Data de 1895 a entrada do primeiro
automóvel em Portugal, e não foi preciso esperar muito tempo para aparecer em
Torres Vedras o primeiro agente de venda de automóveis, conforme se prova num
anúncio publicado nas páginas do jornal "A Vinha de Torres Vedras" em
14 de Outubro de1897, anúncio publicado na edição seguinte e cuja publicação
foi repetida por várias vezes ao longo de 1898.
Inicialmente o êxito do automóvel foi
limitado e temos de esperar por 1902 para encontrarmos a primeira referência
comprovada à circulação de um automóvel nas ruas de Torres Vedras.
Foi por
ocasião da visita da rainha D. Amélia ao convento da Graça, a 12 de Maio desse
ano, de passagem "em direcção à quinta das Lapas(...)em automóvel e (...)acompanhada
pelos srs. conde de Tarouca e condes de
Figueiró(...)"(1) (foto em cima).
Só em finais da década de 10 é que o
automóvel conheceu algum incremento neste concelho, levando a Câmara Municipal
a iniciar, a partir de 1918, um registo de automóveis matriculados, oficialmente
os primeiros existentes em Torres Vedras e dos quais registamos os 20 primeiros
(2):
(Nº de ordem de matricula; Nº de Circulação, Ano, Mês e Dia do Registo,
Nome do Proprietário e residência)
1 1660 1918
Abril 18 D. Vasco Martins
Sequeira Q.ta Juncal
2 2393 1918
Julho 5 Vasco de Moura Borges Q.ta Paio Correia
3 943 1919
Julho 12 João Henriques dos
Santos Torres Vedras
4 1390 1919
Julho 19 Gonzaga Limitada Q.ta Charneca
5 --- 1919
Agos. 2 José Augusto Lopes & C.ª Torres Vedras
6 2270 1919
Sete. 2 José Duarte Capote Torres Vedras
7 2705
1919 Out. 10
José Augusto Lopes Jr. Torres
Vedras
8 --- 1919
Dez. 26 Joaquim C. Rodrigues Torres Vedras
9 2811 1920
Jan. 12 João Henriques dos Santos Torres Vedras
10 --- 1920
Maio 22 António |...?| Oliveira Torres Vedras
11 4076 1920
Junho 15 António Emilio Cunha
S.tos Torres Vedras
12 4258 1920
Agos. 2 Alfredo Oliveira Luso Lisboa
13 4230 1920
Agos. 16 João Henriques dos
Santos Torres Vedras - camioneta
14 4614 1920
Set. 2 Faustino Policarpo Timóteo Dois Portos
-camioneta
15 4473 1920
Out. 2 Manuel Augusto Baptista Torres Vedras
16 2981
1920 Out. 14
José Botto Pimentel Carv.º Q.ta do Paço
17 2907 1920
Nov. 16 José Antunes Martins Ramalhal
18 3382 1921
Abril 13 Dr.Pereira Branco Ribaldeira
19 218 1922
Maio 25 António Hipólito Torres Vedras
20 --- 1922
Agos. 4 Amadeu dos Santos Torres Vedras
Por este quadro é possível concluir
que foi a partir da década de 20 que a aquisição de automóveis começou a
aumentar neste concelho e que a primeira camioneta registada pertencia a João
Henriques dos Santos. No ano de 1926, registavam-se 48 automóveis e 26
camionetas (2).
Contudo, o inicio desse registo
camarário não quer dizer que a existência de torrienses proprietários de automóveis se tivesse
iniciado apenas em 1918. Antes desta data, e pelo menos desde 1901, que os automóveis
eram registados, mas a nível distrital, no caso torriense pelo Governo Civil de
Lisboa (3).
Existem testemunhos de que João Henriques dos Santos
possuiu um dos primeiros automóveis em Torres Vedras logo nos primeiros anos do
século (por volta de 1908)(4).
Se a divulgação do automóvel foi lenta
e demorada, os primeiros transportes usando o automóvel só começaram a obter
algum êxito nos anos 20, quando começaram a poder bater o comboio no tempo de
percurso, ou chegando a sítios onde o comboio não chegava, mas que ganhavam
crescente importância turística e económica, como foram os casos de S.ta Cruz e
Peniche.
Data de 1899 a primeira proposta de
estabelecer uma carreira automóvel ligando Torres Vedras a Lisboa.
Em reunião camarária de 14 de Dezembro
desse ano dava-se a informação de se ter recebido um requerimento, datado de 25
de Novembro, dirigido a esse orgão municipal de "Alfredo de Brito, - industrial,
constructor electricista com fábrica em Lisboa, na rua de Santo António dos
Capuchos, nºs 52/54" pedindo "à Camara Municipal de Torres Vedras, concessão
por setenta e cinco annos, para si ou para a Companhia que está organisando, para
a exploração (em toda a area actual do concelho de Torres Vedras e d' aquella
que de futuro venha a pertencer-lhe), do transporte de pessoas, mercadorias, etc.,etc.,
por meio de vehiculos denominados automoveis. O requerente garante à câmara, annualmente três por cento da receita bruta.
"Esta concessão facultando à
Camara uma nova receita, proporcionará aos municipes as vantagens de usarem um
meio de transporte rápido e commodo, e facultará o desenvolvimento da industria
de carruageria |sic| , ha muitos annos estabelecida no país,e da industria
mecanica pela fabricação dos motores e acessórios necessarios aos automoveis, fabrico
que o requerente iniciou na sua fabrica(...)" (5).
A camara ficou de tratar deste assunto
noutra sessão, nunca o tendo feito. Foi preciso esperar por 1915 para se
inaugurar a primeira carreira automóvel. Pertenceu a iniciativa à empresa da Malveira, Joaquim Jerónimo
&Irmão: "Trata-se de uma carreira de auto-omnibus entre Torres e
Lisboa, partindo do Largo da República, todos os dias ,às 3 horas da
tarde", preenchendo assim "uma lacuna importante, que ha muito se
fazia sentir, tanto mais que a companhia dos Caminhos de Ferro nunca quiz
atender as reclamações constantes que lhe foram feitas, para restabelecer os
comboios da tarde para Lisbos, que ela, há muito, desatenciosamente
suprimiu(...)" (6).
Este serviço teve início a 18 de Abril
de 1915 e nasceu em confronto directo com o transporte ferroviário. Contudo, fosse
por fazer a viagem de Torres Vedras ao Lumiar em 3 horas, tanto tempo como o
tempo de comboio, fosse por outras razões, esta iniciativa não teve o êxito
esperado, sendo necessário esperar por nova iniciativa do género, nos anos 20, pela
qual foi responsável João Henriques dos Santos.
Já referimos noutra parte do nosso
artigo que João Henriques dos Santos não só foi o terceiro torriense a registar
a posse de um automóvel, como foi o primeiro a adquirir uma camioneta.
O seu entusiasmo por esse então novo
meio de transporte revelou-se em diversas ocasiões. Uma das mais conhecidas
aconteceu em 1922, a 3 de Dezembro. Tendo passado então pelo Vilar, ouviu
foguetes e, perguntando o que se passava, disseram-lhe que anunciavam a
realização das festas do lugar do Pereiro. Logo aí manifestou interesse em
deslocar-se no seu automóvel a essas festas."É claro, pessoas conhecedoras
do lugar e do caminho existente para ali, tentaram dissuadi-lo, mas foi como se
chovesse no molhado. Não o demoveram do seu intento. Os companheiros também não
ligaram importância aos conselhos, e lá seguiram, por uma estrada vicinal, que
em Dezembro só poderia ser transitada por cabras ou por corvos, pois só servia
às vezes para carros de bois.
"João Henriques dos Santos, com o
carro cheio de amigos, começou subindo aquêle pseudo-caminho, embóra com
dificuldade. Mas, mais para cima, o caminho complicou-se e não havia meio de
poderem prosseguir. Retroceder muito menos. Então a situação era crítica. Nem
para diante, nem para tráz.
"Enfim, como era boa a disposição
que tinham adquirido pelo caminho, lá foram removendo uma pedra aqui, colocando
outra ali, escangalhando um calço acolá, evantando o carro além para o tirar da
situação crítica ou de se despenhar de
qualquer ribanceira, e depois de extenuantes esforços, lá conseguiram chegar ao
Pereiro.
