"ÁREA, BREVE HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA
por AURELINDO CEIA
"Estávamos em finais de 1978. O Portugal
democrático estava em plena construção, num processo onde se cruzavam realizações, contradições,
insuficiências e desejos – esbracejando na aprendizagem (teórica e prática) do
viver em liberdade.
"Este processo, depois de quatro décadas do
fascismo lusitano, veio a revelar-se bem mais difícil do que a simples vontade
de o concretizar. Muitas alegrias, no meio de inúmeras decepções.
"Demora a
aprender o modo de passar do sonho à realidade, porque a liberdade tem que ser arduamente
construída, nunca nos é ofertada numa embalagem fácil. E é condição necessária
à democracia, mas não suficiente.
" O 25 de Abril cavou muito sobre a nossa
alegria ingénua e sobre as nossas fragilidades. Sair de quatro décadas de
obscurantismo implica longas marchas em vias abertas na esperança, mas detrás
de cujas margens começaram logo a emergir monstros diversos para assalto ao
poder. Isto para além do ressabiamento e desejo de vingança dos vencidos,
súbita e inesperadamente despojados das benesses e dos longos banquetes da
ditadura salazarenta.
"No dia 22 de Setembro de 1978 dezoito jovens
reuniram na praia de Santa Cruz, em casa do Fernando Mouro e da Manuela Ribeiro,
com o objectivo de fundar um jornal.
" Parecia fácil. Era, pelo menos bem
intencionado – concretizar algo para poder partilhar com os outros as alegrias,
as críticas e as expectativas da revolução de Abril, quatro anos depois.
" Ainda não era bem um jornal – a ideia era
mais a de uma “revista”, não se temiam quaisquer obstáculos. Todos se
dispuseram a colaborar nas diferentes secções de trabalho. A coisa era
ambiciosa: desde a história e a educação, até à música, literatura, cinema,
ecologia, religiões fotografia, psicologia, sociologia política, teatro, saúde...
Só.
" Primeira decisão: organizar um grupo para
marchar até Lisboa, onde se realizariam contactos com agências publicitárias,
gráficas, distribuidoras, sindicato dos jornalistas. Objectivo: perceber as
condições concretas para começar a construir um edifício com estruturas
sólidas.
" Na segunda reunião, uma semana depois,
analisaram-se as informações colhidas e percebeu-se que não adiantava avançar
nada por fora, sem estruturar a ideia
por dentro.
" Objectivos aprovados para a (ainda) revista?
Primeiro: ter como alvo a “população do distrito de Lisboa, especialmente
região do Oeste”. Restantes: complicado, seriam discutidos na reunião seguinte.
" Entretanto, achou-se por bem consultar a
“lei de imprensa” e, no terceiro encontro (6 de Outubro), as catorze pessoas então
presentes debateram os erros a evitar, abordaram algumas alternativas e
tentaram distribuir os colaboradores pelos principais temas entretanto
afinados.
" A 10 de Outubro foi enfim possível encontrar
os responsáveis pelos assuntos principais: criatividade, direito à diferença,
informação, teatro, sociedade em análise, bd, música...
" Será interessante que se mencionem alguns
dos nomes que resistiam então desde a primeira hora: Fernando Mouro, Manuela
Ribeiro, Venerando António, Guilhermina Pacheco, Armando Jorge, Joaquim
Esteves, Carlos Ferreira, Jorge Vareda, Travanca Rodrigues, Jorge Barata,
Constância Bataglia, Luis Filipe Rodrigues, o Ceia na parte gráfica. Outros se
lhe vieram juntar, como o Vitor-Luis Grilo (primeiro director indigitado, que
recusou por, aparentemente, não lidar muito bem com o razoável granel naturalmente instalado) e o José
Eduardo Miranda (que viria a ser o primeiro director).
" A ideia da revista desaparece das actas e, a
partir de 18 de Outubro já se fala de “jornal”.
" Um ano correrá ainda, antes do primeiro
número sair dos prelos, em Novembro. Entretanto, o trabalho não pára. Duas
questões importantes surgem. Uma, o contacto com a imprensa próxima, “Oeste
Democrático”, “Badaladas” e “Gazeta das Caldas”.
"Outra:
“questões relacionadas com objectivos e viabilidade técnica e financeira da
publicação”.
"Pequenas
coisas, não é? O entusiasmo não esmorecia, talvez porque o mundo da realidade
estava ainda muito embalado no mundo dos sonhos. Mas, pergunta-se: não é assim
que deve ser? De outro modo, como avançar, como progredir, como inovar? E foi
isso mesmo que o futuro ÁREA procurou fazer, em boa parte o tendo conseguido.
“Viabilidade financeira”? Claro que havemos de lá chegar! Pensar, escrever,
paginar, editar, administrar, distribuir, vender – isso tudo se conseguirá,
verão! A verdade é que, nos primeiros tempos, o núcleo de trabalho inicial, com
mais uma ou duas aquisições, o conseguiu fazer.
"Ainda se não mencionou outro aspecto. Quem
ou que organização assumiria a propriedade legal da publicação? Achou-se que
este problema seria resolvido com a criação de uma Cooperativa cultural – que
vem a denominar-se “Cooperativa de Comunicação e Cultura” (1).
