Se é hoje pacifica a idéia, entre historiadores, de que a 1ª Guerra
marcou uma profunda ruptura com uma realidade herdada do século XIX, chegando
mesmo a falar-se num “curto século XX” balizado entre essa Guerra e o fim da
União Soviética em 1991, não é menos verdade que o ano de 1917 foi, de todos os
anos da Guerra, o “ano de todas das decisões” ou mesmo, “o ano que mudou o
mundo” (2).
Se a guerra foi o tema dominante em 1917, tendo conhecido novos e
decisivos desenvolvimentos, como a revolução Russa, que desestabilizou a frente
leste, ou a entrada dos Estados Unidos na guerra, nesse mesmo ano ocorreram
grande e pequenos acontecimentos premonitórios para os cem anos seguintes.
Data desse ano a declaração de Corfu, que levaria à formação da
Jugoslávia, a Declaração de Balfour, que preconizava a criação de um Estado
Judeu da Palestina e definia a organização do Médio Oriente, o tratado de
Brest-Litovsky, que começou a ser negociado no final do ano entre a Alemanha e
a Rússia e que definiu a geografia futura do leste da Europa, sem esquecer o
facto, que então passou quase despercebido, da formação, no parlamento
italiano, do grupo “Fascio Parlamentare di Difesa Nazional”, que originou o
movimento fascista, no mesmo ano em que Benito Mussolini debitava as suas
ideias no Il Popolo d’Italia.
Mas, “cereja no topo desse ano”, um outro acontecimento desenrolou-se
ao longo de todo o ano, com consequências imediatas no rumo da guerra, mas que
marcaria todo o século. Referimo-nos à Revolução Russa, iniciada em Fevereiro e
que culminaria na Revolução de “Outubro” (em Novembro).
Mas, para Portugal, esse foi igualmente um ano marcante, pois foi o ano
em que, de facto, as tropas portuguesas começaram a combater na frente
ocidental, onde chegaram em 2 de Fevereiro.
A participação de Portugal na frente europeia provocou grandes
problemas sociais e económicos, gerando grande agitação social e política, que
levou ao fim do governo de “União Sagrada”, com o regresso de Afonso Costa à
liderança do governo e que culminaria, em Dezembro, como o golpe de Sidónio
Pais.
O desespero social da população e as suas dificuldades crescentes não
terão sido estranhas às aparições de Fátima que tiveram lugar entre Maio e
Outubro desse ano.
Em Torres Vedras a guerra foi o tema dominante, quer pelas notícias
divulgadas na imprensa local, quer pelo facto de muitos jovens torrienses terem
sido mobilizados para a frente ocidental.
O jornal local
“A Vinha de Torres Vedras” , “ no patriótico intuito de fornecer notícias do
torrão natal àqueles que em terra de França estão honrando o nome português”
resolveu colaborar no esforço de guerra enviando “gratuitamente a vários conterrâneos nossos”,
mobilizados para guerra, exemplares da sua edição semanal (3).
Para além das muitas notícias que a imprensa local
dedicava ao conflito, por cá realizavam-se muitas iniciativas para apoiar o
esforço de guerra.
Foi nesse sentido que foi criada uma “sub-comissão”
local da “Cruzada das Mulheres Portuguesas” (4) que organizou várias
iniciativas para angariar fundos para auxiliar as famílias dos soldados
mobilizados, de entre as quais se destacou uma “Festa da Flor”, realizada no
Domingo 1 de Julho.
A “Cruzada da Mulher Portuguesa” foi criada por Ana de
Castro Osório nesse ano, tendo como principal objectivo apoiar a criação de
orfanatos para os filhos dos soldados falecidos, mas também apoiar as vítimas
da guerra, formar enfermeiras de guerra, recuperar mutilados e fomentar “madrinhas de guerra”. Esta
organização é um exemplo da crescente emancipação feminina.
Em Torres Vedras essa organização era presidida pela “professora oficial srª D. Emília de Castro Garcia” (5).
Um dos temas mais abordado, não só
na imprensa local, mas também na documentação oficial da câmara e do
administrador do concelho, relacionou-se com a produção, distribuição,
racionamento e preço dos produtos alimentares, aquilo que na época ficou conhecido
pela “crise das subsistências” (6), principal reflexo da situação de guerra
junto do dia-a-dia das populações.
