sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A Origem do Automóvel e do transporte automóvel, em Torres Vedras


Data de 1895 a entrada do primeiro automóvel em Portugal, e não foi preciso esperar muito tempo para aparecer em Torres Vedras o primeiro agente de venda de automóveis, conforme se prova num anúncio publicado nas páginas do jornal "A Vinha de Torres Vedras" em 14 de Outubro de1897, anúncio publicado na edição seguinte e cuja publicação foi repetida por várias vezes ao longo de 1898.



Inicialmente o êxito do automóvel foi limitado e temos de esperar por 1902 para encontrarmos a primeira referência comprovada à circulação de um automóvel nas ruas de Torres Vedras.

Foi por ocasião da visita da rainha D. Amélia ao convento da Graça, a 12 de Maio desse ano, de passagem "em direcção à quinta das Lapas(...)em automóvel e (...)acompanhada pelos srs.  conde de Tarouca e condes de Figueiró(...)"(1) (foto em cima).

Só em finais da década de 10 é que o automóvel conheceu algum incremento neste concelho, levando a Câmara Municipal a iniciar, a partir de 1918, um registo de automóveis matriculados, oficialmente os primeiros existentes em Torres Vedras e dos quais registamos os 20 primeiros (2):

 (Nº de ordem de matricula;  Nº de Circulação, Ano, Mês e Dia do Registo, Nome do Proprietário e residência)

    1    1660       1918   Abril 18    D. Vasco Martins Sequeira   Q.ta Juncal
    2     2393      1918   Julho  5     Vasco de Moura Borges      Q.ta Paio Correia
    3      943       1919   Julho 12    João Henriques dos Santos  Torres Vedras
    4     1390      1919   Julho 19    Gonzaga Limitada               Q.ta Charneca
    5      ---         1919   Agos.  2    José Augusto Lopes & C.ª   Torres Vedras
    6     2270      1919   Sete.   2    José Duarte Capote               Torres Vedras
    7     2705      1919   Out.   10    José Augusto Lopes Jr.        Torres Vedras
    8       ---        1919   Dez.   26    Joaquim C. Rodrigues         Torres Vedras
    9     2811      1920   Jan.    12    João Henriques dos Santos  Torres Vedras
  10       ---        1920   Maio  22    António |...?| Oliveira           Torres Vedras
  11     4076      1920   Junho 15   António Emilio Cunha S.tos Torres Vedras
  12     4258     1920   Agos.   2    Alfredo Oliveira Luso           Lisboa
  13   4230    1920   Agos. 16    João Henriques dos Santos   Torres Vedras -   camioneta
  14     4614     1920   Set.      2    Faustino Policarpo Timóteo  Dois Portos   -camioneta
  15     4473     1920   Out.     2    Manuel Augusto Baptista      Torres Vedras
  16      2981      1920   Out.   14    José Botto Pimentel Carv.º    Q.ta do Paço
  17      2907      1920   Nov.  16    José Antunes Martins             Ramalhal
  18      3382       1921   Abril  13    Dr.Pereira Branco                  Ribaldeira
  19        218       1922   Maio  25    António Hipólito                    Torres Vedras
  20        ---         1922   Agos.  4     Amadeu dos Santos                Torres Vedras

Por este quadro é possível concluir que foi a partir da década de 20 que a aquisição de automóveis começou a aumentar neste concelho e que a primeira camioneta registada pertencia a João Henriques dos Santos. No ano de 1926, registavam-se 48 automóveis e 26 camionetas (2).

Contudo, o inicio desse registo camarário não quer dizer que a existência de torrienses  proprietários de automóveis se tivesse iniciado apenas em 1918. Antes desta data, e pelo menos desde 1901, que os automóveis eram registados, mas a nível distrital, no caso torriense pelo Governo Civil de Lisboa (3).

Existem  testemunhos de que João Henriques dos Santos possuiu um dos primeiros automóveis em Torres Vedras logo nos primeiros anos do século (por volta de 1908)(4).

Se a divulgação do automóvel foi lenta e demorada, os primeiros transportes usando o automóvel só começaram a obter algum êxito nos anos 20, quando começaram a poder bater o comboio no tempo de percurso, ou chegando a sítios onde o comboio não chegava, mas que ganhavam crescente importância turística e económica, como foram os casos de S.ta Cruz e Peniche.

