Torres Vedras é um concelho com cerca de 20 quilómetros de costa marítima, pelo que não é de estranhar a existência de muitas memórias de naufrágios nesta zona.
Numa área entre dois
importantes portos de pesca, como Peniche e Ericeira, próxima do estuário do
rio Tejo e fazendo parte do litoral que, durante séculos, ligou o Mar do Norte
com o Mediterrâneo, pela costa deste concelho terão passado milhares de navios
ao longo dos tempos.
Com uma costa de grandes
arribas, cortadas pela foz de dois rios de dimensões razoáveis, como o Sizandro
e o Alcabrichel, famosa pela agitação marítima e pelos temporais violentos, com
a existência de três históricos, embora pequenos, portos de pesca, como Porto
Novo, Cambelas e Assenta, não será de estranhar que aqui se tenham registado
vários naufrágios ao longo dos séculos.
Tema ainda por estudar e
investigar, aqui deixamos um pequeno registo para a construção da “história
trágico-marítima” do litoral do concelho torriense.
O mais antigo naufrágio
registado nessa costa data de 28 de Agosto de 1650, o “encalhe no areal de
Penafirme, perto da Ericeira [?]” do galeão S. Francisco, acabado de sair dos
estaleiros a caminho da Índia (1) pouco mais se sabendo sobre esse
acontecimento.
Vai ser preciso espera mais um
século e meio para voltarmos a encontra referência a outro naufrágio no litoral
do concelho torriense, o do navio inglês London “na Praia Formosa, em Rendide”
, ocorrido no início de 1801 (2)
Um dos aspectos curiosos dessa
notícia parece ser a mais antiga referência à Praia Formosa.
No ano de 1823 ocorreram dois
naufrágios, os mais trágicos ocorridos nesta região, o primeiro o da fragata da
armada francesa “La Cornaline”, ocorrido em 2 de Fevereiro, frente a Cambelas, que custou a vida a cerca de cem marinheiros,
e o segundo, na madrugada de 10 para 11 de Julho, a norte do chamado Cabo
Rendide, o paquete “Lusitano”, “um dos primeiros barcos a vapor (…) da carreira
de Lisboa ao Porto”, morrendo mais de 60
pessoas, entre os seus 200 passageiros e 16 tripulantes (3).
Só em 1885 voltamos a
encontrar notícias de novo naufrágio na costa torriense, ocorrido na Praia de
Santa Cruz, no dia 31 de Outubro, quando
“um forte pé de vento deitou por terra as barracas dos banhistas, que fugiram
apressados para terra; e quando os banheiros José Rosa e José Pisco estavam
tratando de reunir as barracas desmantelladas, ouviram gritos de soccorro no
mar, dados por seis homens que formavam a tripulação de um barco de pesca em
imminente risco de soçobrar, o que de facto succedeu.
“Apenas dois dos tripulantes
sabiam nadar, e portanto poderam conseguir alcançar a terra; aos outros quatro
acudiram os valentes e benemeritos banheiros, que arrostaram com o embate das
ondas, indo arremessar pelo mar dentro o cabo salva vidas, a que se agarraram
os naufragos, conseguindo assim a sua salvação”(4).
No dia 12 de Abril de 1902 registou-se
outra tragédia marítima quando o barco de pesca “Boa Viagem”, ao entrar no
porto de Assenta, se virou com uma onda, morrendo dois pescadores, salvando-se
o terceiro, o único que sabia nadar (5).
Apenas dois anos depois, em 13
de Junho de 1904, o vapor espanhol Aviles, encalhou, devido ao nevoeiro “no
porto Chão ao sul da Foz da Areia”. O navio carregava carvão, com destino a
Barcelona. A tripulação de “20 homens e mais 5 passageiros” conseguiu
salvar-se, mas, ao chegarem a terra “foram assaltados por muitos indivíduos,
verdadeiros piratas que lhes roubaram as roupas, os comestíveis e até os
próprios remos da embarcação” (6).
Cenas idênticas passaram-se
quando no dia 7 de Março de 1917 ocorreu nova tragédia perto da praia da
Assenta com o lugre “Lusitano”, oriundo da Guiné portuguesa, naufragando com um
carregamento destinado à C.U.F , falecendo 11 marinheiros, registando-se a
pilhagem “dos salvados que deram à costa” (7).
