Na sequência do movimento da “Maria da Fonte”, a conhecida revolta popular iniciada no Minho em 15 de Abril de 1846, provocada pelo aumento de impostos e pela lei dos enterramentos, um pouco por todo o país formaram-se juntas populares de apoio à revolta.
Convém recordar, para facilitar, que entre os liberais, vencedores da
guerra civil contra o absolutismo “miguelista”, se formaram duas tendências,
uma a dos defensores do regresso à Contituição de 1822, que limitava os poderes
do rei, outra a dos defensores da Carta Constitucional de 1826, que dava ao rei
um “quarto poder”, o “moderador”, sendo esta “Carta” que vigorou desde 1834 e,
com algumas interrupções e alterações, até 1910.
Em Setembro de 1836 deu-se uma revolta dos liberais anti-“cartistas”,
que passaram a ser designados por “setembristas”, e, em 1842, numa novo “golpe
palaciano”, os defensores da “Carta” voltaram ao poder, liderados por Costa
Cabral, passando a ser conhecidos também por “cabralistas”.
Desde então, a até à “regeneração” de 1851, confrontaram-se essas duas
tendências do “liberais”, os “setembristas”, também “patuleias” a partir de
1846, e os “cartistas” ou “cabralistas”, respectivamente, e para simplificar, a
“esquerda” e a “direita” dos “liberais”.
Para responder aos “anseios populares” desencadeados pela “Maria da
Fonte”, em 20 de Maio de 1846 a rainha
D. Maria II exonerou o governo “cabralista” e nomeou o “setembrista” Duque de
Palmela (1).
Torres Vedras não foi excepção no levantamento anti cabralista e no dia
25 de Maio realizou-se uma sessão camarária extraordinária para a subscrição de
um “Auto de Proclamação” de adesão “aos princípios do Grito Popular,
principiado na Provincia do Minho contra o sistema governativo no Ministério
Cabral”, jurando os 198 cidadãos torrienses subscritores dessa proclamação “não
mais obedecer” às ordens desse governo.
Nessa mesma sessão foi nomeada uma “junta” provisória presidida por um
jovem advogdo da vila, apenas com 27 anos, sem passado político conhecido, o
Dr. Francisco Maria de Carvalho, junta essa formada por 7 elementos, entre eles
o futuro Visconde de Balsemão.
Essa junta não tinha por objectivo substituir a Câmara em funções,
presidida desde a sua eleição, em Janeiro de 1845, por Francisco Tavares de
Medeiros, um “liberal” da velha guarda, mas apenas supervisionar a actividade
dessa Câmara.
Pelo contrário, uma das decisões
mais importantes dessa sessão foi nomear um novo administrador do concelho,
cargo de nomeação governamental, representante local do Governo Civil de
Lisboa.
A escolha recaiu no “cirurgião” Maurício José da Silva, homem com
simpatias “setembristas” e que vai ter um papel de destaque, como veremos mais
à frente, na organização de milícias na “Patuleia” (2).
Chegado ao poder, logo Palmela procurou dissolver as “juntas
revolucionárias” e em Junho, segundo Oliveira Martins, já todas tinham sido
dissolvidas, datando de 6 de Junho a última referência à “Junta” torriense.
Apesar da dissolução das Juntas, em Torres Vedras manteve-se em funções
o acima mencionado administrador “Patuleia” que, presente em sessão camarária
em 28 de Julho, mandou dissolver o executivo torriense, nomeando uma vereação
provisória, para ficar em funções até ser eleita uma nova Câmara nas eleições
municipais previstas para 27 de Setembro.
Para presidir a essa comissão foi escolhido o ex-presidente da “Junta
revolucionária” torriense, o jovem Francisco Maria de Carvalho.
Entre os membros dessa comissão administrativa apenas um deles tinha
passado político conhecido, como vereador substituto numa Câmara “setembrista”,
todos bastante jovens, tendo em conta a habitual média de idades dos anteriores
ocupantes desse cargo municipal.
