A “Guerra do Bacêlo” foi uma revolta popular, que aconteceu em 1935, com principal foco na freguesia de A-Dos-Cunhados (1).
Essa revolta popular foi provocada pelo Decreto Lei nº 24
976 de 1935, que proibia a plantação de vinhas novas, obrigando a que, até 30
de Março de 1936, se efectuasse o arranque das existentes, medida que se
enquadrava na chamada “campanha do trigo” do Estado Novo, a qual, segundo os
que estudaram essa medida, redundou num enorme fracasso social, económico e
ambiental.
Essa revolta foi uma das mais importantes revoltas populares
de camponeses na região, uma das primeiras contra o Estado Novo, a primeira
luta social do concelho de Torres Vedras referida pelo jornal “Avante”, na sua
edição clandestina de Maio de 1935.
Uma força de trinta praças da GNR, com elementos locais, das
Caldas da Rainha e de Peniche, tinha-se concentrado em Tores Vedras no dia 7 de
Abril de 1935, para acompanharem os agrónomos das “brigadas das vinhas” que íam
fazer o levantamento das vinhas ilegalmente plantadas em várias freguesias do
concelho, para serem arrancadas posteriormente.
No dia 8 de Abril de 1935, essa força da GNR saiu de Torres
Vedras a caminho de A-Dos-Cunhados, por onde se tinha decidido iniciar a ronda
pelo concelho, com o objectivo da “manutenção da ordem pública durante os
trabalhos da brigada dos vinhos” (2).
Nessa localidade tiveram de enfrentar a ira dos populares,
que se opunham ao arranque das vinhas, para muitos o único ganha-pão num tempo
de grandes dificuldades económicas.
Ao aproximarem-se daquela localidade, foram ouvidos alguns
“morteiros”, lançados pelos populares para avisarem da aproximação daquela
força (3).
Os populares, oriundos de “Cunhados, Sobreiro Curvo,
Bombardeira, Palhagueiras, Casais, etc.”(4), avisados antecipadamente da
deslocação, vinda de Torres Vedras, dessa força da GNR, já se tinham juntado no
Largo da Cruz e lançado foguetes de aviso e repicado os sinos.
Entrando la localidade, por volta das 11 horas da manhã, a
GNR ocupou o largo principal, ao mesmo
tempo que se destacava “um esquadra para ocupar as imediações da Egreja a fim
de evitar que o sino tocasse a rebate, como é costume no concelho de Torres
Vedras, e ainda “ proteger o flanco esquerdo do local onde se encontrava o
comandante dessa força, “visto que o direito estava apoiado numa edificação e a
rectaguarda protegida por outra edificação”.
Também as mulheres que se juntaram aos homens na
manifestação, incitaram com gritos “a bradar que “que tinham fome”, que ninguém
lhes dava trabalho, “que nunca consentiriam no arranque de uma única cepa” (5).
Aos gritos, os rurais que aí se tinham concentrado,
“começaram o ataque à força” da GNR, a quem arremessaram pedras, usando
“forquilhas, enxadas, varapaus, machados, pás e rodas de forno, entre outras”,
mas sem armas de fogo(6), para enfrentaram as autoridades, estas bem armadas, repelem
o ataque “pelo fogo”(7) e à coronhada, redundando o confronto em vários feridos
entre os populares e os guardas.
“Guardas mandam tiros para o ar com o fim de assustar o povo
que começa já a aparecer em grande número. Alguns fogem. Os que ficam estão sob
o seu olhar e armas (…). Eis que aparece o Sr. José Ferreira do Sobreiro Curvo,
já de idade avançada que grita para os guardas: “Ah, seus sacanas, com que
então querem arrancar o bacelo?!!!...Levanta ameaçadoramente a enxada que traz
consigo, na direcção dos mesmos e…Este
acto tem a força de uma forte ventania ao passar por uma fogueira
prestes a extinguir-se. Ateiam-se as brasas de uma guerra entre G.N.R e povo”
(8).
