A história de Torres Vedras é transversal à história da produção de vinho.
Contudo, não existe nenhuma monografia aprofundada e
diacrónica sobre a história do vinho nesta região, apesar de muitas referência
e estudos de tipo conjuntural.
Com este texto procuramos elaborar uma pequena síntese que,
quem sabe, possa servir de base para uma história do impacto da produção
vinícola na região de Torres Vedras.
Não se conhecendo quando é que esse produto foi introduzido
na região ou se existia em estado selvagem, existem vestígio de videiras por
altura da época de ocupação do Castro do Zambujal (c.2500 a 1700 aC.), como é
referido por Margarethe Upermann (UERPMANN,
Margarethe, “A indústria da pedra lascada do Zambujal”, in KUNST, Michael
(coord.), Origens, Estruturas e Relações das Culturas Calcolíticas da Península
Ibérica, Actas das I Jornadas Arqueológicas de Torres Vedras, 3-5 Abril 1987,
Trabalhos de Arqueologia 7, IPPAA, Lisboa 1995, pp.37-44).
Também Ana Arruda refere que a população indígena da região
de Torres Vedras consumia vinho importado da Fenícia, durante a chamada Idade
do Ferro europeia, no século VIII a.C (ARRUDA, Ana Maria, “O comércio fenício”,
in História de Portugal – Dos Tempos Pré-Históricos aos Nossos Dias, dir. João
Medina, 2º Vol, pp.17 a 34, Ediclube, 1993).
Contudo, em ambas as épocas referidas, se existem evidências
de consumo, não existem provas de produção local.
Ao que parece, a produção local de vinho terá conhecido um
grane incremento comercial durante a ocupação romana, e está na base da
existência, nesta região, de várias villae, uma espécie de “quintas”, que
abasteciam Olisipo, através de uma rede viária com alguma dimensão.
Contudo, é preciso esperar pelo foral de 1250 para
encontrarmos a primeira referência documental à produção de vinho local:
“Aquele que arrombar o relego do vinho, e vender o vinho no
seu relego, e provada a infracção (…) pague cinco soldos. E se for achado de
novo em falta pela terceira vez, (…), todo o vinho seja entornado e os arcos
dos tonéis sejam cortados. Do vinho de fora dêem um almude por cada carga e o
outro seja vendido no relego”.
Pouco depois, surge o mais antigo documento conhecido que
nos permite analisar, com algum rigor, a importância produtiva e a localização
no concelho da produção vinícola na Idade Média, documento de 1309 ( Este
documento foi publicado, analisado e divulgado por aqueles que se têm dedicado
ao estudo da Idade Média em Torres Vedras: Félix Lopes, John Jonhson, Manuel
Clemente, Manuela Catarino, Ana Maria Rodrigues, Carlos Guardado Silva…).
Pelos dados desse documento, calcula-se que o vinho, sendo
produto importante, representava pouco mais de 30% do total dos produtos
agrícolas produzidos no concelho, dominando a produção de cereis.
O Clero (com mais de 6 mil almudes) e a nobreza (com quase 5
mil almudes) dominavam a produção do vinho local (num total, nesse ano, de
cerca de 16 mil almudes).
A zona do concelho onde se concentrava a maior parte da
produção do vinho era no vale do Sizandro, principalmente o sudeste, na região
entre Dois Portos e a Ribeira de Pedrulhos, estendendo-se para o Barro e a
Orjariça, até ao Turcifal. As aldeias do Varatojo, Turcifal, Ribaldeira e
Ribeira de Manjapão concentravam cerca de 20% de toda a produção vinícola.
Com a excepção desse documento, é muito escassa e dispersa a
documentação existente sobre esse tipo de produção neste concelho.
De referir, no foral manuelino de Torres Vedras, doado em
1510, o destaque à produção de vinho, como se revela pela importância dada ao
relego real, cuja venda tinha lugar privilegiado nos três primeiros meses do
ano e cujo desrespeito motivava algumas das mais pesadas penas estabelecidas
nesse foral, demonstrando a importância e o valor que o vinho da região
começava a ter.
A abundância de vinho nesta região é referida em 1589,
quando o exército anglo-luso, onde se
encontrava D. António Prior do Crato, entrando em Torres Vedras, a caminho de
Lisboa, com o objectivo de restaurar o trono português, aqui se demorou mais do
que o necessário, porque muitos dos soldados “se embebedarão, por aver muito
vinho nesta villa”. Beberam em tal excesso que muitos adoeceram e alguns
chegaram mesmo a morrer, incidente que provocou um atraso no avanço dos
Ingleses sobre Lisboa, dando tempo às tropas luso-castelhanas, que defendiam a
capital, de se prepararem para a chegada dos apoiantes de D. António.
O desenvolvimento da
expansão portuguesa ao longo do século XVI parece ter contribuído para o
crescimento da importância comercial da produção do vinho desta região, como o
atesta Duarte Nunes de Leão, na sua obra datada de 1599 : “par carrego sam
infiniros os vinhos que da Santarem, Alenquer e Torres Vedras e seu grande
termo”, os quais “com os de Lamego e Monção poderiam bastecer um reino deixando
à parte os que se dam na Beira”.
A meio do século XVII também Rodrigo Mendez da Silva anotava a abundância, na vila de Torres
Vedras, por ordem de importência, de “pan, vino, azeyte, ganados [gado] y cazas
[caça]”
As qualidades do vinho Torrienses foram igualmente gabado no
principio de “setecentos” por António
Carvalho da Costa, indicando que “esta villa” de Torres Vedras, para além de
ser “abundante de excelente trigo, frutas, gado, caça & vinho”, “lavra mais
de seis mil pipas” de vinho “que vão para a Índia, por serem de grande
substancia para passarem os mares”.
