Nas primeiras décadas do século XX, o abastecimento de água, por parte dos habitantes de Torres Vedras, não diferia muito do que se passava na Idade Média, ou mesmo de tempos mais recuados, o dos romanos e o dos árabes (1).
Os chafarizes e as fontes, abastecidas por nascentes, minas e aquedutos,
assim como os poços, eram o principal recurso dos habitantes para se servirem
do precioso líquido, sem esquecer as águas dos rios e riachos que atravessavam
o concelho (2) .
A distribuição de água pelos habitantes, era igualmente garantida pelo
trabalho de aguadeiros e aguadeiras, que, de recipiente à cabeça, percorriam as
ruas da vila.
Estes forneciam-se principalmente nos chafarizes dos Canos e da Praça
do Município, de onde transportavam a água aos seus fregueses, mediante uma
mensalidade que variava entre os 1 200 e os 2 mil réis, de acordo com o
consumo de cada família.
Em certas épocas, a água desses chafarizes escasseava ou corria muito lentamente, para desespero dos aguadeiros, devido à falta de limpeza dos canos ou devido ao desvio ilegal que muitos faziam para regar as hortas.
Respondendo às queixas, a Câmara procedia à limpeza dessas canalizações
que transportavam a água, a partir de uma mina existente “à esquerda e ao cimo
da ladeira que é conhecida pela ladeira dos Cucos”.
O zelador e fiscal das obras de limpeza já sabia a localização dessas
fugas, que “apareciam logo à saída da mina, e as grandes e principais fugas
começavam na Quinta de Fontaínhas e na seguinte, conhecida por Quinta do
Marques (…) que tinha sempre os tanques cheios e a água corria constantemente,
desperdiçando-se muito líquido precioso que tanta falta fazia à vila”, situação
que se repetia à passagem pela Quinta das Covas. “Por todo o trajecto de espaço
a espaço, havia bicas e torneiras” que desviavam a água para casas e hortas ao
longo do percurso.
Terminado o trabalho de fiscalização e limpeza, a água voltava a correr
em abundância naqueles chafarizes, para alívio dos aguadeiros, situação que
durava alguns meses, até que a água voltava a diminuir, voltando novamente a
efectuar-se os reparos provocados pelos desvios ilegais, sem que os
proprietários responsáveis “sofressem qualquer pena, por serem políticos e
julgarem-se senhores do burgo” (3).
Uma outra actividade, igualmente essencial, era a das lavadeiras, que
usavam o rio Sizandro, junto às pontes a norte da vila, para a sua tarefa de
lavagem da roupa dos habitantes que podiam pagar o serviço.
Conhece-se a quantidade e a localização desses poços na vila, graças à publicação, em 1907, de um levantamento, para responder a uma postura municipal que obrigava os “donos, locatários, ou administradores de propriedades em que haja poços ou quaisquer depósitos de aguas (…) a franquear estas para acudir aos incêndios”.
Esse levantamento, organizado por ruas, praças e largos, com o nome dos
proprietários, número de poços, profundidade e nível, quais os que usavam
bombas ou noras, baldes e tanques, entre outras informações, permitem-nos, não
só perceber a densidade de poços existentes no centro urbano, como a toponímia
da época.
Ao todo, esse documento registava 144 proprietários com um total de 149
poços.
Destes, 70 tinham bomba para elevar a água, 92 tinham balde, só 5
tinham noras puxadas por “gado”, 5 eram públicos e 7 tinham tanque.
A maioria dos poços tinham menos de 10 metros de profundidade, mas
existiam 2 com 20 metros, um na Rua de S.Tiago e outro na Rua dos Cavaleiros.
A título de curiosidade, com base nessa publicação, registe-se a
distribuição do número de poços pelas ruas da vila:
Rua Serpa Pinto – 27 poços; Rua Dias Neiva - 18; Praça Nova (Largo do Município) – 1; Rua
de S. Pedro – 3; Travessa Luís Cardoso- 1; Rua de Traz do Açougue – 2; Rua da
Cruz – 5; Largo de Santo António – 5; Rua de Carcavelos – 6 ; Horta Nova – 1 ;
Rua dos Cavaleiros – 8 poços; Travessa do Torres – 1; Estrada da Porta da
Várzea – 6; Rua de S. Tiago – 6; Rua dos Celeiros de Santa Maria – 4; Rua do
Terreirinho – 5 poços; Praça Nova (asilo de S. José) – 1; Rua das Flores -7;
Rua da Olaria – 9 ; Travessa da Olaria- 4; Rua da Cêrca – 4; Avenida – 8 ; Rua Valadim – 1 ; B. Mouzinho
d’Albuquerque – 25 (4).
