Ao longo da sua História, a população de Torres Vedras assistiu e foi vítima de muitos conflitos militares, até porque deve muito da sua existência à importância estratégica da região em relação à defesa de Lisboa.
Felizmente, há quase 180 anos que a região não é palco de
combates militares de grandes dimensão, e só indirectamente as suas populações
sofreram as agruras da guerra, tendo muitos torrienses participado na 1ª Guerra
e na Guerra Colonial, conflitos que, pelo menos, pouparam os habitantes de
Torres Vedras de serem vítimas directas de crimes de guerra e da destruição dos
seus bens em conflitos militares.
A última vez em que a região foi palco de uma batalha de
grandes dimensões e que provocaram a destruição, o medo e a aflição dos seus
habitantes aconteceu nos dias 22 e 23 de Dezembro de 1846, na célebre Batalha
de Torres Vedras, episódio da “Patuleia” ao qual já nos referimos em crónicas e
estudos anteriores.
O que pretendemos aqui abordar é o efeito que esse conflito
teve junto das populações locais da época, principalmente com uma referência
aos eventuais crimes de guerra contra civis torrienses, alguns deles ainda com
a memória dos conturbados tempos das Invasões Francesas (1808-1810) e da guerra civil entre liberais e
absolutistas (1832-1834).
A presença de tropas neste concelho durante vários dias, bem
como a sua movimentação, já seria, só por si, motivo de preocupação e incómodo
para os habitantes, tendo em conta a necessidade de acomodar e alimentar os
militares.
Ainda por cima a principal Batalha, ao contrário do que
aconteceu durante as Invasões Francesas, teve lugar dentro da própria vila, com
o confronto de artilharia entre o Forte, dominado por Saldanha, e o Castelo,
dominado por Bonfim.
Os tiros entre os dois exércitos e o bombardeamento do
Castelo terá atingido muito provavelmente alvos civis, embora não existam
muitas notícias sobre esta situação.
Sabe-se também que a entrada das tropas fiéis à rainha na
vila foi acompanhada de intensos combates pelas ruas de Torres Vedras, ao longo
do final da tarde desse dia 22 de Dezembro, onde algumas casas de civis foram
usadas como pontos de defesa e ataque (1).
José Eduardo César, na sua conhecida memória manuscrita
sobre a batalha, refere a noite de 22 de Dezembro, a que se seguiu à Batalha
ganha pelo exército de Saldanha, como uma “noite de horrorosa recordação para
os moradores da vila”, onde “todas as portas eram arrombadas indistintamente” e
“todas as casas roubadas”.
O jornal O Espectro, órgão de propaganda Patuleia, vai ainda
mais longe, referindo os “horrores” vividos pelos habitantes de Torres Vedras,
e o “saque” das “forças da rainha”, que “não respeitaram mulher nem donzela” (2),
ideia reforçada pelo mesmo jornal na sua edição de 30 de Dezembro, insistindo
no “saque de Torres Vedras” e sublinhando “a violação de mulheres e donzelas”
apelando a que se vingasse “a honra de nossos irmãs, de nossas mulheres, de
nossas filhas”.
Numa memória posterior, mas publicada ainda em vida de
muitos torrienses que tinham vivido aquele momento (3) , não se faz referência
a tais “violações”, alegação que parece falsa e de mera propaganda, que
designaríamos hoje por “fake news”, mas descreve, de forma mais realista, a
forma como a população civil foi incomodada pela batalha e pela entrada das
tropas de Saldanha:
“Se o dia (…) tinha sido de horror para os habitantes de
Torres Vedras, pelo estampido da arti- Iheria e fuzilaria, que dizimava tantas
vidas, e pelos projecteis e balas, que tinham cahido em cima de seus telhados,
e até mesmo dentro em suas casas; a noite, que estava bastante escura, não foi
menos horrorosa (…) pela bulha e
estrondo das coronhadas com que a deshoras o exercito vencedor batia, e pretendia
arrombar as portas, como de facto muitas arrombou; pelo espirito de. saque, e
vertigem de que vinha possuido e cheio, julgando conquista sua esta villa, como
se os seus habitantes tivessem culpa em vir o exercito vencido tomar aqui posições,
ou concorresse na sua generalidade para as desgraças, que acabavam de sofrer.
Com effeito o saque não foi ordenado, mas parecia tolerado; muitas casas foram
limpas de tudo, e não se fazia duvida em lançar mão das cousas, à vista mesmo
de seus donos, que se davam pressa em socorrer os seus hospedes com a comida
que tinham; de maneira que por alguns dias se não abriu loja alguma, que
vendesse comestíveis, chegando a haver falta para o exercito e para os
habitantes, até que o duque de Saldanha as mandou abrir com sentinellas às
portas, para que seus donos podessem vender sem ser roubados, e desde então
appareceu a abundancia. Não foram só estas as desgraças que teve a sentir esta
villa, pois teve também a de sentir a morte de quatro dos seus habitantes
inermes e pacíficos, um dos quaes, que era um taverneiro, se achou morto na
rua, segundo parece, de baionetadas, e os outros tres foram atravessados com
balas à entrada d’essa pouca força, que penetrou na villa quasi à noite. E
soffreu tambem o peso do aboletamento de toda a divisão do exercito da rainha,
por muitos dias, até que o general fez sahir da villa vários corpos para os
logares visinhos, a fim de allivial-a”.
O mesmo articulista fazia justiça ao Duque de Saldanha,
considerando que, se não fosse o seu espírito de “moderação e cavalheirismo”,
sempre “prompto em dar guardas e attender a quem receiava violências, ou se
queixava das que lhe faziam”, “muito pior teria sido a sorte dos habitantes
d’esta terra”.
Ficamos assim a saber que não se terão registado violações
de “donzelas” e que morreram 4 civis, três, ao que parece, vítimas de balas
perdidas durante os confrontos nas ruas da vila por ocasião da entrada nela das
tropas de Saldanha, e apenas um eventualmente morto na sequência de um assalto
a um estabelecimento por soldados.
Nada que se compare aos horrores e aos verdadeiros crimes de
guerra que, nos nossos dias, vemos serem cometidos por esse mundo fora.
Esperamos que aquela tenha sido a última vez que esta vila e
os seus habitantes conheceram os horrores da guerra.
(1)
– “A Noite Horrível e o Dia de Gloria”, in
Diário do Governo nº 302 de 22 de Dezembro de 1847;
(2)
- O Espectro de 28 de Dezembro de 1846;
(3) – “Antiguidades de Torres Vedras”, in A Semana de 21 de Abril de 1887.
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