quinta-feira, 24 de junho de 2021

95 anos de abastecimento público, de água canalizada, em Torres Vedras

Nas primeiras décadas do século XX, o abastecimento de água, por parte dos habitantes de Torres Vedras, não diferia muito do que se passava na Idade Média, ou mesmo de tempos mais recuados, o dos romanos e o dos árabes (1).

Os chafarizes e as fontes, abastecidas por nascentes, minas e aquedutos, assim como os poços, eram o principal recurso dos habitantes para se servirem do precioso líquido, sem esquecer as águas dos rios e riachos que atravessavam o concelho (2) .

A distribuição de água pelos habitantes, era igualmente garantida pelo trabalho de aguadeiros e aguadeiras, que, de recipiente à cabeça, percorriam as ruas da vila.

Estes forneciam-se principalmente nos chafarizes dos Canos e da Praça do Município, de onde transportavam a água aos seus fregueses, mediante uma mensalidade que variava entre os 1 200 e os 2 mil réis, de acordo com o consumo de cada família.

(uma aguadeira, num dos cantos do postal)

Em certas épocas, a água desses chafarizes escasseava ou corria muito lentamente, para desespero dos aguadeiros, devido à falta de limpeza dos canos ou devido ao desvio ilegal que muitos faziam para regar as hortas.

Respondendo às queixas, a Câmara procedia à limpeza dessas canalizações que transportavam a água, a partir de uma mina existente “à esquerda e ao cimo da ladeira que é conhecida pela ladeira dos Cucos”.

O zelador e fiscal das obras de limpeza já sabia a localização dessas fugas, que “apareciam logo à saída da mina, e as grandes e principais fugas começavam na Quinta de Fontaínhas e na seguinte, conhecida por Quinta do Marques (…) que tinha sempre os tanques cheios e a água corria constantemente, desperdiçando-se muito líquido precioso que tanta falta fazia à vila”, situação que se repetia à passagem pela Quinta das Covas. “Por todo o trajecto de espaço a espaço, havia bicas e torneiras” que desviavam a água para casas e hortas ao longo do percurso.

Terminado o trabalho de fiscalização e limpeza, a água voltava a correr em abundância naqueles chafarizes, para alívio dos aguadeiros, situação que durava alguns meses, até que a água voltava a diminuir, voltando novamente a efectuar-se os reparos provocados pelos desvios ilegais, sem que os proprietários responsáveis “sofressem qualquer pena, por serem políticos e julgarem-se senhores do burgo” (3).

Uma outra actividade, igualmente essencial, era a das lavadeiras, que usavam o rio Sizandro, junto às pontes a norte da vila, para a sua tarefa de lavagem da roupa dos habitantes que podiam pagar o serviço.

(lavadeiras no Rio Sizandro)

Alguns moradores tinham o privilégio de possuírem poços junto às suas casas, importante complemento ao abastecimento público.

Conhece-se a quantidade e a localização desses poços na vila, graças à publicação, em 1907, de um levantamento, para responder a uma postura municipal que obrigava os “donos, locatários, ou administradores de propriedades em que haja poços ou quaisquer depósitos de aguas (…) a franquear estas para acudir aos incêndios”.

Esse levantamento, organizado por ruas, praças e largos, com o nome dos proprietários, número de poços, profundidade e nível, quais os que usavam bombas ou noras, baldes e tanques, entre outras informações, permitem-nos, não só perceber a densidade de poços existentes no centro urbano, como a toponímia da época.

Ao todo, esse documento registava 144 proprietários com um total de 149 poços.

Destes, 70 tinham bomba para elevar a água, 92 tinham balde, só 5 tinham noras puxadas por “gado”, 5 eram públicos e 7 tinham tanque.

A maioria dos poços tinham menos de 10 metros de profundidade, mas existiam 2 com 20 metros, um na Rua de S.Tiago e outro na Rua dos Cavaleiros.

A título de curiosidade, com base nessa publicação, registe-se a distribuição do número de poços pelas ruas da vila:

Rua Serpa Pinto – 27 poços; Rua Dias Neiva -  18; Praça Nova (Largo do Município) – 1; Rua de S. Pedro – 3; Travessa Luís Cardoso- 1; Rua de Traz do Açougue – 2; Rua da Cruz – 5; Largo de Santo António – 5; Rua de Carcavelos – 6 ; Horta Nova – 1 ; Rua dos Cavaleiros – 8 poços; Travessa do Torres – 1; Estrada da Porta da Várzea – 6; Rua de S. Tiago – 6; Rua dos Celeiros de Santa Maria – 4; Rua do Terreirinho – 5 poços; Praça Nova (asilo de S. José) – 1; Rua das Flores -7; Rua da Olaria – 9 ; Travessa da Olaria- 4; Rua da Cêrca – 4;  Avenida – 8 ; Rua Valadim – 1 ; B. Mouzinho d’Albuquerque – 25 (4).

Só na década de 1920 se começou a debater, com maior insistência na imprensa local, a necessidade de modernização no modo de abastecer água à população.

Ao longo de 1920 e 1921 o jornal “Ecos de Torres” iniciou uma campanha de sensibilização pública sobre essa necessidade, destacando-se, como articulista, Victor Cesário da Fonseca.

Na sua edição de 5 de Setembro de 1920, esse semanário local refere que a Câmara, “por intermédio do seu grande auxiliara nesta questão, sr. Ulpiano da Silva”, estava a “proceder a pesquisas na Quinta da Gaga” e que as “minas e aberturas”   aí feitas já davam “ a certeza da aquisição de 25: 000 litros de água em cada 24 horas”.

Em entrevista, nessa mesma edição, Ulpiano Silva esclarecia que a água que esperava obter nessa exploração era suficiente para abastecer os chafarizes da vila, possibilitando, igualmente, obter água suficiente para os prédios da vila, podendo-se “fornecer diariamente 150:000 a 200:000 litros”. Contudo ainda não era possível transportá-la para as habitações sem auxilio de um motor de elevação, sendo ainda necessário o recurso a aguadeiros que, por meio daquela captação, conseguiriam “encher 60 a 80 bilhas vulgares (…) em cada hora” (5).

Em Abril de 1924, esse mesmo semanário voltava a referir a necessidade urgente de abastecer a vila de água, historiando também a pesquisa feita pelo município de um local onde existisse água suficiente para esse fim :

“Havia no concelho, no lugar da Serra de  S. Julião, um manancial de água, brotando à superfície da terra, numa torrente superior à necessidade do consumo da vila, mas a nascente fica a cerca de 8 quilómetros desta”, sendo enorme o “dispêndio na sua condução, armazenagem e distribuição”.

Para o articulista “o que Torres Vedras necessita, é dum abastecimento completo de água, isto é, a sua distribuição pelas casas dos habitantes, pelos edifícios públicos, lavagem e rega das ruas, limpeza de esgotos, bocas de incêndio, etc., com um reservatório cuja dimensão permitisse arrecadar o volume de água suficiente” a essas necessidades.

Com esse objectivo, refere o artigo, a Câmara “pensou primeiramente em dotar a vila do numero de chafarizes necessários às suas exigências”, lançando “as vistas” para o reservatório da já mencionada Quinta da Gaga, só a 3 quilómetros da vila, o qual “por uma medição muito grosseira, avaliámos em cerca de 45:000 litros o volume de água com que se pode contar, ou seja, 10 litros por dia e por habitante” (6).

Logo nesse mês, em 28 de Abril, realizou-se uma reunião da Câmara para tratar da questão do abastecimento da  água (7).

Contudo, meses depois, tudo continuava na mesma, levando o mesmo periódico a referir, na sua edição de 5 de Julho de 1921, que “Água!Água” ere “o grito dos torrenses”, havendo em Torres Vedras “ a par de uma crise de abundância de vinho, uma crise de falta de água” (8).

É preciso esperar mais um ano para se anunciar ter a Câmara aceite um plano do “engenheiro Sr. Ghira, que compreende a elevação das águas do poço do Jardim, com o aproveitamento da nascente da Gaga alta, que virá despejar no reservatório a efectuar no forte de S. Vicente” (9).

Uma portaria publicada no Diário do Governo, com a data de 16 de Setembro de 1922, autorizava a Câmara a construir um reservatório de água na “parte central do Castelo”, bem como a aí instalar as tubagens necessárias (10).

O tempo ia passando, e as tão necessárias obras continuavam por fazer, até que, em 7 de Maio de 1924, era assinada uma escritura com o Estado para iniciar a construção do reservatório do Castelo que receberia a água elevada, a partir de uma nascente no Choupal, para distribuir pelo centro urbano, através de uma rede planeada num projecto da autoria de João Guimarães Junior.

Essa rede seria distribuída do seguinte modo : “um colector central que partindo do Largo dos Polomes, seguiria pelas Ruas Gulherme Gomes Fernandes e Serpa Pinto, até ao edifício do Convento da Graça, com um ramal que seguindo á Rua Paiva d’Andrada terminará na Porta da Várzea; um colector lateral, partindo igualmente do Largo dos Polomes, seguirá pela Rua 9 d’Abril em direcção ao Largo da República, Avenida 5 de Outubro á estação do caminho de ferro, com um ramal pela Avenida Tenente Valadim; outro colector lateral partindo pelas Escadinhas do Castelo, aonde será colocado um marco fontenário, com prolongamento até á Porta da Varzea” (11).