No concelho registaram-se vários
casos, ao longo de 1917, relacionados com a “exportação”, muitas vezes ilegal,
de produtos agrícolas, a produção do pão, alimento básico das populações, por
causa do seu preço elevado, da má qualidade do fabrico ou da sua falta, ou
ainda vários casos de açambarcamento.
Essa situação mereceu várias queixas na imprensa local, que denunciava que, de “há tempos para cá”, o preço do pão
e o de outros géneros subir “assustadoramente” e de, apesar das promessas das
autoridades em punir severamente quem não pesasse correctamente o pão, este ter
rapidamente voltado a aparecer “mal cozido e com falta de peso” (7).
Problemas como esse foram factores que
provocaram alguma agitação social, registando-se várias notícias que dão conta
de várias reclamações por parte de sectores da população junto das autoridades
locais contra a falta de géneros, o açambarcamento ou a má qualidade do pão fabricado.
Também em 27 de Fevereiro há registo de um tipo
novo, neste concelho, de agitação, uma greve
dos operários da oficina de tanoaria da “viúva
de António da Silva”, pelo aumento de salário (8). Por intervenção das
autoridades e após negociações, todos foram trabalhar, menos um operário que
acabou por ser despedido.
A questão salarial deveu-se ao constante
aumento do custo de vida, provocado pela situação de guerra, que se sentia de
forma mais grave entre o escasso operariado local, mais dependente do salário
do que a maior parte da população rural que, embora com rendimentos mais
baixos, tinha a possibilidade de se socorrer de um economia de auto subsistência
que caracterizava o mundo rural do concelho.
As crescentes dificuldades e carências alimentares
da população mais pobre terão estado na origem da constituição, em Abril, de
uma comissão de residentes na vila “para levar a efeito a organização de uma
sopa para os pobres”(9).
Mas não foram só as consequências económicas e socias da
guerra a marcar os acontecimentos em Torres Vedras nesse ano de 1917.
Logo em Janeiro regista-se uma alteração na recém
criada companhia que fornecia luz electrica na vila, inaugurada em 1912, quando
José Augusto Lopes, “conceituado comandante do Vapor “Cazeng”, e o filho, José
Augusto Lopes Júnior, “proprietário e administrador da Casa Fivelim”, compraram
as acções da Sociedade Progresso Industrial, Cabral e Cª, concessionária
daquele serviço e passaram a deter a administração daquela empresa (10).
Talvez reflectindo essa mudança, a imprensa local
anunciou que a partir de 7 de Fevereiro os estabelecimentos da vila passavam a
encerrar à 19 horas “em virtude de Torres Vedras ser iluminada a
electricidade”(11).
Em Abril registou-se grande agitação, a dominar uma
polémica que encheu as páginas da imprensa local, por causa da decisão do executivo camarário,
dominado pelo PRP, de mandar cortar
240 árvores junto ao actual Choupal,
atitude que quase provocou um levantamento popular. Em reunião de 10 Agosto, o
senado da câmara, face às pressões populares, decidiu anular aquela decisão.
Não é noticiado nas páginas da imprensa local, mas sabe-se que foi
nesse ano, no dia 1º de Maio, que foi fundado o hoje centenário Sport União
Torrense, nascido da fusão de dois clubes de futebol fundados em 1913, o do Grémio
Artístico e Comercial e o Grupo Sportivo da Tuna.
No dia 2 de Maio registaram-se grande inundações, provocadas por uma
violenta trovoada na tarde dessa Quarta-Feira, atingindo a àgua, em certas
zonas da vila, os 2 metros de altura, alagando casas comerciais e casas
particulares. A Rua Paiva de Andrada tornou-se num “verdadeiro rio”. Nas zonas
rurais a trovoada destrui “grande parte dos cereais, do trigo, das favas, do
vinho e sementeiras de batata, milho e feijão”, agravando a situação económica
do concelho (12).
A meio do ano, no dia 11 de Junho, conheceu a luz do dia mais um título da
imprensa local, o jornal “Ecos de Torres”,
“republicano independente”, mais tarde, após o sidonismo, orgão do novo Partido
Reconstituinte (criado por cisão no PRP)), juntando-se ao outro título que então
se editava, “A Vinha de Torres Vedras”.
A vida política local ficou também marcada por dois
acontecimentos.
