(A fotografia em cima mostra o meu avô, António Ferreira Aspra, fotografado junto ao avião de Sanjurjo, no campo de aviação de Santa Cruz, fotografia que terá sido tirada a 19 ou 20 de Julho de 1936).
No dia 19 de
Julho de 1936, Domingo, um avião pilotado por um ás da aviação espanhola, Juan
Ansaldo, aterrava, semi-clandestinamente no campo de aviação de Santa Cruz.
Trazia uma
missão, ir buscar a Cascais o General Sanjurjo para este comandar a sublevação
iniciada dois dias antes em Marrocos contra o governo republicano de Madrid.
Esse
episódio marcou a memória colectiva dos torrienses desse tempo, até pelo
desfecho trágico desse voo.
No primeiro
fim-de-semana do conflito, os “naciolalistas” estavam separados, ocupando Marrocos
e as Canárias, o Sul à volta de Sevilha, cidade tomada pelo General Queipo de
Llano, e o Norte (Galiza e Castela e Leão).
Estava-se no
início da Guerra Civil de Espanha, que se prolongou até 1939 e que, lançando a
Espanha num banho de sangue, é por muitos considerada um ensaio geral para a
IIª Guerra Mundial.
Embora o
líder máximo fosse o Genaral Mola, o objectivo era colocar rapidamente à frente
dos nacionalistas um General mais prestigiado , o General Sanjurjo, que , no
seu exilio português, em Cascais, acompanhava e era informado à distância sobre
os acontecimentos.
Para isso
Mola enviou a Portugal um herói da aviação espanhola, Juan Ansaldo, que partiu
de Pamplona para Portugal no dia 19 de Julho chegando nesse mesmo dia ao
"campo de aviação auxiliar de Santa Cruz, no limite ocidental da
Europa" , que "acolhe docemente o avião", um "Pass
Moth" com a matricula EC-VAA. (4).
Ao aterrar
no campo de aviação de Santa Cruz era aguardado por dois automóveis, onde
encontra um seu velho amigo, "Tavares", recebendo a notícia, que se
confirma ser falsa, segundo a qual o general Sanjurjo já tinha partido para
"Burgos a bordo de um avião francês".
Seguindo a
narração de Ansaldo, este, tomando todas as precauções para abrigar o avião
porque "não existia nesse aeródromo nenhum serviço de sobrevivência
[apoio]" (pág.51), partiu de seguida para Lisboa, a caminho do Estoril,
numa das viaturas que o aguardavam, confirmando, á sua chegada ao Estoril, que
o general continuava nessa localidade.
Foi aí que
se negociou uma saída airosa que não comprometesse o regime português face a um
desfecho ainda imprevisível da situação em Espanhola, assim descrita por César
de Oliveira:
“Ansaldo vinha buscar Sanjurjo para o transportar para Burgos, a
fim de que este assumisse a chefia do movimento militar. Chegado a Portugal,
Ansaldo, com o apoio da PVDE e do ajudante de campo do Presidente da República
portuguesa, iniciou a preparação da descolagem do avião em direcção a Burgos.
No entanto, Oliveira Salazar fez saber aos emigrados espanhóis, por intermédio
do capitão Agostinho Lourenço, director da polícia política, que “interditava o
uso de aeródromos militares para a descolagem do avião mas que nada tinha a ver
com o que se passava em aeródromos civis”. Em reuniões sucessivas no Estoril –
e sempre com o ajudante de campo do Presidente Carmona a fazer as ligações
entre os emigrados espanhóis e as autoridades portuguesas - chegou-se a uma
solução satisfatória para o lder do Alzamento e que “cobria” eventuais
complicações para o governo de Salazar: o avião iria de Santa Cruz para
Alverca. Aeródromo militar a 20 Km de Lisboa, aí seria reabastecido e
deslocaria normalmente como se o fizesse para Espanha; aterraria, depois, num
campo improvisado nas imediações de Cascais e aí embarcaria o general e rumaria
a Burgos” (2) .
Nessa noite
do dia 19, Ansaldo recebeu um telefonema
que o inquietou: era uma chamada de Santa Cruz que o informava que
"elementos comunistas andavam à volta do avião", apelando para que
tomasse todas as providências para se evitar qualquer "sabotagem".
Ansaldo ficou indignado com o facto de "tais elementos" serem
deixados em liberdade pela ditadura portuguesa e mandou que guardassem o avião.
Depois de vários telefonemas, Ansaldo recebeu finalmente a confirmação de que
tudo tinha sido feito de acordo com as suas ordens para resguardar o aparelho
(pág.53).