É igualmente no século XVIII, a partir de 1723, que o preço
do vinho passa a ser regular e anualmente taxado nos acórdãos camarários,
juntamente com o trigo, a cevada, o
milho e o azeite.
Contudo, na segunda metade desse século, durante o governo
do Marquês de Pombal, a sua produção vai conhecer um período de incerteza,
quando dois alvarás, um datado de 20 de Outubro de 1765 outro de 8 de Fevreiro
de 1766, ordenam o arranque de vinhas, um pouco por todo o país, com o
objectivo de libertar terras para o cultivo de “pão”, mas que visava, na
realidade a produção do Douro. No primeiro desses alvarás a região de Torres
Vedras, entre foi excluída dessa decisão, mas, no segundo, as terras cultivadas
com vinhas neste concelho passam a ser consideradas impróprias para o seu
cultivo.
Ao que parece, esta segunda decisão ficou sem efeito, pois,
segundo Veríssimo Serrão, nesse ano de 1766 a coroa determinou “que se fizesse
destinção no preço dos vinhos, de modo a não prejudicar a qualidade do fino
tinto produzido no Alto Douro” medida essa que, entre outras consequências,
valorizou “o produto da região estremenha (Santarém, Torres Vedras) e também
Bairrada, que se tornaram ricas zonas vinícolas do País”.
Ao longo do século XVIII o vinho tornou-se um dos principais
produtos da região, embora nunca ultrapasse muito os 30% de toda a produção
agrícola, 39,1% em 1764 ou 32,2% em 1799.
Parece ter sido ao longo do século XIX, embora com
variações, que o seu peso se tronou esmagador, rondando 50% de toda a produção
agrícola local logo em 1812, em crescimento contínuo até ao final desse século.
(1799 – Mapa do rendimento da Dízima eclesiástica publicada por João Pereira;
1812 – Dados publicados na parte económica de Madeira Torres, aferidos por João
Pereira).
A crescente importância da produção vinícola foi observada
ainda na primeira metada desse século por Madeira Torres, que escreveu , na
parte económica da sua obra, escrita no primeiro quartel do século, refrindo-se
a essa produção no “terreno da villa, e seu termo, he muito considerável, e até
verdadeiramente singular na generalidade dos fructos que abrange. A producção
do vinho he sobre todas a mais abundante” (p.246).
A tão temida filoxera, tema estudado com bastante detalhe
por Célia Reis ( “Problemas dos Vinhos Torrienses no Final da Monarquia”, in
Turres Veteras III- Actas de História Contemporânea, ed. CMTV/IERMAH-Un.
Letras, T. Vedras 2000, pp.123 a 158).
A filoxera manifestou-se pela primeira vez no concelho em
1883, numa vinha da Quinta Nova, junto da Ordasqueira, expandindo-se no ano
seguinte pelas vinhas de várias Quintas da freguesia da Ventosa, uma das mais
importantes na produção do vinho do concelho, atingindo o seu auge em 1885,
quando atingiu todo o concelho, obrigando à substituição das cepas afectadas
pelo chamado bacelo americano a partir de 1886.
A crise da Filoxera, ao obrigar a grandes mudanças no tipo
de vinhas e no modo de produção vinícola, parece terem contribuído para o
rápido crescimento da sua produção local, ultrapassando em 80% o total de toda
a produção agrícola ao longo da última década do século e contribuindo para uma
profunda alteração na paisagem rural do concelho.
As freguesias de A-Dos-Cunhados, Matacães, Carmões, S.Pedro
da vila e S.Mamede da Ventosa foram aquelas onde se iniciou esse processo de
substituição.
Em 1888 a vinha “americana” era dominante em relação à
“europeia” na maior parte das freguesias e em 1891 já não existia nenhuma vinha
de bacelo “europeu” plantada e registada no concelho.
A acção dos viticultores torrienses foi assim rápida e
eficaz. Para isso muito contribui a imprensa local, que surgiu em 1885 e
dedicava grande parte do seu conteúdo aos problemas da viticultura, bem como a
existência de uma escola vitivinícola na Quinta da Viscondessa, no Turcifal,
dirigida pela família Batalha Reis, principalmente o irmão António, cujo papel
na economia e na sociedade da região ainda está por estudar.
Com a plantação da vinha “americana” a região recuperou
rapidamente da crise, tornando-se um importante centro de exportação de vinhos,
não só para o Douro, mas também para Bordéus.
José de Campos Pereira, na sua obra publicada em 1915,
baseada em dados de 1911, intitulada “A Propriedade Rústica em Portugal”,
revela dados que colocam o concelho de Torres Vedras em primeiro lugar no
distrito de Lisboa, que então incluía a área do actual distrito de Setúbal,
quer quanto à área de cultivo da vinha (21 000 hectares, cerca de ¼ do total
distrital), quer quanto ao rendimento (15 mil contos, pouco menos de 1/3 do
total distrital ) quer quanto à produção (808 500 hectolitros, cerca de 1/3 do
total distrital).
Todos os dados confirmam o peso da produção vinícola até
meio do século XX, vinha, ocupando quase metade da superfície agrícola do
concelho, seguindo-se o cultivo de batata, trigo e milho, que apesar de tudo,
no seu conjunto, ocupavam menos área que a do vinho.
É na segunda metade do século que a produção do vinho vai
conhecer profundas mudanças estruturais, reduzindo a área de cultivo mas,
apostando-se na qualidade para expostação. Mas essa é outra história.
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