Um, foi a formação, em Abril, do Núcleo de Propaganda
Socialista de Torres Vedras, “acolhido com viva satisfação pela classe operária”
(13), ficando as adesões a cargo de José Augusto Correia Lemos, na Rua Mouzinho
da Albuquerque, nº 32, r/c. A inauguração desse Núcleo ficou marcado para 1 de
Setembro, numa “sessão de propaganda, numa colectividade”, estando programada a
actuação de um “sexteto” de Lisboa que “executará o hino operário “A
Internacional” (14).
O outro acontecimento político importante foi o da
realização das eleições administrativas para as juntas de freguesia e para a Câmara
que se realizaram em 4 de Novembro de 1917.
Esse acto eleitoral foi bastante disputado, embora o
peso dos eleitores em relação à população do concelho fosse bastante diminuto,
devido ao discutível sistema eleitoral republicano, de tipo capacitário, que
exclui da decisão política os mais de 75% de analfabetos do concelho.
Concorreram
duas listas, uma do PRP, que controlava a Câmara desde 1910, e outra, apelidada
de “Lista do Concelho”, liderada por Aleixo Cezário de Sousa Ferreira, reunindo
à sua volta a participação e apoio de monárquicos, “evolucionistas”,
“unionistas” e alguns “democráticos” descontentes com o PRP.
A “Lista”
teve o apoio dos dois jornais locais. Por sua vez, o recém criado Núcleo
Socialista não apela ao voto numa das candidaturas, apenas apelando a que
ninguém se abstenha.
A “Lista do
Concelho” venceu as eleições, mas acabou por não tomar posse, devido ao golpe
de Sidónio Pais no mês seguinte (15).
Para além
das conjunturas, havia um outro ritmo que marcava o desenrolar anual da vida
dos seus habitantes nessa época.
O ano
começou com a realização da tradicional feira de S. Vicente, que se realizava
na “Várzea do Jardim ” em Janeiro.
Fevereiro
era o mês do Carnaval, que nesse ano de 1917 decorreu entre 18 e 20 de
Fevereiro, embora as ruas fossem preteridas aos “salões” das colectividades
locais, como o “Casino”, a “Tuna” ou o “Grémio”, que anunciavam “comédias”,
“récitas”, “cançonetas”, “fados”, para além dos bailes (16).
Anunciada em
1918, não encontramos qualquer referência à realização, em 1917, da tradicional
Procissão dos Passos, ainda sujeita às limitações impostas pelo regime
republicano ao culto público.
Em Abril,
como costumava referir a imprensa local anualmente, anunciava-se a “chegada das
andorinhas” à vila (17).
O primeiro
de Maio foi comemorado com a actuação da Filarmónica Torrenese no coreto do
Largo da Graça que, depois de executar algumas peças do seu reportório,
percorreu as ruas “tocando o Hino 1º de Maio” (18).
A mesma
banda iniciou a sua época de concertos regulares em 17 de Maio, mesmo dia em
que se iniciou a temporada de touradas na Praça de Touros então existente na
vila.
Nas Termas
dos Cucos a época balnear iniciou-se em 1 de Junho, com a abertura do Hotel ali
localizado.
A noite de
Santo António era comemorada, como era tradição, no Varatojo e o Grémio
anunciava para essa noite um baile na sua sede, com a promessa de fogueiras no
seu quintal.
A 29 teve
lugar a centenária Feira de S.Pedro e, no mês seguinte, a mais importante feira
da zona rural do concelho, a Feira do Mato no Turcifal, seguindo-se, em 19 de
Agosto a Feira de S.Vicente, onde se vendiam “alfaias agrícolas, gado, fruta e
quinquilharias”(19).
A ápoca de
praia em Santa Cruz só se iniciava na segunda metade de Agosto, prolongando-se
até meados de Outubro. Nesta ano de 1917 teve início em 27 de Agosto com a
inauguração, no “Club-Miramar” de uma sala de bilhar, com bufete.
Depois das
vindimas, durante o mês de Setembro, o ano encerraria com os bailes de passagem
de ano nas colectividade locais.
A Guerra, as
dificuldades económicas provocadas por ela
e os acontecimentos desse ano eram o tema de conversa nas muitas
tabernas do concelho, frequentadas pelo “povo”,
ou nos “modernos” espaço dos “cafés”, em expansão no centro urbano e o
principal ponto de encontro das elites locais.