Os confrontos estenderam-se à localidade vizinha do Sobreiro
Curvo, pois as “mulheres do Sobreiro Curvo apetrechadas dos seu armamento”,
rodos e pás de forno, “escondem-se debaixo da ponte mais próxima da igreja.
Atravessam a rigueira para o lado de A-Dos-Cunhados e passam para a confusão
(…).Instalam-se alguns guardas na estrada em frente do átrio da igreja não
deixando passar quem quer que seja vindo do S. Curvo”, mas muitos ainda
conseguiram passar.
Entre as mulheres envolvidas nos confrontos contra os
guardas destacou-se uma tal “Victória Ferrador”, “a quem o povo chamou “ a
padeira de Aljubarrota”, mulher de “grande relevo”, que, no confronto, salvou
“um homem indefeso de apanhar tareia, onde intervêm seis guardas. Com um rodo
de forno põe todos em debandada”(9).
Do confronto resultaram feridos 35 “rurais”, “mais ou menos
gravemente”, e um soldado da GNR “ferido na cabeça por uma enxada” (10).
A maior parte dos feridos populares desse confronto foram
conduzidos para os hospitais da Lourinhã e de Torres Vedras. Neste último, os
“18 ou 20” que recorreram aos serviços hospitalares desta vila, foram presos
pela GNR, enviados para a cadeia do posto local desse guarda. Alguns dos
feridos foram enviados para o hospital de S. José.
Imposta a “ordem”, no dia 9 efectuou-se o levantamento das
vinhas ilegais naquela freguesia, para se proceder ao seu arranque.
Para os dias seguintes foi programado o mesmo trabalho para
outras freguesias do concelho, chegando a informação ao comandante da força da
GNR que estava em Torres Vedras que “os rurais de Aldeia Grande, Maxial e
Ermigeira, armados, marchavam sobre Torres Vedras”, pelo que foram colocadas
forças da GNR, bem armadas, nas entradas da vila que faziam ligação com aquelas
aldeias, o que demoveu os “sublevados”. No dia 12 de Abril a GNR avançou para
aquelas localidades, prendendo “os cabeças de motim da sublevação”,
apreendendo-lhes espingardas de caça e os “respectivos cartuchos”.
Correram igualmente rumores de que “Dois Portos queria
resistir e impedir o trabalho da brigada”, para aí se deslocou a força da GNR,
mas não se tendo aí registado “a menor manifestação de desagrado”.
A partir de então o serviço daquelas brigadas “correu sem
novidade”, retirando-se as forças da GNR de fora do concelho após o fim do
levantamento das brigadas das vinhas neste concelho no dia 24 de Abril (11).
(1)
Ver: obra
colectiva “A-Dos-Cunhado – Itinerário da Memória”, ed. 2002 ; “Guerra do Bacelo (…)”, recolha oral por
António Moreira, Maria do Céu Nunes e António Vassalo, nas edições nº 1 e nº 2,
de Janeiro e Fevereiro de 1975, do
jornal “Povo Jovem”; SANTOS, Andrade,
“Revolução e morte no Convento da Graça” in Badaladas de 8/1/2021; relatório dos acontecimentos enviado pelo
posto da GNR de Caldas da Rainha para o Ministério do Interior datado de 1 de
Maio de 1935, existente no arquivo Nacional da Torres do Tombo (o autor
agradece a oferta que lhe foi feita por João Flores da Cunha de uma cópia deste
relatório);
(2)
relatório da GNR, acima referido;
(3)
relatório da GNR;
(4)
in Povo Jovem de Janeiro de 1975;
(5)
relatório da GNR;
(6)
in Povo Jovem de Fevereiro de 1975;
(7)
relatório da GNR;
(8)
in Povo Jovem de Fevereiro de 1975;
(9)
in Povo Jovem de Fevereiro de 1975;
(10)relatório da GNR;
(11)relatório da GNR.
Dr. Venerando, tem o documento da GNR, em imagem ou sabe a referência do mesmo na Torre do Tombo? Na Pró-Memória só temos em pdf e impresso e precisamos em ficheiro de imagem para um trabalho em curso. Obg.
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