Só na década de 1920 se começou a debater, com maior insistência na
imprensa local, a necessidade de modernização no modo de abastecer água à
população.
Ao longo de 1920 e 1921 o jornal “Ecos de Torres” iniciou uma campanha
de sensibilização pública sobre essa necessidade, destacando-se, como
articulista, Victor Cesário da Fonseca.
Na sua edição de 5 de Setembro de 1920, esse semanário local refere que
a Câmara, “por intermédio do seu grande auxiliara nesta questão, sr. Ulpiano da
Silva”, estava a “proceder a pesquisas na Quinta da Gaga” e que as “minas e
aberturas” aí feitas já davam “ a
certeza da aquisição de 25: 000 litros de água em cada 24 horas”.
Em entrevista, nessa mesma edição, Ulpiano Silva esclarecia que a água
que esperava obter nessa exploração era suficiente para abastecer os chafarizes
da vila, possibilitando, igualmente, obter água suficiente para os prédios da
vila, podendo-se “fornecer diariamente 150:000 a 200:000 litros”. Contudo ainda
não era possível transportá-la para as habitações sem auxilio de um motor de
elevação, sendo ainda necessário o recurso a aguadeiros que, por meio daquela
captação, conseguiriam “encher 60 a 80 bilhas vulgares (…) em cada hora” (5).
Em Abril de 1924, esse mesmo semanário voltava a referir a necessidade
urgente de abastecer a vila de água, historiando também a pesquisa feita pelo
município de um local onde existisse água suficiente para esse fim :
“Havia no concelho, no lugar da Serra de S. Julião, um manancial de água, brotando à
superfície da terra, numa torrente superior à necessidade do consumo da vila,
mas a nascente fica a cerca de 8 quilómetros desta”, sendo enorme o “dispêndio
na sua condução, armazenagem e distribuição”.
Para o articulista “o que Torres Vedras necessita, é dum abastecimento
completo de água, isto é, a sua distribuição pelas casas dos habitantes, pelos
edifícios públicos, lavagem e rega das ruas, limpeza de esgotos, bocas de
incêndio, etc., com um reservatório cuja dimensão permitisse arrecadar o volume
de água suficiente” a essas necessidades.
Com esse objectivo, refere o artigo, a Câmara “pensou primeiramente em
dotar a vila do numero de chafarizes necessários às suas exigências”, lançando
“as vistas” para o reservatório da já mencionada Quinta da Gaga, só a 3
quilómetros da vila, o qual “por uma medição muito grosseira, avaliámos em
cerca de 45:000 litros o volume de água com que se pode contar, ou seja, 10
litros por dia e por habitante” (6).
Logo nesse mês, em 28 de Abril, realizou-se uma reunião da Câmara para
tratar da questão do abastecimento da
água (7).
Contudo, meses depois, tudo continuava na mesma, levando o mesmo
periódico a referir, na sua edição de 5 de Julho de 1921, que “Água!Água” ere
“o grito dos torrenses”, havendo em Torres Vedras “ a par de uma crise de
abundância de vinho, uma crise de falta de água” (8).
É preciso esperar mais um ano para se anunciar ter a Câmara aceite um
plano do “engenheiro Sr. Ghira, que compreende a elevação das águas do poço do
Jardim, com o aproveitamento da nascente da Gaga alta, que virá despejar no
reservatório a efectuar no forte de S. Vicente” (9).
Uma portaria publicada no Diário do Governo, com a data de 16 de
Setembro de 1922, autorizava a Câmara a construir um reservatório de água na
“parte central do Castelo”, bem como a aí instalar as tubagens necessárias (10).
O tempo ia passando, e as tão necessárias obras continuavam por fazer,
até que, em 7 de Maio de 1924, era assinada uma escritura com o Estado para
iniciar a construção do reservatório do Castelo que receberia a água elevada, a
partir de uma nascente no Choupal, para distribuir pelo centro urbano, através
de uma rede planeada num projecto da autoria de João Guimarães Junior.
Essa rede seria distribuída do seguinte modo : “um colector central que
partindo do Largo dos Polomes, seguiria pelas Ruas Gulherme Gomes Fernandes e
Serpa Pinto, até ao edifício do Convento da Graça, com um ramal que seguindo á
Rua Paiva d’Andrada terminará na Porta da Várzea; um colector lateral, partindo
igualmente do Largo dos Polomes, seguirá pela Rua 9 d’Abril em direcção ao
Largo da República, Avenida 5 de Outubro á estação do caminho de ferro, com um
ramal pela Avenida Tenente Valadim; outro colector lateral partindo pelas
Escadinhas do Castelo, aonde será colocado um marco fontenário, com
prolongamento até á Porta da Varzea” (11).
É necessário esperar mais de um ano para se anunciar, em Setembro de 1925,
estarem a decorrer as obras da “central elevatória da água para o abastecimento
da vila”, decorrendo também a limpeza da cisterna do Castelo (12), obras essas
concluídas em Janeiro de 1926, na mesma data em que se anuncia estarem a ser
levantados “os perfis das ruas da vila”, nas quais, assim que se conclua a colocação
das tubagens, se “começarão a abrir” as
valas para o assentamento destas.
Finalmente, na tarde do dia 13 de Junho de 1926, a água canalizada
chega ao Largo da Graça, para abastecer a vila (13).
Em 20 de Junho de 1934, já em pleno Estado Novo, foram criados o
Serviços Municipalizados de Água, Saneamento e Electricidade, unificando, sob
gestão municipal, duas das grandes obras iniciadas pela República, a eletrificação
pública, inaugurada em 1 de Dezembro de 1912, e o já mencionado abastecimento
público de água canalizada, inaugurado já no início da ditadura mas obra
iniciada no final do regime republicano.
Contudo, é preciso esperar mais algumas décadas para se concluir o
abastecimento de água canalizada a todos os pontos do concelho.
Antes, esse abastecimento da água às populações rurais foi garantido
pelo fomento de fontanários e lavadouros, muito propagandeado a partir da
década de 1940 (14). Só a partir do final da década de 1950 (15), e ao longo da
década seguinte, é que se acentua e acelera o fornecimento de água canalizada a
essas populações, obra que, em muitos casos, só se conclui após o 25 de Abril.
Mas esta é uma outra história ainda por contar.
(1)
-
leia-se, a propósito da evolução histórica do abastecimento de água a Torres
Vedras, a comunicação de Carlos Guardado
da Silva, “O abastecimento de água à vila de Torres Vedras – Séculos XII-XIX”,
incluída na obra lançada no passado Sábado,
semana “O Abastecimento da Cidade – Mercado Alimentar”, actas de Turres
Veteras XXII;
(2)
- veja-se
o interessante levantamento realizado por alunos da Escola Secundária Henriques
Nogueira, intitulado Fontes, Chafarizes, Bicas – A Água no quotidiano de Torres
Vedras, ed. ESHN/ME, 1993;
(3)
- Zenriques,
“O Sino da Saudade”, jornal “Badaladas” de 15 de Agosto de 1960, também
referido por Adão de Carvalho em crónicas da sua rúbrica “Recordando…”,
intituladas “Abastecimento de Água” e “Abastecimento de água a Torres Vedras”,
publicadas no jornal “Badaladas”, respectivamente em 20 de Janeiro de 1995 e 15
de Novembro de 1996;
(4)
- Serviço
de Incendios - Mappa dos Manaciaes de Agua da Villa de Torres Vedras, 1907,
Typographia e Papelaria Cabral, Torres Vedras;
(5)
-
“Para os torreenses lerem e apreciarem – Água! Água!”, in Ecos de Torres, 5/9/
1920;
(6)
- “Magna
Questão – A Água –uma carta de João Ghira”, in “Eco de Torres” de 14/4/1921;
(7)
- “Abastecimento
de Água”, por Victor Cesário da Fonseca, in Ecos de Torres de 28/4/1921;
(8)
-“Água!Água”,
in Ecos de Torres de 5/7/1921;
(9)
- “Abastecimento
d’águas” por Marques Carvalho, in “A Reconstituição” de 6/8/1922;
(10)
- “Castelo
de Torres Vedras”, in “A Reconstituição” de 24/9/1922;
(11)
-“A
Abastecimento de aguas – o que nos disse o sr. Álvaro Galrão, presidente da
Comissão Executiva da Camara Municipal”, in “A Nossa Terra” de 1/6/1924;
(12)
- “A
Nossa Terra” de 13/9/1925;
(13)
–
esta data é indicada por Júlio Vieira na última página da sua obra Torres
Vedras Antiga e Moderna, editada em 1926;
(14)
-leia-se,
a propósito, o Relatório da Gerência desta Câmara no Ano de 1948, ed. CMTV,
Tipografia “O Torreense”, 1948;
(15)
- leia-se
a entrevista com João Alexandre Moreira, publicada pelo jornal “Voz do
Concelho” de 25 de Março de 1958, “Os problemas do Abastecimento de água à vila
e electrificação do Concelho analisados pelo Director dos serviços
Municipalizados”.
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