quarta-feira, 19 de julho de 2017

Torres Vedras Há Cem Anos: 1917 (1)


Se é hoje pacifica a idéia, entre historiadores, de que a 1ª Guerra marcou uma profunda ruptura com uma realidade herdada do século XIX, chegando mesmo a falar-se num “curto século XX” balizado entre essa Guerra e o fim da União Soviética em 1991, não é menos verdade que o ano de 1917 foi, de todos os anos da Guerra, o “ano de todas das decisões” ou mesmo, “o ano que mudou o mundo” (2).

Se a guerra foi o tema dominante em 1917, tendo conhecido novos e decisivos desenvolvimentos, como a revolução Russa, que desestabilizou a frente leste, ou a entrada dos Estados Unidos na guerra, nesse mesmo ano ocorreram grande e pequenos acontecimentos premonitórios para os cem anos seguintes.


Data desse ano a declaração de Corfu, que levaria à formação da Jugoslávia, a Declaração de Balfour, que preconizava a criação de um Estado Judeu da Palestina e definia a organização do Médio Oriente, o tratado de Brest-Litovsky, que começou a ser negociado no final do ano entre a Alemanha e a Rússia e que definiu a geografia futura do leste da Europa, sem esquecer o facto, que então passou quase despercebido, da formação, no parlamento italiano, do grupo “Fascio Parlamentare di Difesa Nazional”, que originou o movimento fascista, no mesmo ano em que Benito Mussolini debitava as suas ideias no Il Popolo d’Italia.

Mas, “cereja no topo desse ano”, um outro acontecimento desenrolou-se ao longo de todo o ano, com consequências imediatas no rumo da guerra, mas que marcaria todo o século. Referimo-nos à Revolução Russa, iniciada em Fevereiro e que culminaria na Revolução de “Outubro” (em Novembro).



Mas, para Portugal, esse foi igualmente um ano marcante, pois foi o ano em que, de facto, as tropas portuguesas começaram a combater na frente ocidental, onde chegaram em 2 de Fevereiro.



A participação de Portugal na frente europeia provocou grandes problemas sociais e económicos, gerando grande agitação social e política, que levou ao fim do governo de “União Sagrada”, com o regresso de Afonso Costa à liderança do governo e que culminaria, em Dezembro, como o golpe de Sidónio Pais.



O desespero social da população e as suas dificuldades crescentes não terão sido estranhas às aparições de Fátima que tiveram lugar entre Maio e Outubro desse ano.


Em Torres Vedras a guerra foi o tema dominante, quer pelas notícias divulgadas na imprensa local, quer pelo facto de muitos jovens torrienses terem sido mobilizados para a frente ocidental.

O jornal local “A Vinha de Torres Vedras” , “ no patriótico intuito de fornecer notícias do torrão natal àqueles que em terra de França estão honrando o nome português” resolveu colaborar no esforço de guerra enviando  “gratuitamente a vários conterrâneos nossos”, mobilizados para guerra, exemplares da sua edição semanal (3).


Para além das muitas notícias que a imprensa local dedicava ao conflito, por cá realizavam-se muitas iniciativas para apoiar o esforço de guerra.


Foi nesse sentido que foi criada uma “sub-comissão” local da “Cruzada das Mulheres Portuguesas” (4) que organizou várias iniciativas para angariar fundos para auxiliar as famílias dos soldados mobilizados, de entre as quais se destacou uma “Festa da Flor”, realizada no Domingo 1 de Julho.

A “Cruzada da Mulher Portuguesa” foi criada por Ana de Castro Osório nesse ano, tendo como principal objectivo apoiar a criação de orfanatos para os filhos dos soldados falecidos, mas também apoiar as vítimas da guerra, formar enfermeiras de guerra, recuperar mutilados e  fomentar “madrinhas de guerra”. Esta organização é um exemplo da crescente emancipação feminina.


Em Torres Vedras essa organização era presidida pela “professora oficial srª D. Emília de Castro Garcia” (5).


Um dos temas mais abordado, não só na imprensa local, mas também na documentação oficial da câmara e do administrador do concelho, relacionou-se com a produção, distribuição, racionamento e preço dos produtos alimentares, aquilo que na época ficou conhecido pela “crise das subsistências” (6), principal reflexo da situação de guerra junto do dia-a-dia das populações.


