado o projecto jornalístico. Na realidade, os activistas eram basicamente os mesmos. A verdade é que a Cooperativa foi crescendo, até à construção de uma sede e do seu “Centro de Cultura Contemporânea” e a sua dimensão e perspectivas foram também criando contradições internas, algumas insanáveis. Hoje, o projecto cultural para Torres Vedras mantém-se e foi acrescentado de novas instalações e novos objectivos com a “Câmara Escura”, trabalhando na área da fotografia contemporânea, em torno de (outro) grupo de jovens entusiastas.

 "  Quarenta anos se passaram. A sede da Cooperativa de Comunicação e Cultura, na rua da Cruz, continua aberta e as actividades sucedem-se, em menor número que há dez, vinte, trinta anos, mas prosseguindo uma ideia teimosa: criação de um clima cultural.

 "  Torres Vedras, mesmo que o não queira ou não saiba, merece o trabalho inovador destes novos putos...

 "  (1)  Designação sugerida por Aurelindo Ceia
  
"   Nota:
   Este texto foi escrito a partir dos apontamentos e actas das reuniões, recolhidos por Venerando António".



    

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