Comemora-se este ano o centenário da célebre travessia do Atlântico Sul, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro, preconizada por Gago Coutinho (1869-1959) e Sacadura Cabral (1891-1924), com recurso a três aviões e que decorreu entre 30 de Março e 17 de Junho de 1922.
O entusiasmo que esse feito despertou em Portugal deu um grande
contributo para a divulgação do avião, um meio de transporte que revolucionou a
forma de viajar (1).
O feito não passou despercebido aos torrienses da época e logo se
desenvolveu a ideia de criar condições para a prática de voo neste concelho.
Desconhecendo-se quando é que este conselho foi sobrevoado pela
primeira vez por esse novo meio de transporte, a primeira referência conhecida
e documentada sobre a aterragem de um avião na zona de Torres Vedras data de
1930.
Na sua edição de 31 de Agosto de 1930 o jornal “Gazeta de Torres”
anunciava, em título, um “Passeio de Aviadores” no concelho, programado para a
6ª feira seguinte, 5 de Setembro,
formado por “um grupo de aeroplanos da Esquadrilha de Aviação República”, da
Amadora, que se deslocava em excursão a Santa Cruz, prevendo-se a sua aterragem
“nas Várzeas defronte da Quinta d’Alfaiata”, sendo recebidos “pela rapaziada de
Santa Cruz que lhes oferecerá uma caldeirada fragateira servida nos pinhais
d’Alfaiata”.
O mesmo semanário publicou na sua edição de 7 de Setembro de 1930 uma
reportagem sobre esse dia histórico para o concelho de Torres Vedras.
Muito antes da hora marcada para a chegada dos aviadores, prevista para
as 10 da manhã, “já o vasto campo de Alfaiata se encontrava povoado por muitas
centenas de pessoas”.
O primeiro avião surgiu do lado norte, dando uma “volta sobre o campo,
em reconhecimento, e pouco depois o avião aterra”, um Marone 4 da esquadrilha
de Tancos, pilotado pelo capitão Frederico Costa, que resolveu “fazer uma
surpresa aos seus colegas da 5ª arma” que vinham da Amadora e que vão chegar um
pouco mais tarde.
Em curiosa entrevista recolhida pelo repórter da “Gazeta”, o primeiro
aviador a aterrar em solo torriense deu a sua opinião sobre o improvisado campo
de aviação junto à Quinta dos Casalinhos, que, sim, tinha condições, “aparte o
ter sido um campo de cultura, preparado à ultima hora, e que se ressente desse
facto. Já pela sua vastidão, já pela sua situação, este campo é, salvo os
pequenos inconvenientes que se encontram, devido mais à sua rápida
transformação que às suas condições naturais, um belo aeródromo. O seu terreno
demasiado macio, porque há poucos dias deixou de ser um terreno de cultura,
presta-se, depois de devidamente calçado, a ser um magnifico campo de aviação”.
Como veremos mais à frente, não foi este o local escolhido para a instalação do primeiro
aeródromo torriense.
Entretanto, surgem “ao longe, entre os flocos brancos das nuvens, mais
trez aviões”, e, mais atrás, outros dois.
Deste grupo da Esquadrilha da Aviação República da Amadora, aterra
primeiro o Vickers 9, “pilotado pelo tenente Umberto Cruz” acompanhado pelo
mecânico Ramos. “Há palmas na assistência , ao verem a sua aterragem, feita em pura perda, a melhor da tarde”.
Seguem-se as aterragens do Vickers 4, “tripulado pelo tenente Manuel
Gouveia, o heroe que acompanhou Brito Pais e Sarmento de Beires no seu glorioso
raid” (Lisboa-Macau em 1924), do “Vickers 6 com o capitão Sergio e o major
Cunha e Almeida”, do Vicker 8 com “o capitão Mendonça e o tenente Pimenta”, e,
por último, “o Breguet 11, com os tenentes Sanos Moreira e Cunha Abreu”.
“Um outro aeroplano surge no espaço, mas afasta-se passando a oeste do
campo na direcção norte”.
Público e aviadores juntam-se “na sombra da sádia dos pinhais de
Alfaiata”, comendo as suas merendas, enquanto “meia dúzia de fragateiros
preparam a caldeirada típica, que há de ser servida na sombra apetecível do
pinhal, há vinho branco de uma dezena de anos e anedotas do Pistachini, que
entreteem a assitencia”.
Depois de preparar a caldeirada, juntam-se todos à volta de uma mesa em
U, no meio do pinhal, onde o “vinho com gelo” é servido pelo “João Pedro”, e a
refeição pelo “Faustino Antolin”. Todos os participantes, com excepção dos
aviadores, “eram obrigados a levar copo, prato e talher”.
Terminada a refeição, e “depois do clássico cafezinho”, todos se
dirigem ao “improvisado campo de aviação”, de onde “os aeroplanos vão, um a um,
levantando de novo em direcção ao sul”, acompanhados de dois novos passageiros,
o tenente França Borges e o acima referido “João Pedro”.
Ainda antes do ano de 1930 acabar, anunciou-se que aquela Comissão de
Iniciativas tinha “resolvido tomar de arrendamento, pela quantia de 300$000
anuais, o terreno próximo de Santa Cruz destinado a pista de aviação”, tendo
igualmente aprovado “a verba de 3.000$000 para proceder ao nivelamento do mesmo
terreno” (3).
Esse terreno é aquele onde actualmente se localiza aeródromo de Santa
Cruz e foi usado pela primeira vez, como ensaio pré-inaugural, na aterragem de
“um aparelho” na 2ª feira, dia 27 de Abril de 1931 (4).
Para melhor servir esse aeródromo e a praia de Santa Cruz, iniciaram-se
os trabalhos, em Maio de 1931, da estrada camarária a ligar os Casalinhos
àquele local.
Na sua edição de 19 de Julho de 1931 o semanário “Gazeta de Torres”
anunciou a inauguração desse aeródromo no dia 27 desse mês, integrado num
pacote de melhoramentos para aquela praia, como a canalização da água, a linha
telefónica e um campo de ténis.
A festa foi abrilhantada pela Banda dos Bombeiros e contou com a
presença de várias “individualidades”, sendo a inauguração do campo de aviação
feita pela presença de “grande número de aviões”, oferecendo-se aos aviadores e
aos “elementos oficiais” um almoço, no Hotel Miramar.
Ao todo aterraram no novo aeródromo cerca de vinte aviões (5).
Só anos depois é que a gestão deste aeródromo ficou à responsabilidade do Aero Clube de Torres Vedras, a partir da inauguração oficial desta associação em 15 de Setembro de 1944.
(1) – leia-se o excelente dossier sobre esse acontecimento e a História da aviação em Portugal, na revista Visão-História nº 69 de Fevereiro de 2022;
(2) – in Gazeta de Torres de 7 de Setembro de 1931;
(3) – in Gazeta de Torres, de 7 de Dezembro de 1931;
(4) – in Gazeta de Torres, de 3 de Maio de 1931;
(5) – leiam-se as detalhadas reportagens desse evento nas edições dos jornais “Gazeta de Torres” e “Jornal de Torres Vedras” de 2 de Agosto de 1931. Leia-se também, sobre o assunto, a muito bem documentada edição da “Toitorres Notícias” nº 37, Março/Abril de 1996, com tratamento de texto de António Rodrigues e fotografias e outros documentos do arquivo de Adão de Carvalho.
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