Aquele que foi, talvez, o mais
famoso naufrágio nas praias torrienses ocorreu em 5 de Fevereiro de 1930,
famoso, não só porque ainda é possível, em certas ocasiões, observar um dos
mastros do navio naufragado, como esse naufrágio deu nome a uma das principais
praias de Santa Cruz, a “praia do Navio”.
Tratou-se do naufrágio do
navio norueguês Hav (“Oceano” em português), vindo de Cardiff para o porto de
Leixões, com um carregamento de carvão, um naufrágio que ocorreu após um
conjunto de acontecimentos rocambolescos, quando era rebocado de Leixões para
Lisboa, para ser reparado, tendo-se salvado toda a tripulação de 11 homens (8).
No dia 1 de Maio de 1947 um violento temporal apanhou de surpresa embarcações de pesca da Assenta. Uma delas, a lancha Olinda afundou-se à entrada do porto da Ericeira, para onde se pretendia refugiar, matando os três pescadores da Assenta (9).
Na madrugada do dia 2 de
Outubro de 1970, quando se encontrava em dificuldades, o capitão do cargueiro holandês
Shamrock Reefer conseguiu encalhar, propositadamente, esse grande navio na
praia de Porto Chão, a sul da foz do Sizandro, conseguindo assim salvar toda a
tripulação (10).
Foi o do cargueiro alemão
Alchimist Emden que ocorreu junto à praia de Cambelas, um novo contributo para
a fama dessa praia como “a praia dos naufrágios”.
Não se registando vítimas
nesse naufrágio, temeu-se, contudo, um desastre de grandes dimensões “dada a
quantidade e natureza da carga – 1150 toneladas de hidrocarbonetos”, situação
que, felizmente, não se concretizou (11).
Deixamos, assim, este breve e
limitado registo de alguns dos naufrágios ocorridos na costa torriense,
esperando que contribua como ponto de partida para uma investigação mais
aprofundada sobre o tema.
(Já com este artigo feito, ontem o mar de SantaCruz ceifou mais 4 vidas:)
(1) - ESPARTEIRO, comandante António Marques, Catálogo dos Navios Brigantinos (1640-1910), Centro de Estudos de Marinha, Lisboa 1976, pág. 7 (disponível na net);
(2) - Ofício do Juiz de fora de Torres Vedras, José Pedro Quintela, ao secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, datado de 20 de Fevereiro de 1801, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU CU Reino, Cx. 269, pasta 41);
(3) - CUNHA, João Flores, “Estórias (especuladas) de Torres – Dois Naufrágios em 1823 junto ao Cabo Rendido”, in Badaladas de 5 de Abril de 2019. Sobre o naufrágio do Lusitano leia-se também CATARINO, Manuela, São Pedro da Cadeira – Histórias, Memórias e Património de uma freguesia torriense, ed. Junta de Freguesia de S. Pedro da Cadeira, Setembro de 2021, pág.143;
(4) - in Jornal de Torres Vedras de 5 de Novembro de 1885;
(5) - CATARINO, ob. Cit. pág. 143 e Folha de Torres Vedras de 20 de Abril de 1902;
(6) - VIEIRA, Júlio, Torres Vedras Antiga e Moderna, 1926, pág.229;
(7) - CATARINO, ob. Cit., pp. 143-144;
(8) - ver uma interessante e completa reportagem sobre o assunto no site “Torres Vedras Antiga”, transcrita por Joaquim Ribeiro na reportagem “Pesquisa do blogue Torres Vedras Antiga revela novos dados – A História documentada da praia do Navio. Ver também a reportagem coeva do incidente nas páginas do jornal Gazeta de Torres de 9 de Fevereiro de 1930;
(9) - CARÉ Jr., José, Memórias da Ericeira marítima e piscatória – séc. XIX-XX, pág. 43;
(10) - Ver Diário de Lisboa de 2 de Outubro de 1970. Baseei-me igualmente nas legendas de fotografias de Raul Guilherme, vendidas no site Delcampe;
(11) - CATARINO, ob. Cit, pág. 144.
Sempre em cima do acontecimento, amigo Venerando de Matos!
ResponderEliminarObrigado por mais estes interessantes apontamentos.