No concelho registaram-se vários casos, ao longo de 1917, relacionados com a “exportação”, muitas vezes ilegal, de produtos agrícolas, a produção do pão, alimento básico das populações, por causa do seu preço elevado, da má qualidade do fabrico ou da sua falta, ou ainda vários casos de açambarcamento.


Essa situação mereceu várias queixas na imprensa local, que denunciava que, de “há tempos para cá”, o preço do pão e o de outros géneros subir “assustadoramente” e de, apesar das promessas das autoridades em punir severamente quem não pesasse correctamente o pão, este ter rapidamente voltado a aparecer “mal cozido e com falta de peso” (7).


Problemas como esse foram factores que provocaram alguma agitação social, registando-se várias notícias que dão conta de várias reclamações por parte de sectores da população junto das autoridades locais contra a falta de géneros, o açambarcamento ou a má qualidade do pão fabricado.


Também em 27 de Fevereiro há registo de um tipo novo, neste concelho, de agitação, uma  greve dos operários da oficina de  tanoaria da “viúva de António da Silva”, pelo aumento de salário (8). Por intervenção das autoridades e após negociações, todos foram trabalhar, menos um operário que acabou por ser despedido.


A questão salarial deveu-se ao constante aumento do custo de vida, provocado pela situação de guerra, que se sentia de forma mais grave entre o escasso operariado local, mais dependente do salário do que a maior parte da população rural que, embora com rendimentos mais baixos, tinha a possibilidade de se socorrer de um economia de auto subsistência que caracterizava o mundo rural do concelho.


As crescentes dificuldades e carências alimentares da população mais pobre terão estado na origem da constituição, em Abril, de uma comissão de residentes na vila “para levar a efeito a organização de uma sopa para os pobres”(9).


Mas não foram só as consequências económicas e socias da guerra a marcar os acontecimentos em Torres Vedras nesse ano de 1917.


Logo em Janeiro regista-se uma alteração na recém criada companhia que fornecia luz electrica na vila, inaugurada em 1912, quando José Augusto Lopes, “conceituado comandante do Vapor “Cazeng”, e o filho, José Augusto Lopes Júnior, “proprietário e administrador da Casa Fivelim”, compraram as acções da Sociedade Progresso Industrial, Cabral e Cª, concessionária daquele serviço e passaram a deter a administração daquela empresa (10).



Talvez reflectindo essa mudança, a imprensa local anunciou que a partir de 7 de Fevereiro os estabelecimentos da vila passavam a encerrar à 19 horas “em virtude de Torres Vedras ser iluminada a electricidade”(11).


Em Abril registou-se grande agitação, a dominar uma polémica que encheu as páginas da imprensa local, por causa da decisão do executivo camarário, dominado pelo PRP, de  mandar cortar 240  árvores junto ao actual Choupal, atitude que quase provocou um levantamento popular. Em reunião de 10 Agosto, o senado da câmara, face às pressões populares, decidiu anular aquela decisão.


Não é noticiado nas páginas da imprensa local, mas sabe-se que foi nesse ano, no dia 1º de Maio, que foi fundado o hoje centenário Sport União Torrense, nascido da fusão de dois clubes de futebol fundados em 1913, o do Grémio Artístico e Comercial e o Grupo Sportivo da Tuna.


No dia 2 de Maio registaram-se grande inundações, provocadas por uma violenta trovoada na tarde dessa Quarta-Feira, atingindo a àgua, em certas zonas da vila, os 2 metros de altura, alagando casas comerciais e casas particulares. A Rua Paiva de Andrada tornou-se num “verdadeiro rio”. Nas zonas rurais a trovoada destrui “grande parte dos cereais, do trigo, das favas, do vinho e sementeiras de batata, milho e feijão”, agravando a situação económica do concelho (12).


A meio do ano, no dia 11 de Junho, conheceu a luz do dia mais um título da imprensa local, o jornal  “Ecos de Torres”, “republicano independente”, mais tarde, após o sidonismo, orgão do novo Partido Reconstituinte (criado por cisão no PRP)), juntando-se ao outro título que então se editava, “A Vinha de Torres Vedras”.

A vida política local ficou também marcada por dois acontecimentos.