"Grande festa, entre a população,
por ali ser visto, pela primeira vez, um automóvel, foguetes e o resto que se
póde imaginar, em tais casos(...)" (7).
Em finais dos anos 40, em homenagem a
essa odisseia, o povo do Pereiro mandou colocar uma lápide comemorativa da
chegada do primeiro automóvel a esse lugar bem como a João Henriques.
Exemplo do mesmo espírito ousado que
marcaria a sua vida, ficou célebre aquela vez em que desceu de carro as
escadinhas do castelo, ganhando uma aposta de cem escudos.
A ele ficou a dever-se o início da
primeira carreira regular de automóvel, para Santa Cruz, que se iniciou em 1 de
Agosto de 1923. Partia da estação de caminho de ferro "após a chegada do
comboio correio da capital",saindo depois daquela praia "a tempo dos
passageiros poderem regressar à capital pelo comboio correio da noite" (8).
Custava a viagem para S.ta Cruz a quantia de 5 escudos.
Se essa iniciativa muito contribuiu
para o grande desenvolvimento turístico que essa praia conheceu desde então, mais
importante terá sido para o desenvolvimento desta região o facto de ter
iniciado a regular ligação rodoviária de Torres Vedras a Lisboa, em Novembro de
1928.Gastou na viagem inaugural duas horas. Custava o bilhete 11
escudos,"custando o lugar ao lado do condutor 15$00!Indicava-se a chegada
e partida no Largo de S.Domingos, depois no Largo da Anunciada e, posteriormente,
na Rua da Palma. Avisavam-se ainda os passageiros de que deveriam ocupar os
seus lugares 15 minutos antes da partida".
O êxito desse empreendimento foi tal, que
logo no ano seguinte surgiram dois concorrentes, Ruy Lopes e Francisco Capote, concorrência
que foi benéfica para os habituais passageiros desse percurso, pois os três
proprietários esmeravam-se por apresentarem as melhores e mais cómodas
camionetas. Pouco tempo depois, João Henriques dos Santos conseguia monopolizar
a ligação com Peniche.
Reside nesta ligação com Peniche um
dos episódios mais marcantes da bondade da sua personalidade ao ajudar os
presos políticos de Peniche, transportando gratuitamente as encomendas que lhes eram enviadas pelos familiares.
Dentro do mesmo espírito, de ajudar os
que precisavam, tomou igualmente a iniciativa de "na sua carreira da
manhã, que passa por Montachique," conceder "nos dias úteis, a todas
as crianças do lugar de Malgas, do visinho concelho do sobral de Monte Agraço e
que " frequentavam" a escola primária de Pêro Negro, passagem
gratuíta", procedendo de igual modo com os passageiros pobres que
procuravam tratamento nos hospitais de Lisboa (7).
A empresa que fundou continuou ligada
ao ramo automóvel, tendo abandonado os transportes públicos em 1972, cedendo as
suas concessões à empresa Claras, absorvida, depois do 25 de Abril de 1974, pela
empresa pública Rodoviária Nacional.
(1) – in Folha de Torres Vedras, 8 de Maio de
1902;
(2) – In Livro
de Registo de Matriculas, Arquivo Municipal de Torres Vedra;
(3) – Decreto de
3 de Outubro de 1901;
(4) - RODRIGUES,
António, com Adão de Carvalho,”O Princípio do automóvel em Torres Vedras”, in
Toitorres Notícias, nº 39 de Setembro/Outubro de 1996;
(5) - In Actas
da Câmara Municipal de Torres Vedras (CMTV), Livro nº 35, sessão de 14 de
Dezembro de 1899, fol. 247 verso, AMTV;
(6) - In A Vinha de Torres Vedras, 22 de Abril de
1915;
(7) –In Badaladas [data desconhecida];
(8) – in O
Torreense, 5 de Agosto de 1923.
Nota: uma versão mais resumida deste
texto foi publicada na série “Vedrografias”, no jornal Badaladas de 26 de
Janeiro de 2018. Por sua vez o texto que aqui se reproduz tem origem num
capítulo do meu livro sobre o Impacto da chegada do Caminho de ferro em Torres
Vedras, actualizado e já publicado neste blog, mas que agora foi refeito e
actualizado com base em novas informações.
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