É necessário esperar mais de um ano para se anunciar, em Setembro de 1925, estarem a decorrer as obras da “central elevatória da água para o abastecimento da vila”, decorrendo também a limpeza da cisterna do Castelo (12), obras essas concluídas em Janeiro de 1926, na mesma data em que se anuncia estarem a ser levantados “os perfis das ruas da vila”, nas  quais, assim que se conclua a colocação das  tubagens, se “começarão a abrir” as valas para o assentamento destas.

Finalmente, na tarde do dia 13 de Junho de 1926, a água canalizada chega ao Largo da Graça, para abastecer a vila (13).

Em 20 de Junho de 1934, já em pleno Estado Novo, foram criados o Serviços Municipalizados de Água, Saneamento e Electricidade, unificando, sob gestão municipal, duas das grandes obras iniciadas pela República, a eletrificação pública, inaugurada em 1 de Dezembro de 1912, e o já mencionado abastecimento público de água canalizada, inaugurado já no início da ditadura mas obra iniciada no final do regime republicano.

Contudo, é preciso esperar mais algumas décadas para se concluir o abastecimento de água canalizada a todos os pontos do concelho.

Antes, esse abastecimento da água às populações rurais foi garantido pelo fomento de fontanários e lavadouros, muito propagandeado a partir da década de 1940 (14). Só a partir do final da década de 1950 (15), e ao longo da década seguinte, é que se acentua e acelera o fornecimento de água canalizada a essas populações, obra que, em muitos casos, só se conclui após o 25 de Abril. Mas esta é uma outra história ainda por contar.

(1)    - leia-se, a propósito da evolução histórica do abastecimento de água a Torres Vedras, a comunicação  de Carlos Guardado da Silva, “O abastecimento de água à vila de Torres Vedras – Séculos XII-XIX”, incluída na obra lançada no passado Sábado,  semana “O Abastecimento da Cidade – Mercado Alimentar”, actas de Turres Veteras XXII;

(2)    - veja-se o interessante levantamento realizado por alunos da Escola Secundária Henriques Nogueira, intitulado Fontes, Chafarizes, Bicas – A Água no quotidiano de Torres Vedras, ed. ESHN/ME, 1993;

(3)    - Zenriques, “O Sino da Saudade”, jornal “Badaladas” de 15 de Agosto de 1960, também referido por Adão de Carvalho em crónicas da sua rúbrica “Recordando…”, intituladas “Abastecimento de Água” e “Abastecimento de água a Torres Vedras”, publicadas no jornal “Badaladas”, respectivamente em 20 de Janeiro de 1995 e 15 de Novembro de 1996;

(4)    - Serviço de Incendios - Mappa dos Manaciaes de Agua da Villa de Torres Vedras, 1907, Typographia e Papelaria Cabral, Torres Vedras;

(5)    - “Para os torreenses lerem e apreciarem – Água! Água!”, in Ecos de Torres, 5/9/ 1920;

(6)    - “Magna Questão – A Água –uma carta de João Ghira”, in “Eco de Torres” de 14/4/1921;

(7)    - “Abastecimento de Água”, por Victor Cesário da Fonseca, in Ecos de Torres de 28/4/1921;

(8)    -“Água!Água”, in Ecos de Torres de 5/7/1921;

(9)    - “Abastecimento d’águas” por Marques Carvalho, in “A Reconstituição” de 6/8/1922;

(10)                       - “Castelo de Torres Vedras”, in “A Reconstituição” de 24/9/1922;

(11)                       -“A Abastecimento de aguas – o que nos disse o sr. Álvaro Galrão, presidente da Comissão Executiva da Camara Municipal”, in “A Nossa Terra” de 1/6/1924;

(12)                       - “A Nossa Terra” de 13/9/1925;

(13)                       – esta data é indicada por Júlio Vieira na última página da sua obra Torres Vedras Antiga e Moderna, editada em 1926;

(14)                       -leia-se, a propósito, o Relatório da Gerência desta Câmara no Ano de 1948, ed. CMTV, Tipografia “O Torreense”, 1948;

(15)                       - leia-se a entrevista com João Alexandre Moreira, publicada pelo jornal “Voz do Concelho” de 25 de Março de 1958, “Os problemas do Abastecimento de água à vila e electrificação do Concelho analisados pelo Director dos serviços Municipalizados”.

 

 

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