É neste
ponto que a referência de Ansaldo à presença de gente da oposição (que ele
designa como "comunistas", mas que podiam ser outros oposicionistas,
como era o caso de dois elementos da maçonaria local que lá estiveram), se
cruza com a tradição oral local,segundo a qual teria havido uma tentativa, em
Santa Cruz, de sabotar o avião.
A aplicação
da classificação de "comunistas" às pessoas da oposição ou desafectas
ao regime era uma designação normal na propaganda da época, e que englobaria
todos aqueles que se opunham ao regime.
Curiosamente
o próprio Ansaldo, que mais tarde, tendo entrado em dissidência como regime
franquista, foi obrigado a exilar-se, sendo no exilio que escreveu e editou as
suas memórias , no prefácio da segunda edição da sua obra, se queixava do
"regime franquista com a sua táctica, infelizmente hoje copiada por outros
países, de chamar comunista a quem se recuse a ser seu escravo", tentando
assim, "caluniar o autor
"(pág.9).
Segundo o
testemunho de tradição oral que recolhemos, em “segundas àguas”, vários
elementos da oposição republicana local
tinham estado em Santa Cruz a tentar sabotar o avião de Ansaldo. Para isso
tentaram desviar as atenções dos elementos da GNR que guardavam o avião.
Uns levaram
os elementos da GNR a "tomar um copo", enquanto outros, à volta do
avião, momentâneamente sem vigilância, tentavam sabotar o avião, pulando sobre
ele ou tentando danificar partes do avião.
Contudo,
para grande surpresa dos "sabotadores" de Santa Cruz o avião acabaria
por levantar voo, sem qualquer problema. Recorde-se aqui que a intenção
manifestada pelos sabotadores, não era matar ninguém, mas apenas atrasar o voo
e a saida de Sanjurjo do país.
Por isso
terão ficado aterrorizados quando, horas mais tarde, souberam do acidente que
matou o general Sanjurjo e guardaram segredo da sua actuação.
Entretanto
continuamos a narração de Ansaldo:
Saindo do
Estoril a caminho de Santa Cruz, refere que o"pior inimigo da navegação
aérea apareceu nessa manhã de um 20 de Julho, meridional e quente: o nevoeiro.
À medida que nos aproximávamos de Santa Cruz, ele tornava-se mais denso,
escondendo o sol, tornando mesmo difícil avançar pela estrada. Das 10 horas da manhã
às duas horas da tarde eu esperei furioso. De tempos a tempos, um pálido
reflexo de sol brilhava no terreno e eu punha os motores em marcha; logo de
seguida a neblina espalhava-se tão baixo que não nos conseguíamos ver uns aos
outros. Telefonei várias vezes para o Estoril para explicar o que se passava;
respondiam-me que o general me esperava com alguns amigos(...)".
Finalmente,
por volta da uma hora e meia da tarde "como as condições atmosféricas íam
de mal a pior, eu decidi adiar o voo" . Estando a almoçar, uma hora mais
tarde "o nevoeiro dissipou-se. Com toda a pressa corri para o avião, pus o
motor em marcha e descolei para Alverca".
Acompanhou-o no voo um elemento
da PVDE. Em Alverca tratou das formalidades e partiu, a meio da tarde para
"a Marinha", o campo improvisado onde iria embarcar Sanjurjo.
Em Cascais,
nesse dia 20 de Julho, já no início da tarde, o avião levantou voo , mas não
conseguiu subir o suficiente, pelo que Ansaldo tentou regressar à pista, mas o
avião acabou por se esmagar contra o solo, incendiando-se. O piloto foi cuspido
e sobreviveu ao acidente, mas o general morreu logo no embate, ficando depois o
seu corpo envolvido pelas chamas.
A edição do
Diário de Lisboa de 21 de Julho descreve as explicações de Ansaldo sobre o
acidente:
“Ao levantar
voo, um forte torrão, dos que abundam no local, ou uma cova, causou a rotura da
hélice. Senti que o aparelho ia afocinhar mas consegui manter a
horisontalidade. A queda inevitável foi, assim, em pleno, de “barriga”. Gritei
ao general que saísse do aparelho. Não me respondeu. Tentei ajuda-lo, mas não
se movia. Julguei que havia perdido os sentidos, como eu depois os perdi ante a
tragédia e os baldados esforços que fiz para a evitar. Mas não, o general
estava morto. Quando as chamas o envolveram já estava insensível”.