Quando se deu a Batalha de Torres Vedras, em 22 de Dezembro, era essa a
comissão administrativa que se mantinha em funções, já que a Câmara eleita em
27 de Setembro, liderada por José Eduardo César e maioritariamente composta por
antigos “miguelistas”. nunca assumiu funções, isto porque o panorama político
voltou a mudar.
Na noite de 6 de Outubro, a cinco dias da data prevista para a eleição
dos deputados, com poderes constitucionais, a rainha demitiu o Duque de Palmela
e nomeou, para chefiar o governo, o Duque de Saldanha, apoiado por “cartistas
moderados”, acto considerado pelos “setembristas” um golpe de estado dos
“cabralistas”, conhecido pela “emboscada”.
Em 9 de Outubro, a renascida “Junta do Porto”, presidida pelo Conde das
Antas, proclamou-se como “Junta Provisória do Governo Superior do Reino” e
declarou guerra ao governo de Lisboa, dando início à “Patuleia”, que se
transformou numa guerra civil entre “cartistas” e ”cabralistas” de um lado, e “miguelistas”
e “setembristas” do outro, apesar das divisões iniciais entre estes duas
tendências.
Um pouco por todo o país, mas maioritariamente a norte, surgiram
pronunciamentos a favor da Junta do Porto.
Por um lado, o governo de Lisboa nomeou como governador civil do
Distrito de Lisboa o Marquês de Fronteira que nomeou como administrador do
concelho de Torres Vedras Ignácio Campelo, um antigo liberal ant-miguelistas,
substituído em 13 de Dezembro por um natural de Vila Franca de Xira, José
Hippolyto d’Almeida, que só entraria em Torres Vedras depois da derrota dos
“Patuleias” na Batalha de 22 de Dezembro, substuido localmente, até essa data e
interinamente, por João Ferreira Rijo.
Por outro lado, a Junta do Porto nomeou para o cargo de Governador
Civil de Lisboa Anselmo José Braamcamp que, segundo Oliveira Martins, na
companhia do Conde de Vila Real, andou pelo distrito, de terra em terra
“aliciando sectários, fomentando a revolta”, mantendo Maurício José da Silva
com “administrador Patuleia” de Torres Vedras, liderando uma guerrilha local
bastante activa na região, entre Outubro e Novembro, recrutando partidários para a causa da “Junta
do Porto” (3).
A acção dessas guerrilhas “Patuleias” na região, está bem documentada
na correspondência envida pelo Marquês da Fronteira para o Duque de Saldanha,
existente no Arquivo Histórico Militar (4).
Ficamos assim a saber algumas das movimentações das guerrilhas “setembristas”
em Torres Vedras e nos concelhos próximos.
A primeira notícia refere uma fracassada tentativa de assalto ao
deposito de armas do Quartel de Mafra em 14 de Outubro, data em que se registou
também a passagem de “alguns indivíduos com direcção para o Norte”. Por essa
altura, em documento de 19 de Outubro, a mesma fonte denuncia o clima
“insurrecional” nos concelhos de Sintra, Torres Vedras e “noutros limítrofes”,
ligado a “hum foco de insurreição proveniente de Caldas da Rainha”, registando
o “aparecimento” do Visconde de Sá da Bandeira em Torres Vedras, responsabilizado
pela “grande agitação” que grassava na região.
Por essa altura, a “sublevação” armada das forças “patuleias” estava
generalizada entre os “povos” de Torres Vedras e da Lourinhã, estendendo-se aos
concelhos próximos, chegando ao “arrojo de atacar o destacamento” governamental
“de infantaria nº8” que, da Lourinhã “se recolhia para a capital”, pretendendo
os sublevados juntarem-se aos de Caldas e Óbidos, estes últimos liderados pelo
capitão José Estevão.
