quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Uma passagem de Joaquim Mouzinho de Albuquerque por Torres Vedras, em 1898


Figura controversa do colonialismo português do século XIX, mitificado pelo Estado Novo, Joaquim Mouzinho de Albuquerque ficou conhecido pelo episódio de Chaimite, em Moçambique, em Dezembro de 1895, que levou à prisão do célebre líder local Gungunhana.

Nomeado Governador-Geral de Moçambique em 1896, regressou a Portugal em Dezembro de 1897, sendo recebido com grandes manifestações calorosas por parte da população, fazendo depois uma digressão pelo país e pelo estrangeiro.

Numa dessas digressões, uma viagem de comboio até Leiria para homenagear a sua centenária avó, passou por Torres Vedras.

As autoridades locais prepararam uma recepção apoteótica, descrita nas páginas do jornal “A Vinha de Torres Vedras”, órgão de informação conotado com o chamado Partido Progressista, dominante no executivo municipal até à República, um dos partido do rotativismo da segunda metade do século XIX. O outro partido era o “regenerador”.

A passagem por Torres Vedras, a caminho de Leiria, de tão ilustre personagem, foi noticiada na edição de 30 de Dezembro de 1897 no jornal “A Vinha e Torres Vedras”, que, na sua edição de 6 de Janeiro de 1898, faz o relato detalhado dos principais momentos dessa visita.

Foi no dia 5 de Janeiro de 1898, uma 4ª feira, que Mouzinho passou pela então vila de Torres Vedras.

Mouzinho de Albuquerque foi acompanhado na viagem de comboio, desde a sua saída da estação do Rossio, pelo “sr. Alfredo Lecoq, deputado” pelo círculo eleitoral de Torres Vedras, pelo cunhado deste, “o sr. Joaquim Belford e pelos srs. Dr. Hermínio Duarte Ferreira e Dr. João Gualberto de Barros e Cunha”, este então redactor principal do jornal “A Vinha de Torres Vedras”, “como representantes do centro progressista d’esta villa e do syndicato agricola da região de Torres Vedras”. Mouzinho era também acompanhado pela esposa e pelo cunhado.

Todas aquelas personalidades “tomaram lugar no salão que a companhia real [do caminho-de-ferro] tinha posto à disposição do illustre official”.

Uma primeira paragem teve lugar na estação da Malveira para as saudações do comandante e oficiais da escola prática de infantaria e do executivo camarário de Mafra.

Nova cerimónia teve lugar quando o comboio chegou à primeira estação do concelho de Torres Vedras, a estação de Pêro Negro.

Recorde-se que, à data, o concelho torriense integrava o território do extinto concelho de Sobral de Monte Agraço, fruto de uma contestada decisão tomada pelo decreto de 26 de Setembro de 1895 que tinha extinto esse concelho e o de Arruda dos Vinhos, integrado-os no concelho de Torres Vedras, ao mesmo tempo que a freguesia torriense da Freiria era integrada nos limites de Mafra. Curiosamente, 10 dias depois da referida visita, em 15 de Janeiro de 1898, aqueles dois municípios voltaram a ganhar autonomia, ao mesmo tempo que a freguesia da Freiria foi reintegrada no concelho de Torres Vedras.

Esse foi o motivo de ter sido a estação de Pêro Negro, hoje pertencente ao Sobral, a escolhida pelo executivo torriense para receber o ilustre visitante, acompanhando-o a partir daí na viagem até Torres Vedras.

Um novo momento dessa viagem teve lugar na estação de Dois Portos, onde o comboio era aguardado pela “philarmónica da Ribaldeira, acompanhada de muito povo que recebeu com vivas e foguetes a chegada do comboio”.

Nessa estação, o visitante foi apresentado ao “sr. Silvério Botelho de Sequeira, secretario do syndicato agricola” e a “outros cavalheiros d’aquella freguesia”.

Na estação seguinte, a de Runa “estava na gare toda a officialidade do Asylo [militar], corpo de inválidos, e bastante povo”, sendo aí “Mousinho d’Albuquerque enthusiasticamente saudado”.

A maior recepção esperava-o na estação da vila:

“Renunciamos a descrever o aspecto verdadeiramente imponente que apresentava a gare d’esta villa, cuja ornamentação fôra dirigida pelo thesoureiro da commissão do Grémio Artístico Commercial, o sr. José Miranda, vistosamente embandeirada, e apinhada de povo a ponto de difficilmente se poder romper por entre a multidão compacta. A um lado da plataforma  via-se um numeroso pelotão dos soldados d’este concelho que hoje pertencem à reserva, e que tomaram parte nas batalhas de Moçambique. Eram ao todo 72 praças, de caçadores 7, cavallaria 2 e 4, e artilharia 1 e 6, todos uniformisados , tendo ao peito a medalha da Rainha D. Amélia, e commandados pelo sargento expedicionário de artilharia Luiz Augusto de Couto Lima.

“Ao centro via-se o Grémio Artístico Commercial, agrupado em volta do seu estandarte  hasteado pelo sócio José Cabral”.

Nessa ocasião Mouzinho recebeu “uma bonita pasta de pelluche azul e branca contendo o diploma de sócio honorário” concedido por essa colectividade.

“Três filarmónicas, duas d’esta villa e uma do Turcifal prestaram-se espontaneamente a abrilhantar a recepção”.

Depois de discursar o “sr. Lecoq, exaltando as vitorias militares do visitante”, subiram à carruagem salão, para o cumprimentarem, as “autoridades do concelho”, entre elas o administrador do concelho e o cónego António Francisco da Silva.

Agradecendo a recepção, Mouzinho não deixou de recordar a memória do seu avô, sepultado na Igreja de S. Pedro, falecido nesta vila na sequência de ferimentos sofridos na Batalha de Torres Vedras em 22 de Dezembro de 1846, um dos episódios mais dramáticos da guerra civil da Patuleia.

O comboio partiu depois a caminho de Leiria, juntando-se para o acompanhar até à última estação do concelho, a do Outeiro da Cabeça, várias personalidades locais e representantes de várias colectividades.

Os festejos continuaram em Torres Vedras, iluminando-se nessa noite o edifício da Câmara, a sede do Grémio Artístico e Comercial, a redacção do jornal “A Vinha de Torres Vedras”, a Associação 24 de Julho “e muitas casas particulares”.

“O Grémio Artístico mandou também illuminar o castelo com barricas d’alcatrão. Um grupo do Casino Torreense percorreu as ruas com archotes e acompanhado de uma filarmónica, dando vivas ao Mousinho de Albuquerque , ao executivo e à Pátria.

“O Casino deu também uma soirée  em honra” desse “nome glorioso”.

A pacatez habitual de uma vila de província do século XIX, muito marcada pelos ritmos agrícolas, foi assim marcada por um acontecimento incomum e que ficou na memória de muitos dos seus habitantes.

Incompatibilizado com os seus contemporâneos, desgostoso com a sua vida e a falta de reconhecimento , Mouzinho suicidou-se em 1902.

 

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