Seguindo a
publicidade publicada na imprensa desse ano existiam então 4 espaços desses: “A
Brazileira”, fundada dois anos antes e localizada na Rua Serpa Pinto;a mais
antiga “Havaneza” no Largo da República, o único destes espaços ainda hoje existente;
a “confeitaria e Pastelaria Chic” na Rua Heliodoro Salgado, ao lado da
“Sapataria Trigueiros”; e a “Pastelaria Confiança”, na Rua Dias Neiva.
Quase todas
tinham serviço de mercearia. A Brazileira de Luis Duarte Pinto, vendia doces,
chá e café, vinhos do Porto e Madeira, champagnes, cognacs, licores, àguas
minerais e cervejas nacionais e estrangeiras, além de tabacos, postais
ilustrados e lotaria, Entre os bolos vendidos, destacavam-se os “deliciosos
pastéis de feijão “ fabricados pela D. Maria Adelaide Rodrigues da Silva
“mázinha”.
O pastel de
feijão, “o legitimo”, também era uma das especialidades vendidas pela
“Havaneza”, de João Guimarães Junior, onde se vendiam, para além de produtos
idênticos aos vendidos noutros estabelecimentos do género, conservas nacionais
e estrangeiras, chocolates e manteigas nacionais, recebendo ainda encomendas de
vários tipos de doces, como pudins, trouxas de ovos e “lampreias”.
A
“Pastelaria Chic” de Francisco Môra Rodrigues, além de vender as bebidas
alcoólicas anunciadas por aqueles concorrentes, também anunciava a venda de
refrescos. Confeccionava, para além do pastel de feijão, “bolos secos e
pastelaria à francesa, pastelaria inglesa”, entre outros.
A Pastelaria
Confiança, gerida por Alvaro Simões, fabricava igualmente o pastel de feijão,
vendia várias bebidas e doces idênticos aos referidos nos outros
estabelecimentos, vendendo “leite a copo” que podia ser mandado ao domicilio a
quem o solicitasse, incluindo também a venda de gelados, rebuçados de ovos,
pudins, queijinhos, pão de ló e bolo de festa (20).
Entre as
notícias da guerra, o desafio quotidiano de enfrentar as suas consequências
económicas e socias e continuar a viver entre os ritmos da tradição e as
novidades dos novos tempos, este é um retrato possível de Torres Vedras de há
cem anos, em 1917.
(1)
Resumo
da nossa comunicação apresentada em 3 de Junho último na conferência “1917 – O
Ano de Todas as decisões”, integrada no ciclo de palestras Comemorativas do
Centenário da 1ª Guerra Mundial, organizadas pelo núcleo torriense da Liga dos
Combatentes, como o apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras;Um versão mais sintética deste texto foi publicada na secção Vedrografias do jornal "Badaladas" com o título "Torres Vedras em 1917", em 30 de Junho de 2017;
(2)
Angelo
d’Orsi, 1917 – o Ano que mudou o mundo, Bertrand Editora, 2017;
(3)
In “A Vinha
de Torres Vedras” (VTV) de 5/7/1917;
(4)
In VTV de 15/2/1917;
(5)
in VTV de 7/6/1917;
(6)
Sobre este problema, podem ler
a minha comunicação “A Questão das “subsistências” em Torres Vedras
(1916-1918)” , publicada em “História da Alimentação, Turres Veteras IX, Lisboa
Colibri, 2007, pp.181-214;
(7) In VTV de 10 /5/ 1917;
(8)
In
VTV de 2 /3/ 1917;
(9)
In
VTV de 12/4/1917;
(10)
In VTV
de 25/1/1917;
(11)
In
VTV de 8/2/1917;
(12)
In
VTV de 3/5/1917;
(13)
In
VTV de 5/4/1917;
(14)
In
VTV de 19/7/1917;
(15)
Para saber mais sobre a vida política em
Torres Vedras nesta época, ler “Republicanos de Torres Vedras”, ed. Colibri,
2003;
(16)
In
VTV, vários números de Fevereiro:
(17)
In VTV
de 26/4/1917;
(18)
In VTV
de 3/5/1917;
(19)
In
VTV de 16/8/1917;
(20)
Informações recolhidas a partir da publicidade
publicada no jornal A Vinha de Torres Vedras, ao longo de 1917.
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