Com a data de 23 de Outubro, Saldanha recebeu um relatório do Governo
Civil de Lisboa informando que, em Torres Vedras, “os agitadores” patuleias
eram “comandados por um Mayor, Escrivão do Juizo de Direito” e estavam
“combinados com os das Caldas para darem um assalto à Praça de Peniche, com o fim
de se apoderarem de algumas armas e petrechos de guerra e a fazer ahi fortes”,
constando igualmente que se propunham “exigir um empréstimo forçado aos
Negociantes e Proprietários do concelho de Torres Vedras”, situação que teria
provocado a fuga de muitos desses negociantes e proprietários”, deixando
“desamparadas” as suas residências.
Continuando a registar a situação em Torres Vedras, o relatório refere
que “os Povos olhão com indiferença para os movimentos que fazem os revoltosos,
e que a maior parte dos a eles reunidos são atraídos com a promessa de 120 réis
diários, em uma época em que os trabalhadores não teem serviço rural onde se
empregarem”.
Um outro relatório de 2 de Novembro refere a saída de Leiria de um
grupo de 400 guerrilheiros armados, liderados por César Vasconcelos, em direcção a Torres Vedras, com passagem
por Montejunto, detectando-se ordens
enviadas às “forças populares” de Caldas, Pederneira (Nazaré), Alcobaça, Óbidos
e Ourém para se juntarem em Torres Vedras àquela força.
Nos primeiros dias de Novembro continuaram a ser detectadas, pelos
informadores do Governo Civil de Lisboa, vários movimentos de “forças
populares”, entre os quais a entrada de um grupo de “patuleias” no Cadaval e
Alenquer a “aprontar rações” e fazer “várias extracções, principalmente de
cavalgaduras”.
Em 1 de Novembro, “pelas 6 horas da manhã”, tinha-se apresentado na
Ericeira “Huma força de mais de trezentos guerrilheiros armados”, vindos de
Sintra, exigindo dinheiro ao presidente da Câmara, retirando-se “pelas 11
horas”.
No dia 17 de Novembro apresentou-se ao administrador do concelho do
Cadaval o governador civil patuleia, Anselmo José Braamcamp , exigindo que se
preparassem “trezentas rações para os guerrilheiros de Cintra e Torres Vedras”,
que chegariam no dia seguinte, ao mesmo tempo que “apreendeu” dinheiro, “tirou”
cavalos e armas e nomeou um novo administrador para esse concelho.
De facto, aquelas “forças populares” chegaram à vila do Cadaval no dia
18, retiram-se no dia 20, dirigindo-se para Torres Vedras, de onde acabaram por
“fugir”, no dia 25 de Novembro, a mesma data em que os guerrilheiros que
ocupavam Caldas da Rainha deixam esta localidade.
Talvez influenciada pela presença daquela força em Torres Vedras, no
dia 24, noticia-se a formação de “uma
guerrilha no lugar do Sobreiro [de Mafra]” que tinha “como objectivo entrar em
Mafra”, e a presença de “150 guerrilheiros na Encarnação”.
Saídos de Torres Vedras os “poucos guerrilheiros do Batalhão popular de
Torres Vedras, de que se diz comandante o Administrador do Conselho [Maurício
José da Silva]”, são localizados em Patais, na região de Caldas da Rainha, no
dia 27, depois de terem ido “quebrar as pontes do rio de S. Martinho”, vindos
da Nazaré, para onde regressaram.
Em 28 de Novembro o governador civil de Lisboa anuncia a Saldanha que
“já não há guerrilheiros entre Lisboa e Leiria”.
Ao que se supõe, essas guerrilhas patuleias foram juntar-se às forças
de Bonfim e do Conde da Antas que, em Santarém, preparavam o seu avanço sobre
Lisboa e que voltaram a Torres Vedras, onde chegaram em 19 de Dezembro,
integrados na força militar “Patuleia” comandada por Bonfim, que nesta
localidade combateram na Batalha de Torres Vedras em 22 de Dezembro desse ano
de 1846.