O piloto
desmentia assim a descrição feita por alguns observadores, que diziam ter visto
o avião a cair na vertical, bem como a ideia, que continuou muito divulgada,
segundo a qual o general tinha morrido queimado. Como revelou nessa mesma reportagem
o marquês de Quintana,que observou o cadáver do general , este apresentava uma
“ferida profunda, em cruz, que deve ter sido produzida por um ferro do
aparelho, no momento da queda e que lhe deu morte imediata”. (5).
Logo
correram rumores sobre a hipótese de um atentado, inicialmente atribuído aos
republicanos portugueses, mais tarde, e perante o desenrolar dos acontecimentos
em Espanha, atribuído a Franco, já que foi este que acabou por beneficiar com a
morte de Sanjurjo (6), sucedendo-lhe na liderança dos nacionalistas, rumor que
ganhou maior peso quando, no ano seguinte, também o general Mola morreu noutro
acidente de avião mal esclarecido.
Contudo, em
termos oficiais, e com base no testemunho do piloto, o acidente foi atribuído
ao excesso de carga e às más condições da pista de Cascais.
A tese de
atentado foi descartada pelo próprio piloto, apontando outras razões para o
mesmo: as más condições da pista da Marinha, o tempo que obrigou a levantar na
direcção mais difícil e o excesso de carga com as malas que o general Sanjujo
quis levar.
Técnicamente
o avião não conseguiu ganhar velocidade suficiente para sobrevoar as árvores
que se encontravam no final da pista e a hélice falhou e partiu-se, não se sabe
por ter embatido numa árvore se por qualquer problema técnico.
Geralmente
um acidente acontece porque se combinam vários factores. Os
"sabotadores" de Santa Cruz, a ser verdade a tradição oral, não foram
os responsáveis directos por qualquer falha técnica, mas nunca se virá a saber
se contribuiram para potenciar as dificuldades técnicas que levaram o avião a
não conseguir ganhar altitude no voo fatal.
Mais do que
certezas, a história que aqui se conta continua envolta em mistério e duvidas,
as quais provávelmente, nunca virão a ser cabalmente esclarecidas.
Especula-se
muito com o que teria acontecido se o general Sanjurjo tivesse chegado vivo a
Espanha.
Uma das
consequências seria o facto de o General Franco não aceder tão fácilmente à
liderança do movimeto nacionalista.
Depois, se
fosse o general Sanjurjo a liderar a Espanha durante a segunda Guerra mundial
talvez a posição da Espanha no conflito
tivesse sido diferente, já que se conhece a maior simpatia de Sanjurjo por
Hitler, maior do que aquela que era nutrida por Franco.
Mais do que certezas, a história que aqui se
conta continua envolta em mistério e duvidas, as quais provávelmente, nunca
virão a ser cabalmente esclarecidas.
NOTAS:
(1) –
ORNELLAS, Carlos d’ , “Por Espanha – Crónica de viagem”, in Gazeta dos Caminhos
de Ferro, nº 1552, Lisboa, 16 de Agosto de 1952, pp. 227-228, edição disponibilizada
na internet, no site da Hemeroteca de Lisboa;
(2) –
OLIVEIRA, César, Salazar e a Guerra Civil de Espanha, ed. O Jornal, Lisboa
1987, pp.141-142;
(3) ANSALDO,
Juan Antonio, Mémoires d'un Monarchiste Esoagnol , 1931-1952 (tradução de Jean
Viet), Mónaco, Éditions du Rocher, 1953. (Trata-se da tradução do seu primeiro
livro de memórias publicado originalmente em espanhol em Buenos Aires, pela
editora Vasca Ekin).Nesse livro as paginas 50 a 57 são dedicadas à sua
malograda viagem a Portugal, falando da sua passagem por Santa Cruz.
(4)
Site Aeropinakes / La máquina de la civilización,
dedicado à história da aviação na Guerra Civil de Espanha.Também no site "Registro
de aviones comerciales en Espana" - http://www.sbhac.net/Republica/Fuerzas/FARE/Materiales/Registro.htm
, onde se pode ler o seguinte registo: "EC-VAA - DH.80A Puss Moth 2246 G-ACBL EC-W18 EC-VAA
Teodoro Martel Olivares > Francisco Moreno 27.01.34 Written off Cascais
20.07.36 Canc 12.11.40 EC-VAV” .
(5) Diário de Lisboa, edição de 21 de Julho de
1936, edição disponibilizada na internet, no site da Fundação Mário Soares.
(6) É esta a
tese escolhida no recentemente editado romance histórico “O Nosso Homem no
Estoril” que defende que o avião teria sido sabotado, não em Santa Cruz, mas
durante a sua escala em Alverca.
Podem ver mais sobre o tema AQUI.
(um resumo deste texto foi publicado no jornal Badaladas no passado dia 22 de Julho de 2016).
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