" O título do jornal começou a ser debatido
nas primeiras reuniões de Novembro.
" Avançam-se, em jeito de curiosidade, com
alguns dos nomes, dos mais de três dezenas sugeridos e sujeitos a votação do
grupo: Novoeste, Encontro, Diálogo, Interoeste, Ensaio, A Palavra, Novos Caminhos,
Evolução, Pesquisa, Novo, Oeste Regional, Fase 1, Gazetilha, Espaço, Terra
Cultura, Terra Nova...
" Um nome – ÁREA – curiosamente, nunca foi
mencionado e não aparece nas hipóteses em discussão registadas nos papéis do
Venerando, mas veio a ser o escolhido numa reunião em que foi proposto pelo A.
Ceia, que entretanto já apresentara uma maquette para a capa. Será aqui justo
que se registe ter o José Pedro Sobreiro sido entretanto proposto pelo
Vitor-Luis Grilo para responsável gráfico, ideia que não chegou a vingar.
" A Cooperativa assumiu o papel de suporte
legal do jornal e passou a promover diversas actividades culturais, para
apresentação da ideia à comunidade. A primeira realiza-se em 18 Novembro de
1979, já com Torres promovida a cidade, para lançamento do número 1 do ÁREA –
“1º. Passeio de Domingo - Um itinerário histórico em Torres Vedras”, liderado
por Cecília Travanca e Manuela Ribeiro.
" O jornal insiste numa tonalidade local,
aberta à modernidade e à diversidade cultural. O número inaugural publica uma
extensa mesa redonda (5 páginas) – “Torres Vedras, Cidade / Novos Rumos, Velhos
Problemas”, na qual participam Alberto Avelino, António Augusto Sales, Filomena
Moura Guedes, José António Gomes e Padre José Manuel. Durante muito tempo o público
se interrogou, perplexo sobre “quem estaria por trás deste arraial de putos” –
isto é: que partido movimentava estas tropas? Nunca o desvendaram, pela
elementar razão de não haver nenhum! Os jovens (na maioria estudantes e
professores) queriam agir, com prazer e sentido cívico, apenas. Pena que o tal pormenor “viabilidade financeira” tenha
sempre sido encarado com excessivo optimismo (sejamos simpáticos). Após a saída
dos dois primeiros números o gerente da tipografia “Sogratol” mandou parar as
máquinas, face às dificuldades em resolver a factura da respectiva produção.
" As coisas depois equilibraram-se, porque a
direcção da Cooperativa conseguiu encontrar uma gráfica alternativa (a
Grafibom, do Bombarral) e reunir fundos que fossem permitindo aguentar uma
publicação mais ou menos periódica. O jornal, “mensal”, publicaria até Junho de
1981 treze edições... Nesta altura assiste-se a uma cisão dentro do pessoal que
fazia e vendia o jornal, e que era, em boa parte, pessoal da Cooperativa. O seu
director, José Eduardo Miranda, publicou então um Editorial (assinado,
ironicamente, por “Os putos do ÁREA”), onde dizia, despedindo-se até Outubro: “Aliás, só nos lê quem gosta, quem quer, quem
pode. E, quem gosta, quer. E como ‘querer é poder’, somos um jornal difícil
para toda a gente.”
" O número seguinte sairia em... Junho de 1982, dirigido agora por
Luis Filipe Rodrigues.
" Número 15, Junho 1983; número 16, Novembro
1984; número 17, número 17, Abril 1990, número 18, Novembro 1999; número 19,
Outubro 2009...
" Esta
sequência diz tudo sobre a morte lenta – adiada – de um projecto editorial
cujas bases amadoras não foram suficientes. O entusiasmo precisava de
estrutura. Esgotou-se. A soma das ideias e dos sonhos sucumbiu à dureza da
realidade e, sejamos claros, à inexistência de uma orgânica profissional. Há
quem opine que o esforço feito para desenvolver o programa cultural da
Cooperativa terá matado o projecto jornalístico. Na realidade, os activistas
eram basicamente os mesmos. A verdade é que a Cooperativa foi crescendo, até à
construção de uma sede e do seu “Centro de Cultura Contemporânea” e a sua
dimensão e perspectivas foram também criando contradições internas, algumas
insanáveis. Hoje, o projecto cultural para Torres Vedras mantém-se e foi
acrescentado de novas instalações e novos objectivos com a “Câmara Escura”,
trabalhando na área da fotografia contemporânea, em torno de (outro) grupo de
jovens entusiastas.
" Quarenta anos se passaram. A sede da
Cooperativa de Comunicação e Cultura, na rua da Cruz, continua aberta e as
actividades sucedem-se, em menor número que há dez, vinte, trinta anos, mas
prosseguindo uma ideia teimosa: criação de um clima cultural.
" Torres Vedras, mesmo que o não queira ou não
saiba, merece o trabalho inovador destes novos putos...
" (1)
Designação sugerida por Aurelindo Ceia
" Nota:
Este texto foi escrito a partir dos
apontamentos e actas das reuniões, recolhidos por Venerando António".
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