Sabe-se que os “batalhões
populares de Alcobaça e Torres Vedras”, guerrilheiros, comandados pelo Conde de
Vila Real, D. Fernando, em número de “mil”, se posicionaram, maioritariamente,
no Forte de S. Vicente.
Derrotadas em Torres Vedras, as forças “patuleias” que não foram mortas
ou presas, fugiram e juntaram-se às forças do Conde das Antas, que estavam
estacionadas em Vila Franca de Xira, acompanhando-as em direcção ao Porto, de onde
continuaram a resistir até meados do ano seguinte, ficando esta região,
definitivamente livre da influência dessas guerrilhas populares (5).
Há, contudo, uma enigmática referência,
no jornal “O Espectro”, partidário dos “patuleias”, na sua edição de 11
de Janeiro de 1847, ao aparecimento, após aquela batalha, de “uma guerrilha junto a Torres Vedras”, apontada
como “espectro das victimas [da Batalha de Torres Vedras] que se levantam a
pedir vingança”.
A “Patuleia” terminou com a assinatura da Convenção do Gramido em 29 de
Junho de 1847.
Desconhece-se quase tudo sobre o destino dos “guerrilheiros” torrienses
da “patuleia” a não ser o do seu líder, o administrador Maurício José da Silva
que, após a “regeneração” de 1851, voltou a ocupar o lugar de administrador do
concelho, ficando desta feita “famoso” por ter derrubado o pelourinho de Torres
Vedras, em Maio de 1852, para “facilitar a passagem” da comitiva da monarca que
ele tinha combatido, a rainha D. Maria II, em visita a este concelho em 13 de
Maio de 1852 (6).
(1)
Para
um conhecimento da história deste período recomendamos a leitura da obra de
Maria de Fátima Bonifácio “História da Guerra Civil da Patuleia, 1846-1847”,
ed. Estampa, 1993, e de Oliveira Martins,
no 2º Volume do seu “Portugal Contemporâneo”, do qual existem várias
edições;
(2)
Para
saber mais sobre a conjuntura local, leia-se o ensaio de José Travanca
Rodrigues, “A Restauração do cartismo. Os dramas da Maria da Fonte e da
Patuleia”, publicado o 1º volume de
“Torres Vedras – Passado e Presente”;
(3)
Para
saber mais sobre este período consulte-se o meu ensaio “Torres Vedras – da
“Maria da Fonte” à Patuleia (1846) – a sociedade, a política e a Batalha de
Torres Vedras”, in Turres Veteras V – História Militar e da Guerra;
(4)
“Correspondência
do marquês da Fronteira, governador civil de Lisboa, para o marques de Saldanha
(…) sobre as acções da guerrilha em diversas localidades, nomeadamente (…)
Torres Vedras (…)”, 1 d e Agosto a 30 de Novembro de 1846, Arquivo Histórico
Militar de Lisboa, disponível na internet;
(5)
Sobre
a “Batalha de Torres Vedras de 22 de Dezembro de 1846” leia-se o meu ensaio com
esse título publicado na “Revista Militar” nº 2 459 de Dezembro de 2006,
também disponível na internet, onde também se indicam algumas das fontes
primárias sobre o tema;
(6)
Sobre
o administrador “patuleia” Maurício José da Silva existem dois bons ensaios, um
da autoria de Rafael Salinas Calado, “o administrador patuleia Maurício José da
Silva e o pelourinho quinhentista”, publicado na revista “Estremadura”, 2ª
série, nº13, de 1946, outro, mais actualizado, da autoria de Andrade Santos,
intitulado “O Pelourinho de Torres Vedras e as Lutas Liberais (1820-1852)”,
publicado no jornal “Badaladas” de 27 de Novembro de 1992.
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