Um, foi a formação, em Abril, do Núcleo de Propaganda Socialista de Torres Vedras, “acolhido com viva satisfação pela classe operária” (13), ficando as adesões a cargo de José Augusto Correia Lemos, na Rua Mouzinho da Albuquerque, nº 32, r/c. A inauguração desse Núcleo ficou marcado para 1 de Setembro, numa “sessão de propaganda, numa colectividade”, estando programada a actuação de um “sexteto” de Lisboa que “executará o hino operário “A Internacional” (14).

O outro acontecimento político importante foi o da realização das eleições administrativas para as juntas de freguesia e para a Câmara que se realizaram em 4 de Novembro de 1917.

Esse acto eleitoral foi bastante disputado, embora o peso dos eleitores em relação à população do concelho fosse bastante diminuto, devido ao discutível sistema eleitoral republicano, de tipo capacitário, que exclui da decisão política os mais de 75% de analfabetos do concelho.

Concorreram duas listas, uma do PRP, que controlava a Câmara desde 1910, e outra, apelidada de “Lista do Concelho”, liderada por Aleixo Cezário de Sousa Ferreira, reunindo à sua volta a participação e apoio de monárquicos, “evolucionistas”, “unionistas” e alguns “democráticos” descontentes com o PRP.

A “Lista” teve o apoio dos dois jornais locais. Por sua vez, o recém criado Núcleo Socialista não apela ao voto numa das candidaturas, apenas apelando a que ninguém se abstenha.

A “Lista do Concelho” venceu as eleições, mas acabou por não tomar posse, devido ao golpe de Sidónio Pais no mês seguinte (15).

Para além das conjunturas, havia um outro ritmo que marcava o desenrolar anual da vida dos seus habitantes nessa época.

O ano começou com a realização da tradicional feira de S. Vicente, que se realizava na “Várzea do Jardim ” em Janeiro.

Fevereiro era o mês do Carnaval, que nesse ano de 1917 decorreu entre 18 e 20 de Fevereiro, embora as ruas fossem preteridas aos “salões” das colectividades locais, como o “Casino”, a “Tuna” ou o “Grémio”, que anunciavam “comédias”, “récitas”, “cançonetas”, “fados”, para além dos bailes (16).

Anunciada em 1918, não encontramos qualquer referência à realização, em 1917, da tradicional Procissão dos Passos, ainda sujeita às limitações impostas pelo regime republicano ao culto público.

Em Abril, como costumava referir a imprensa local anualmente, anunciava-se a “chegada das andorinhas” à vila (17).

O primeiro de Maio foi comemorado com a actuação da Filarmónica Torrenese no coreto do Largo da Graça que, depois de executar algumas peças do seu reportório, percorreu as ruas “tocando o Hino 1º de Maio” (18).



A mesma banda iniciou a sua época de concertos regulares em 17 de Maio, mesmo dia em que se iniciou a temporada de touradas na Praça de Touros então existente na vila.

Nas Termas dos Cucos a época balnear iniciou-se em 1 de Junho, com a abertura do Hotel ali localizado.

A noite de Santo António era comemorada, como era tradição, no Varatojo e o Grémio anunciava para essa noite um baile na sua sede, com a promessa de fogueiras no seu quintal.

A 29 teve lugar a centenária Feira de S.Pedro e, no mês seguinte, a mais importante feira da zona rural do concelho, a Feira do Mato no Turcifal, seguindo-se, em 19 de Agosto a Feira de S.Vicente, onde se vendiam “alfaias agrícolas, gado, fruta e quinquilharias”(19).

A ápoca de praia em Santa Cruz só se iniciava na segunda metade de Agosto, prolongando-se até meados de Outubro. Nesta ano de 1917 teve início em 27 de Agosto com a inauguração, no “Club-Miramar” de uma sala de bilhar, com bufete.

Depois das vindimas, durante o mês de Setembro, o ano encerraria com os bailes de passagem de ano nas colectividade locais.

A Guerra, as dificuldades económicas provocadas por ela  e os acontecimentos desse ano eram o tema de conversa nas muitas tabernas do concelho, frequentadas pelo “povo”,  ou nos “modernos” espaço dos “cafés”, em expansão no centro urbano e o principal ponto de encontro das elites locais.