Data de 1899 a primeira proposta de estabelecer uma carreira automóvel ligando Torres Vedras a Lisboa.

Em reunião camarária de 14 de Dezembro desse ano dava-se a informação de se ter recebido um requerimento, datado de 25 de Novembro, dirigido a esse orgão municipal de "Alfredo de Brito, - industrial, constructor electricista com fábrica em Lisboa, na rua de Santo António dos Capuchos, nºs 52/54" pedindo "à Camara Municipal de Torres Vedras, concessão por setenta e cinco annos, para si ou para a Companhia que está organisando, para a exploração (em toda a area actual do concelho de Torres Vedras e d' aquella que de futuro venha a pertencer-lhe), do transporte de pessoas, mercadorias, etc.,etc., por meio de vehiculos denominados automoveis. O requerente garante à câmara,  annualmente  três  por cento da receita bruta.

"Esta concessão facultando à Camara uma nova receita, proporcionará aos municipes as vantagens de usarem um meio de transporte rápido e commodo, e facultará o desenvolvimento da industria de carruageria |sic| , ha muitos annos estabelecida no país,e da industria mecanica pela fabricação dos motores e acessórios necessarios aos automoveis, fabrico que o requerente iniciou na sua fabrica(...)" (5).

A camara ficou de tratar deste assunto noutra sessão, nunca o tendo feito. Foi preciso esperar por 1915 para se inaugurar a primeira carreira automóvel. Pertenceu a iniciativa  à empresa da Malveira, Joaquim Jerónimo &Irmão: "Trata-se de uma carreira de auto-omnibus entre Torres e Lisboa, partindo do Largo da República, todos os dias ,às 3 horas da tarde", preenchendo assim "uma lacuna importante, que ha muito se fazia sentir, tanto mais que a companhia dos Caminhos de Ferro nunca quiz atender as reclamações constantes que lhe foram feitas, para restabelecer os comboios da tarde para Lisbos, que ela, há muito, desatenciosamente suprimiu(...)" (6).

Este serviço teve início a 18 de Abril de 1915 e nasceu em confronto directo com o transporte ferroviário. Contudo, fosse por fazer a viagem de Torres Vedras ao Lumiar em 3 horas, tanto tempo como o tempo de comboio, fosse por outras razões, esta iniciativa não teve o êxito esperado, sendo necessário esperar por nova iniciativa do género, nos anos 20, pela qual foi responsável João Henriques dos Santos.


Já referimos noutra parte do nosso artigo que João Henriques dos Santos não só foi o terceiro torriense a registar a posse de um automóvel, como foi o primeiro a adquirir uma camioneta.

O seu entusiasmo por esse então novo meio de transporte revelou-se em diversas ocasiões. Uma das mais conhecidas aconteceu em 1922, a 3 de Dezembro. Tendo passado então pelo Vilar, ouviu foguetes e, perguntando o que se passava, disseram-lhe que anunciavam a realização das festas do lugar do Pereiro. Logo aí manifestou interesse em deslocar-se no seu automóvel a essas festas."É claro, pessoas conhecedoras do lugar e do caminho existente para ali, tentaram dissuadi-lo, mas foi como se chovesse no molhado. Não o demoveram do seu intento. Os companheiros também não ligaram importância aos conselhos, e lá seguiram, por uma estrada vicinal, que em Dezembro só poderia ser transitada por cabras ou por corvos, pois só servia às vezes para carros de bois.

"João Henriques dos Santos, com o carro cheio de amigos, começou subindo aquêle pseudo-caminho, embóra com dificuldade. Mas, mais para cima, o caminho complicou-se e não havia meio de poderem prosseguir. Retroceder muito menos. Então a situação era crítica. Nem para diante, nem para tráz.

"Enfim, como era boa a disposição que tinham adquirido pelo caminho, lá foram removendo uma pedra aqui, colocando outra ali, escangalhando um calço acolá, evantando o carro além para o tirar da situação crítica ou  de se despenhar de qualquer ribanceira, e depois de extenuantes esforços, lá conseguiram chegar ao Pereiro.