Seguindo a publicidade publicada na imprensa desse ano existiam então 4 espaços desses: “A Brazileira”, fundada dois anos antes e localizada na Rua Serpa Pinto;a mais antiga “Havaneza” no Largo da República, o único destes espaços ainda hoje existente; a “confeitaria e Pastelaria Chic” na Rua Heliodoro Salgado, ao lado da “Sapataria Trigueiros”; e a “Pastelaria Confiança”, na Rua Dias Neiva.

Quase todas tinham serviço de mercearia. A Brazileira de Luis Duarte Pinto, vendia doces, chá e café, vinhos do Porto e Madeira, champagnes, cognacs, licores, àguas minerais e cervejas nacionais e estrangeiras, além de tabacos, postais ilustrados e lotaria, Entre os bolos vendidos, destacavam-se os “deliciosos pastéis de feijão “ fabricados pela D. Maria Adelaide Rodrigues da Silva “mázinha”.

O pastel de feijão, “o legitimo”, também era uma das especialidades vendidas pela “Havaneza”, de João Guimarães Junior, onde se vendiam, para além de produtos idênticos aos vendidos noutros estabelecimentos do género, conservas nacionais e estrangeiras, chocolates e manteigas nacionais, recebendo ainda encomendas de vários tipos de doces, como pudins, trouxas de ovos e “lampreias”.

A “Pastelaria Chic” de Francisco Môra Rodrigues, além de vender as bebidas alcoólicas anunciadas por aqueles concorrentes, também anunciava a venda de refrescos. Confeccionava, para além do pastel de feijão, “bolos secos e pastelaria à francesa, pastelaria inglesa”, entre outros.

A Pastelaria Confiança, gerida por Alvaro Simões, fabricava igualmente o pastel de feijão, vendia várias bebidas e doces idênticos aos referidos nos outros estabelecimentos, vendendo “leite a copo” que podia ser mandado ao domicilio a quem o solicitasse, incluindo também a venda de gelados, rebuçados de ovos, pudins, queijinhos, pão de ló e bolo de festa (20).

Entre as notícias da guerra, o desafio quotidiano de enfrentar as suas consequências económicas e socias e continuar a viver entre os ritmos da tradição e as novidades dos novos tempos, este é um retrato possível de Torres Vedras de há cem anos, em 1917.



(1)    Resumo da nossa comunicação apresentada em 3 de Junho último na conferência “1917 – O Ano de Todas as decisões”, integrada no ciclo de palestras Comemorativas do Centenário da 1ª Guerra Mundial, organizadas pelo núcleo torriense da Liga dos Combatentes, como o apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras;Um versão mais sintética deste texto foi publicada na secção Vedrografias do jornal "Badaladas" com o título "Torres Vedras em 1917", em 30 de Junho de 2017;
(2)    Angelo d’Orsi, 1917 – o Ano que mudou o mundo, Bertrand Editora, 2017;
(3)    In “A Vinha de Torres Vedras” (VTV) de 5/7/1917;
(4)    In VTV de 15/2/1917;
(5)    in VTV  de 7/6/1917;
(6)    Sobre este problema, podem ler a minha comunicação “A Questão das “subsistências” em Torres Vedras (1916-1918)” , publicada em “História da Alimentação, Turres Veteras IX, Lisboa Colibri, 2007, pp.181-214;
(7)    In VTV de 10 /5/ 1917;
(8)    In VTV de 2 /3/ 1917;
(9)    In VTV de 12/4/1917;
(10)                       In VTV de 25/1/1917;
(11)                       In VTV de 8/2/1917;
(12)                       In VTV de 3/5/1917;
(13)                       In VTV de 5/4/1917;
(14)                       In VTV de 19/7/1917;
(15)                        Para saber mais sobre a vida política em Torres Vedras nesta época, ler “Republicanos de Torres Vedras”, ed. Colibri, 2003;
(16)                       In VTV, vários números de Fevereiro:
(17)                       In VTV de 26/4/1917;
(18)                       In VTV de 3/5/1917;
(19)                       In VTV de 16/8/1917;
(20)                        Informações recolhidas a partir da publicidade publicada no jornal A Vinha de Torres Vedras, ao longo de 1917.

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