"Grande festa, entre a população, por ali ser visto, pela primeira vez, um automóvel, foguetes e o resto que se póde imaginar, em tais casos(...)" (7).

Em finais dos anos 40, em homenagem a essa odisseia, o povo do Pereiro mandou colocar uma lápide comemorativa da chegada do primeiro automóvel a esse lugar bem como a João Henriques.

Exemplo do mesmo espírito ousado que marcaria a sua vida, ficou célebre aquela vez em que desceu de carro as escadinhas do castelo, ganhando uma aposta de cem escudos.

A ele ficou a dever-se o início da primeira carreira regular de automóvel, para Santa Cruz, que se iniciou em 1 de Agosto de 1923. Partia da estação de caminho de ferro "após a chegada do comboio correio da capital",saindo depois daquela praia "a tempo dos passageiros poderem regressar à capital pelo comboio correio da noite" (8). Custava a viagem para S.ta Cruz a quantia de 5 escudos.

Se essa iniciativa muito contribuiu para o grande desenvolvimento turístico que essa praia conheceu desde então, mais importante terá sido para o desenvolvimento desta região o facto de ter iniciado a regular ligação rodoviária de Torres Vedras a Lisboa, em Novembro de 1928.Gastou na viagem inaugural duas horas. Custava o bilhete 11 escudos,"custando o lugar ao lado do condutor 15$00!Indicava-se a chegada e partida no Largo de S.Domingos, depois no Largo da Anunciada e, posteriormente, na Rua da Palma. Avisavam-se ainda os passageiros de que deveriam ocupar os seus lugares 15 minutos antes da partida".

O êxito desse empreendimento foi tal, que logo no ano seguinte surgiram dois concorrentes, Ruy Lopes e Francisco Capote, concorrência que foi benéfica para os habituais passageiros desse percurso, pois os três proprietários esmeravam-se por apresentarem as melhores e mais cómodas camionetas. Pouco tempo depois, João Henriques dos Santos conseguia monopolizar a ligação com Peniche.



Reside nesta ligação com Peniche um dos episódios mais marcantes da bondade da sua personalidade ao ajudar os presos políticos de Peniche, transportando gratuitamente as encomendas  que lhes eram enviadas pelos familiares.

Dentro do mesmo espírito, de ajudar os que precisavam, tomou igualmente a iniciativa de "na sua carreira da manhã, que passa por Montachique," conceder "nos dias úteis, a todas as crianças do lugar de Malgas, do visinho concelho do sobral de Monte Agraço e que " frequentavam" a escola primária de Pêro Negro, passagem gratuíta", procedendo de igual modo com os passageiros pobres que procuravam tratamento nos hospitais de Lisboa (7).

A empresa que fundou continuou ligada ao ramo automóvel, tendo abandonado os transportes públicos em 1972, cedendo as suas concessões à empresa Claras, absorvida, depois do 25 de Abril de 1974, pela empresa pública Rodoviária Nacional.

(1)   – in Folha de Torres Vedras, 8 de Maio de 1902;
(2)   – In Livro de Registo de Matriculas, Arquivo Municipal de Torres Vedra;
(3)   – Decreto de 3 de Outubro de 1901;
(4)   - RODRIGUES, António, com Adão de Carvalho,”O Princípio do automóvel em Torres Vedras”, in Toitorres Notícias, nº 39 de Setembro/Outubro de 1996;
(5)   - In Actas da Câmara Municipal de Torres Vedras (CMTV), Livro nº 35, sessão de 14 de Dezembro de 1899, fol. 247 verso, AMTV;
(6)   - In A Vinha de Torres Vedras, 22 de Abril de 1915;
(7)   –In Badaladas [data desconhecida];
(8)   – in O Torreense, 5 de Agosto de 1923.

Nota: uma versão mais resumida deste texto foi publicada na série “Vedrografias”, no jornal Badaladas de 26 de Janeiro de 2018. Por sua vez o texto que aqui se reproduz tem origem num capítulo do meu livro sobre o Impacto da chegada do Caminho de ferro em Torres Vedras, actualizado e já publicado neste blog, mas que agora foi refeito e actualizado com base em novas informações.




Sem comentários: