quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Um colóquio da SEDES em Torres Vedras em 1973: à vigilância da PIDE, nem a SEDES escapava:


 Informação da Legião Portuguesa à PIDE-DGS, relativa a colóquio da SEDES em Torres Vedras. A informação faz referência à presença de Magalhães Mota. Fonte: ANTT, Legião Portuguesa.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

…era o Vinho! (breve evocação da produção vinícola na história torriense

 


A história de Torres Vedras é transversal à história da produção de vinho.

Contudo, não existe nenhuma monografia aprofundada e diacrónica sobre a história do vinho nesta região, apesar de muitas referência e estudos de tipo conjuntural.

Com este texto procuramos elaborar uma pequena síntese que, quem sabe, possa servir de base para uma história do impacto da produção vinícola na região de Torres Vedras.

Não se conhecendo quando é que esse produto foi introduzido na região ou se existia em estado selvagem, existem vestígio de videiras por altura da época de ocupação do Castro do Zambujal (c.2500 a 1700 aC.), como é referido por Margarethe Upermann  (UERPMANN, Margarethe, “A indústria da pedra lascada do Zambujal”, in KUNST, Michael (coord.), Origens, Estruturas e Relações das Culturas Calcolíticas da Península Ibérica, Actas das I Jornadas Arqueológicas de Torres Vedras, 3-5 Abril 1987, Trabalhos de Arqueologia 7, IPPAA, Lisboa 1995, pp.37-44).

Também Ana Arruda refere que a população indígena da região de Torres Vedras consumia vinho importado da Fenícia, durante a chamada Idade do Ferro europeia, no século VIII a.C (ARRUDA, Ana Maria, “O comércio fenício”, in História de Portugal – Dos Tempos Pré-Históricos aos Nossos Dias, dir. João Medina, 2º Vol, pp.17 a 34, Ediclube, 1993).

Contudo, em ambas as épocas referidas, se existem evidências de consumo, não existem provas de produção local.

Ao que parece, a produção local de vinho terá conhecido um grane incremento comercial durante a ocupação romana, e está na base da existência, nesta região, de várias villae, uma espécie de “quintas”, que abasteciam Olisipo, através de uma rede viária com alguma dimensão.

Contudo, é preciso esperar pelo foral de 1250 para encontrarmos a primeira referência documental à produção de vinho local:

“Aquele que arrombar o relego do vinho, e vender o vinho no seu relego, e provada a infracção (…) pague cinco soldos. E se for achado de novo em falta pela terceira vez, (…), todo o vinho seja entornado e os arcos dos tonéis sejam cortados. Do vinho de fora dêem um almude por cada carga e o outro seja vendido no relego”.

Pouco depois, surge o mais antigo documento conhecido que nos permite analisar, com algum rigor, a importância produtiva e a localização no concelho da produção vinícola na Idade Média, documento de 1309 ( Este documento foi publicado, analisado e divulgado por aqueles que se têm dedicado ao estudo da Idade Média em Torres Vedras: Félix Lopes, John Jonhson, Manuel Clemente, Manuela Catarino, Ana Maria Rodrigues, Carlos Guardado Silva…).

Pelos dados desse documento, calcula-se que o vinho, sendo produto importante, representava pouco mais de 30% do total dos produtos agrícolas produzidos no concelho, dominando a produção de cereis.

O Clero (com mais de 6 mil almudes) e a nobreza (com quase 5 mil almudes) dominavam a produção do vinho local (num total, nesse ano, de cerca de 16 mil almudes).

A zona do concelho onde se concentrava a maior parte da produção do vinho era no vale do Sizandro, principalmente o sudeste, na região entre Dois Portos e a Ribeira de Pedrulhos, estendendo-se para o Barro e a Orjariça, até ao Turcifal. As aldeias do Varatojo, Turcifal, Ribaldeira e Ribeira de Manjapão concentravam cerca de 20% de toda a produção vinícola.

Com a excepção desse documento, é muito escassa e dispersa a documentação existente sobre esse tipo de produção neste concelho.

De referir, no foral manuelino de Torres Vedras, doado em 1510, o destaque à produção de vinho, como se revela pela importância dada ao relego real, cuja venda tinha lugar privilegiado nos três primeiros meses do ano e cujo desrespeito motivava algumas das mais pesadas penas estabelecidas nesse foral, demonstrando a importância e o valor que o vinho da região começava a ter.

A abundância de vinho nesta região é referida em 1589, quando o  exército anglo-luso, onde se encontrava D. António Prior do Crato,  entrando em Torres Vedras, a caminho de Lisboa, com o objectivo de restaurar o trono português, aqui se demorou mais do que o necessário, porque muitos dos soldados “se embebedarão, por aver muito vinho nesta villa”. Beberam em tal excesso que muitos adoeceram e alguns chegaram mesmo a morrer, incidente que provocou um atraso no avanço dos Ingleses sobre Lisboa, dando tempo às tropas luso-castelhanas, que defendiam a capital, de se prepararem para a chegada dos apoiantes de D. António.

O  desenvolvimento da expansão portuguesa ao longo do século XVI parece ter contribuído para o crescimento da importância comercial da produção do vinho desta região, como o atesta Duarte Nunes de Leão, na sua obra datada de 1599 : “par carrego sam infiniros os vinhos que da Santarem, Alenquer e Torres Vedras e seu grande termo”, os quais “com os de Lamego e Monção poderiam bastecer um reino deixando à parte os que se dam na Beira”.

A meio do século XVII também Rodrigo Mendez da Silva  anotava a abundância, na vila de Torres Vedras, por ordem de importência, de “pan, vino, azeyte, ganados [gado] y cazas [caça]”

As qualidades do vinho Torrienses foram igualmente gabado no principio de “setecentos”  por António Carvalho da Costa, indicando que “esta villa” de Torres Vedras, para além de ser “abundante de excelente trigo, frutas, gado, caça & vinho”, “lavra mais de seis mil pipas” de vinho “que vão para a Índia, por serem de grande substancia para passarem os mares”.

É igualmente no século XVIII, a partir de 1723, que o preço do vinho passa a ser regular e anualmente taxado nos acórdãos camarários, juntamente  com o trigo, a cevada, o milho e o azeite.

Contudo, na segunda metade desse século, durante o governo do Marquês de Pombal, a sua produção vai conhecer um período de incerteza, quando dois alvarás, um datado de 20 de Outubro de 1765 outro de 8 de Fevreiro de 1766, ordenam o arranque de vinhas, um pouco por todo o país, com o objectivo de libertar terras para o cultivo de “pão”, mas que visava, na realidade a produção do Douro. No primeiro desses alvarás a região de Torres Vedras, entre foi excluída dessa decisão, mas, no segundo, as terras cultivadas com vinhas neste concelho passam a ser consideradas impróprias para o seu cultivo.

Ao que parece, esta segunda decisão ficou sem efeito, pois, segundo Veríssimo Serrão, nesse ano de 1766 a coroa determinou “que se fizesse destinção no preço dos vinhos, de modo a não prejudicar a qualidade do fino tinto produzido no Alto Douro” medida essa que, entre outras consequências, valorizou “o produto da região estremenha (Santarém, Torres Vedras) e também Bairrada, que se tornaram ricas zonas vinícolas do País”.

Ao longo do século XVIII o vinho tornou-se um dos principais produtos da região, embora nunca ultrapasse muito os 30% de toda a produção agrícola, 39,1% em 1764 ou 32,2% em 1799.

Parece ter sido ao longo do século XIX, embora com variações, que o seu peso se tronou esmagador, rondando 50% de toda a produção agrícola local logo em 1812, em crescimento contínuo até ao final desse século. (1799 – Mapa do rendimento da Dízima eclesiástica publicada por João Pereira; 1812 – Dados publicados na parte económica de Madeira Torres, aferidos por João Pereira).

A crescente importância da produção vinícola foi observada ainda na primeira metada desse século por Madeira Torres, que escreveu , na parte económica da sua obra, escrita no primeiro quartel do século, refrindo-se a essa produção no “terreno da villa, e seu termo, he muito considerável, e até verdadeiramente singular na generalidade dos fructos que abrange. A producção do vinho he sobre todas a mais abundante” (p.246).

A tão temida filoxera, tema estudado com bastante detalhe por Célia Reis ( “Problemas dos Vinhos Torrienses no Final da Monarquia”, in Turres Veteras III- Actas de História Contemporânea, ed. CMTV/IERMAH-Un. Letras, T. Vedras 2000, pp.123 a 158).

A filoxera manifestou-se pela primeira vez no concelho em 1883, numa vinha da Quinta Nova, junto da Ordasqueira, expandindo-se no ano seguinte pelas vinhas de várias Quintas da freguesia da Ventosa, uma das mais importantes na produção do vinho do concelho, atingindo o seu auge em 1885, quando atingiu todo o concelho, obrigando à substituição das cepas afectadas pelo chamado bacelo americano a partir de 1886.

A crise da Filoxera, ao obrigar a grandes mudanças no tipo de vinhas e no modo de produção vinícola, parece terem contribuído para o rápido crescimento da sua produção local, ultrapassando em 80% o total de toda a produção agrícola ao longo da última década do século e contribuindo para uma profunda alteração na paisagem rural do concelho.

As freguesias de A-Dos-Cunhados, Matacães, Carmões, S.Pedro da vila e S.Mamede da Ventosa foram aquelas onde se iniciou esse processo de substituição.

Em 1888 a vinha “americana” era dominante em relação à “europeia” na maior parte das freguesias e em 1891 já não existia nenhuma vinha de bacelo “europeu” plantada e registada no concelho.

A acção dos viticultores torrienses foi assim rápida e eficaz. Para isso muito contribui a imprensa local, que surgiu em 1885 e dedicava grande parte do seu conteúdo aos problemas da viticultura, bem como a existência de uma escola vitivinícola na Quinta da Viscondessa, no Turcifal, dirigida pela família Batalha Reis, principalmente o irmão António, cujo papel na economia e na sociedade da região ainda está por estudar.

Com a plantação da vinha “americana” a região recuperou rapidamente da crise, tornando-se um importante centro de exportação de vinhos, não só para o Douro, mas também para Bordéus.

José de Campos Pereira, na sua obra publicada em 1915, baseada em dados de 1911, intitulada “A Propriedade Rústica em Portugal”, revela dados que colocam o concelho de Torres Vedras em primeiro lugar no distrito de Lisboa, que então incluía a área do actual distrito de Setúbal, quer quanto à área de cultivo da vinha (21 000 hectares, cerca de ¼ do total distrital), quer quanto ao rendimento (15 mil contos, pouco menos de 1/3 do total distrital ) quer quanto à produção (808 500 hectolitros, cerca de 1/3 do total distrital).

Todos os dados confirmam o peso da produção vinícola até meio do século XX, vinha, ocupando quase metade da superfície agrícola do concelho, seguindo-se o cultivo de batata, trigo e milho, que apesar de tudo, no seu conjunto, ocupavam menos área que a do vinho.

É na segunda metade do século que a produção do vinho vai conhecer profundas mudanças estruturais, reduzindo a área de cultivo mas, apostando-se na qualidade para expostação. Mas essa é outra história.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

As “Festas” de Torres Vedras de 1929 -Inauguração do Mueu Municipal e rede telefónica

 

Inauguração da Linha Telefónica em T. Vedras - (Fonte: Torre do Tombo)

“Dois dias duraram elas.

“E se a função não foi de espavento, nem coisa de encher o olho (…) aos mais exigentes, foi, no entanto, qualquer coisa decente e compostinha, que não deixou em mal o bom nome da vila”(1).

Essas “festas”, realizadas em 28 e 29 de Julho de 1929, foram as da inauguração da rede telefónica urbana e do Museu Municipal de Torres Vedras, incluindo uma visita às obras do novo Hospital e a realização do 1º Concurso Hípico de Torres Vedras, contando com a presença do Governador Civil de Lisboa, o coronel Morais Sarmento, e do major João Luís de Moura, entre outras “altas individualidades.

Esse evento deu continuidade à inauguração da ligação telefónica entre Torres Vedras e Lisboa que ocorreu em 4 de Março, ocasião para a qual chegou a estar anunciada a presença do Presidente da República, o general Óscar Carmona, que acabou por faltar por “razões de saúde (2).

Vivia-se então o terceiro ano da  Ditadura Militar iniciada em 28 de Maio de 1926.

Esta enfrentava então um momento de encruzilhada quanto ao seu futuro, digladiando-se várias facções e várias tendências.

Uns viam no modelo da ditadura espanhola, liderada por Primo de Rivera, apoiada pelo rei Afonso XIII, uma possibilidade de restaurar a monarquia mantendo a ditadura, outros desejavam o regresso a uma República conservadora e democrática “regenerada” pela ditadura, mas o modelo cada vez mais presente era o de adaptar a realidade portuguesa ao fascismo italiano de Mussolini.

Ainda no início desse mês de Julho de 1929 tinha tomado posse o 6º governo da Ditadura, liderado pelo general Ivens Ferraz, fruto de mais uma crise política provocada por essa “guerra” surda entre fações da ditadura, da qual saiu mais reforçada a figura de Salazar.

Mas voltando às “Festas” de Torres Vedras, estas tiveram inicio pelas 11 da manhã do Domingo 28 de Julho, com a chegada dos “ilustres convidados”, o coronel Morais Sarmento, antigo Ministro da Guerra, ocupando nesta data o cargo de Governador Civil de Lisboa, e o major João Luís de Moura, “que fizeram a viagem de automóvel”, deslocando-se aos Paços do Concelho para uma sessão solene, onde aqueles dois militares do 28 de Maio receberam o título de cidadãos honorários de Torres Vedras.

No primeiro discurso dessa sessão, proferido pelo vice-presidente da Câmara, o Dr. António Freire, este recordou a acção de Morais Sarmento a favor da vila de Torres Vedras, quando ocupou o cargo de Ministro da Guerra, destacando a entrega “aos cuidados do Município do vetusto Castelo da Vila, cedendo ainda importantes parcelas de terreno” dependentes daquele ministério, enaltecendo o facto de, como Governador Civil, ter também beneficiando, com vários donativos, a Associação de Educação Física, os Bombeiros Voluntários e a sua Banda, a “Cantina Escolar”, o “hospital em construção” e a escola primária da freguesia do Maxial, entre outros apoios.

Após essa sessão solene, pautada por vários discursos de elogio aos convidados e aos feitos da Ditadura Militar, “os visitantes subiram ao segundo piso do edifício camarário a fim de ser inaugurada a rêde telefonica dentro da vila. E que conta com 65 subscritores”.

A primeira chamada foi efectuada, simbolicamente, por Morais Sarmento para o Hotel dos Cucos, para o “sr. General Trindade, presidente da Junta Autónoma das Estradas, aproveitando para “ lhe pedir “a conclusão da estrada de Vilar” para Torres Vedras.

Depois o Governador Civil efectuou um segundo telefonema para “o sr. General Ivens Ferraz”, o recém empossado Presidente do Concelho de Ministros do 6º governo da ditadura.

Recorde-se que estamos a falar da inauguração da rede pública telefónica. Em Março deste ano, como referimos, foi efectuada a primeira ligação simbólica entre Torres Vedras e Lisboa. Já existiam telefones em Tores Vedras, mas eram particulares, tendo  a primeira ligação sido  efectuada em 24 de Dezembro de 1885, ligando o casal das Lapas, em A-Dos-Cunhados, à vila. Antes já existia um sistema de comunicação por telégrafo inaugurado em 23 de Junho de 1865, ligando Torres Vedras a Caldas da Rainha e a Mafra, com uma estação provisória instalada no Largo do Terreirinho.

Continuando com as “festas”, por volta do meio-dia aquelas individualidades deslocaram-se à sala Irmandade dos Clérigos Pobres, anexa à Igreja de S. Pedro, para inaugurar o Museu Municipal, dirigido por Salinas Calado, destacando a citada reportagem do jornal Gazeta de Torres os principais objectos expostos ao público, como o bufete da Maceira, o foral manuelino de Torres Vedras, vários objectos de arte sacra, uma imagem em marfim, colecções arqueológicas de várias épocas e os oito quadros quinhentistas, então ainda atribuídos a Gregório Lopes.

Após essa inauguração, os “ilustres hospedes visitaram (…) as obras do novo edifício hospitalar, em construção, e cujo corpo central se encontra já bastante adiantado”, sendo recebidos “pelo sr. Joaquim dos Santos Vaquinhas, presidente da comissão edificadora e uma das pessoas que mais se tem esforçado para dotar a vila com uma instituição hospitalar digna, e que possa satisfazer as crescentes necessidades da população”. Contudo, esta obra só foi concluída e inaugurada em 1943.

Após essas visitas e inaugurações, seguiu-se um almoço no Hotel dos Cucos, que terminou com mais uma ronda de “uso da palavra” para enaltecer os convidados e a obra da Ditadura.

O programa de festas desse dia culminou com a realização do Primeiro Concurso Hípico de Torres Vedras, ao qual concorreram 40 cavaleiros, realizado em terrenos pertencentes ao proprietário das Termas dos Cucos, José António Vieira, e próximos desse empreendimento.

“Três escassas semanas atraz estava o campo ainda em cultura de grão. E os pinheiros ainda firmes e erectos em seu enraizado.

“Na altura devida, porem, as pistas estavam prontas, os obstáculos em seus sítios próprios, as vedações e ripados devidamente colocados”, tudo graças à “boa vontade” daquele proprietário e ao “esforço e trabalho incansável do capitão sr. José Lúcio Nunes”.

No dia seguinte teve lugar o programa religioso das “festas”, dedicadas a “S. Gonçalo, padroeiro da vila”, iniciando-se este segundo dia com uma missa solene, pelas 13 horas, e uma procissão a partir das 19 horas, que “percorreu as principais ruas da vila, sempre no meio do maior respeito, repicando os sinos festivamente e estralejando no ar constantes girandolas de foguetes.

“Muitas das janelas do percurso encontravam-se engalanadas com ricas colchas de seda e damasco”.

As “festas” terminaram à noite com iluminações no Largo da República “aonde os extensos relvados se coalhavam de tigelinhas minhotas e o arvoredo ostentava centenas de balões multicores”, com as bandas dos Bombeiros de Torres Vedras e de Infantaria 5 das Caldas da Rainha a tocarem alternadamente.

A encerrar, um “magnifico fogo de artifício fornecido pelo pirotécnico local sr. José de Oliveira Nunes” e “bouquets” coloridos “lançados do alto do Castelo de Torres Vedras”.

Ao longo dos dois dias a vila foi invadida “por muitos milhares de forasteiros vindos de toda a parte” e que, ao alvorecer da madrugada de terça-feira ainda deambulavam pelo Largo da República, antes de apanharem as “varias careiras de camioneta não só para Lisboa, como para outras terras”.

Este foi um dos primeiros casos, ocorridos em Torres Vedras, de uma prática comum ao longo do regime surgido no 28 de Maio, a das inaugurações de vários “melhoramentos locais”, com a presença de “altas individualidades” do regime, uma constante da propaganda política junto das populações da “província”, ao mesmo tempo que servia para demonstrar a fidelidade a esse mesmo regime, por parte das “elites” e autoridades locais.

(1)    – “AS festas em Torres Vedras”, in Gazeta de Torres, 4 de Agosto de 1928. A maior parte as citações deste artigo têm origem nessa reportagem;

(2)    - Ver edições de 4 e 14 de Março de 1929 de “O Jornal de Torres Vedras”;

sábado, 4 de novembro de 2023

A História trágico-marítima do litoral torriense

                              

Naufrágios na Costa Torriense

Torres Vedras é um concelho com cerca de 20 quilómetros de costa marítima, pelo que não é de estranhar a existência de muitas memórias de naufrágios nesta zona.

Numa área entre dois importantes portos de pesca, como Peniche e Ericeira, próxima do estuário do rio Tejo e fazendo parte do litoral que, durante séculos, ligou o Mar do Norte com o Mediterrâneo, pela costa deste concelho terão passado milhares de navios ao longo dos tempos.

Com uma costa de grandes arribas, cortadas pela foz de dois rios de dimensões razoáveis, como o Sizandro e o Alcabrichel, famosa pela agitação marítima e pelos temporais violentos, com a existência de três históricos, embora pequenos, portos de pesca, como Porto Novo, Cambelas e Assenta, não será de estranhar que aqui se tenham registado vários naufrágios ao longo dos séculos.

Tema ainda por estudar e investigar, aqui deixamos um pequeno registo para a construção da “história trágico-marítima” do litoral do concelho torriense.

O mais antigo naufrágio registado nessa costa data de 28 de Agosto de 1650, o “encalhe no areal de Penafirme, perto da Ericeira [?]” do galeão S. Francisco, acabado de sair dos estaleiros a caminho da Índia (1) pouco mais se sabendo sobre esse acontecimento.

Vai ser preciso espera mais um século e meio para voltarmos a encontra referência a outro naufrágio no litoral do concelho torriense, o do navio inglês London “na Praia Formosa, em Rendide” , ocorrido no início de 1801 (2)

Um dos aspectos curiosos dessa notícia parece ser a mais antiga referência à Praia Formosa.

No ano de 1823 ocorreram dois naufrágios, os mais trágicos ocorridos nesta região, o primeiro o da fragata da armada francesa “La Cornaline”, ocorrido em 2 de Fevereiro, frente a Cambelas,  que custou a vida a cerca de cem marinheiros, e o segundo, na madrugada de 10 para 11 de Julho, a norte do chamado Cabo Rendide, o paquete “Lusitano”, “um dos primeiros barcos a vapor (…) da carreira de Lisboa ao Porto”, morrendo mais de 60  pessoas, entre os seus 200 passageiros e 16 tripulantes (3).

Só em 1885 voltamos a encontrar notícias de novo naufrágio na costa torriense, ocorrido na Praia de Santa Cruz, no dia 31 de  Outubro, quando “um forte pé de vento deitou por terra as barracas dos banhistas, que fugiram apressados para terra; e quando os banheiros José Rosa e José Pisco estavam tratando de reunir as barracas desmantelladas, ouviram gritos de soccorro no mar, dados por seis homens que formavam a tripulação de um barco de pesca em imminente risco de soçobrar, o que de facto succedeu.

“Apenas dois dos tripulantes sabiam nadar, e portanto poderam conseguir alcançar a terra; aos outros quatro acudiram os valentes e benemeritos banheiros, que arrostaram com o embate das ondas, indo arremessar pelo mar dentro o cabo salva vidas, a que se agarraram os naufragos, conseguindo assim a sua salvação”(4).

No dia 12 de Abril de 1902 registou-se outra tragédia marítima quando o barco de pesca “Boa Viagem”, ao entrar no porto de Assenta, se virou com uma onda, morrendo dois pescadores, salvando-se o terceiro, o único que sabia nadar (5).

Apenas dois anos depois, em 13 de Junho de 1904, o vapor espanhol Aviles, encalhou, devido ao nevoeiro “no porto Chão ao sul da Foz da Areia”. O navio carregava carvão, com destino a Barcelona. A tripulação de “20 homens e mais 5 passageiros” conseguiu salvar-se, mas, ao chegarem a terra “foram assaltados por muitos indivíduos, verdadeiros piratas que lhes roubaram as roupas, os comestíveis e até os próprios remos da embarcação” (6).

Cenas idênticas passaram-se quando no dia 7 de Março de 1917 ocorreu nova tragédia perto da praia da Assenta com o lugre “Lusitano”, oriundo da Guiné portuguesa, naufragando com um carregamento destinado à C.U.F , falecendo 11 marinheiros, registando-se a pilhagem “dos salvados que deram à costa” (7).

Aquele que foi, talvez, o mais famoso naufrágio nas praias torrienses ocorreu em 5 de Fevereiro de 1930, famoso, não só porque ainda é possível, em certas ocasiões, observar um dos mastros do navio naufragado, como esse naufrágio deu nome a uma das principais praias de Santa Cruz, a “praia do Navio”.

Tratou-se do naufrágio do navio norueguês Hav (“Oceano” em português), vindo de Cardiff para o porto de Leixões, com um carregamento de carvão, um naufrágio que ocorreu após um conjunto de acontecimentos rocambolescos, quando era rebocado de Leixões para Lisboa, para ser reparado, tendo-se salvado toda a tripulação de 11 homens (8).

No dia 1 de Maio de 1947 um violento temporal apanhou de surpresa embarcações de pesca da Assenta. Uma delas, a lancha Olinda afundou-se à entrada do porto da Ericeira, para onde se pretendia refugiar, matando os três pescadores da Assenta (9).

Na madrugada do dia 2 de Outubro de 1970, quando se encontrava em dificuldades, o capitão do cargueiro holandês Shamrock Reefer conseguiu encalhar, propositadamente, esse grande navio na praia de Porto Chão, a sul da foz do Sizandro, conseguindo assim salvar toda a tripulação (10).



Um dos últimos naufrágios registado na costa torriense ocorreu no dia 15 de Fevereiro de 1978.

Foi o do cargueiro alemão Alchimist Emden que ocorreu junto à praia de Cambelas, um novo contributo para a fama dessa praia como “a praia dos naufrágios”.

Não se registando vítimas nesse naufrágio, temeu-se, contudo, um desastre de grandes dimensões “dada a quantidade e natureza da carga – 1150 toneladas de hidrocarbonetos”, situação que, felizmente, não se concretizou (11).

Deixamos, assim, este breve e limitado registo de alguns dos naufrágios ocorridos na costa torriense, esperando que contribua como ponto de partida para uma investigação mais aprofundada sobre o tema.

(Já com este artigo feito, ontem o mar de SantaCruz ceifou mais 4 vidas:)

(1)    - ESPARTEIRO, comandante António Marques, Catálogo dos Navios Brigantinos (1640-1910), Centro de Estudos de Marinha, Lisboa 1976, pág. 7 (disponível na net);

(2)    - Ofício do Juiz de fora de Torres Vedras, José Pedro Quintela, ao secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, datado de 20 de Fevereiro de 1801, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU CU Reino, Cx. 269, pasta 41);

(3)    - CUNHA, João Flores, “Estórias (especuladas) de Torres – Dois Naufrágios em 1823 junto ao Cabo Rendido”, in Badaladas de 5 de Abril de 2019. Sobre o naufrágio do Lusitano leia-se também CATARINO, Manuela, São Pedro da Cadeira – Histórias, Memórias e Património de uma freguesia torriense, ed. Junta de Freguesia de S. Pedro da Cadeira, Setembro de 2021, pág.143;

(4)    - in Jornal de Torres Vedras de 5 de Novembro de 1885;

(5)    - CATARINO, ob. Cit. pág. 143 e Folha de Torres Vedras de 20 de Abril de 1902;

(6)    - VIEIRA, Júlio, Torres Vedras Antiga e Moderna, 1926, pág.229;

(7)    - CATARINO, ob. Cit., pp. 143-144;

(8)    - ver uma interessante e completa reportagem sobre o assunto no site “Torres Vedras Antiga”, transcrita por Joaquim Ribeiro na reportagem “Pesquisa do blogue Torres Vedras Antiga revela novos dados – A História documentada da praia do Navio. Ver também a reportagem coeva do incidente nas páginas do jornal Gazeta de Torres de 9 de Fevereiro de 1930;

(9)    - CARÉ Jr., José, Memórias da Ericeira marítima e piscatória – séc. XIX-XX, pág. 43;

(10)                       - Ver Diário de Lisboa de 2 de Outubro de 1970. Baseei-me igualmente nas legendas de fotografias de Raul Guilherme, vendidas no site Delcampe;

(11)                       - CATARINO, ob. Cit, pág. 144.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Piratas na Costa Torriense

                                                 

(Actual Praia de Santa Rita, local de desembarque de piratas mouros)

Pirataria, corso ou…comércio marítimo?

Se cada uma dessas actividades é distinta, já não é tão fácil classificar quem a elas se dedicou ao longo da história. Por exemplo, o que dizer de Fernão Mendes Pinto? Pirata por conta própria nos mares asiáticos, corsário ao serviço da coroa portuguesa ou comerciante marítimo?

E que dizer da construção dos grandes Impérios Marítimos Europeus, como o Francês, o Holandês ou o Britânico, construídos com o recurso a corsários, meros piratas aos olhos de portugueses e espanhóis, detentores da exclusividade marítima pelo Tratado de Tordesilhas?

Passando por cima da controvérsia da designação, o que abordamos hoje aqui é a “pirataria” magrebina que assolou a costa deste concelho nos séculos XVII e XVIII (1).

A costa, junto ao velho convento de Penafirme, hoje em ruínas, foi por várias vezes assaltada por piratas “mouros”, principalmente no verão e ao longo do século XVII.

O facto de nesse local existirem várias fontes de água e de se situar longe de povoações que pudessem rapidamente defender a costa, terá motivado esses assaltos.

Segundo a opinião de frei Agostinho de Santa Maria, os corsários que frequentavam esta costa “vinhão muitas vezes a fazer nella água em suas lanchas, e a furtar o gado que podião, e também a cativar alguns pescadores, que fugindo delles se hião recolher no Porto Novo, ou estavão naquella praza reparando seus barcos & redes & por vezes intentarão acometer o Convento, para roubar, & cativar os religiosos”(2).

O próprio mosteiro antigo dos frades de Penafirme era alvo do ataque dos ditos piratas, não só para o roubarem, como “levarem os frades cativos” (3).

Por causa desses assaltos os frades de Penafirme tomaram várias iniciativas para se protegerem : reforçaram as portas do convento com trancas de ferro, armaram-se e passaram a vigiar a costa de dia e de noite.

Se avistassem os piratas durante o dia, faziam tocar a rebate o sino da torre da Igreja. Se os avistassem durante a noite, usavam como sinal um facho que acendiam, colocado na mesma torre.

No caso de ataques de maior gravidade usava-se um sistema de sinalização luminosa, com fachos que eram acesos nos locais mais altos, desde a costa até Torres Vedras. Daí os nomes ainda hoje conhecidos, de “ponta da Vigia”, em Vale de Janelas, “Alto da Vela”, em Santa Cruz, ou “Casal do facho”, no Varatojo.

Nesses tempos, os habitantes de Penafirme estavam isentos da prestação do serviço militar, para ocorrerem à defesa da costa.

Data dessa época o episódio que imortalizou o frade Roque da Gama. Ajudado por quatro lavradores, defendeu o convento de um ataque de 14 piratas, em 30 de Junho de 1620, conseguindo aprisioná-los (4).

Terá sido em resultado desse acontecimento que o rei Filipe III decretou “que ouvesse no Convento hua (...) praça de armas (...) & assim mandou dessem para o convento hus tantos mosquetes, & lanças, hum tambor, & frascos, que alli se conservão para esse fim; & ordem para cobrarem em Lisboa cada hum anno certa quantidade de polvora & balas” (5).

Mais do que o saque e a recolha de mantimentos, um dos principais objectivos desses ataques de piratas magrebinos era fazer cativos, actividade que alimentava um lucrativo negócio de resgate de cativos.

Embora com avanços e recuos, em relação à sua autonomia, desde o século XIII que a responsabilidade de recolher “esmolas” para resgatar cativos cabia à Ordem da Santíssima Trindade (6).

Do resgate de cativos efectuado por essa ordem, nas cidades muçulmanas do norte de África, existem vários “relações” acessíveis na net, disponibilizadas no site da Biblioteca Nacional de Lisboa.

Ao contrário do que aconteceu na costa da Ericeira ou mesmo na região de Peniche, esta última próxima de um dos principais refúgios desses piratas, as Berlengas, de onde partiam para as suas incursões nesta costa, não existem muitas referências a cativos “torrienses”. Mas elas, apesar de raras, existem.

Em 1739 foram resgatadas da cidade de Argel Sebastianna João de 46 anos, “casada com Pascoal Ferreira”, natural de S. Pedro da Cadeira, cativa havia 2 anos e meio, pela quantia de 630$000 réis, juntamente com a sua filha Maria Ferreira, com 12 anos, pelo mesmo valor (7).

Numa outra lista, de 1754, encontramos, entre os resgatados da cidade de Argel, um Domingos João que “tem ofício”, natural da Assenta, casado com Helena Francisca, de 60 anos, com 14 anos de cativeiro, resgatado pela quantia de 284$000 réis (8).

João Flores da Cunha, investigador da história torriense, encontrou nas suas buscas, além dos acima mencionados, mais os seguintes cativos “torrienses” resgatados: em 1674, de Argel, Estevão Lourenço de 42 anos, marinheiro, com 3 anos de cativeiro, liberto por 110.000 reis; em 1729, de Marrocos, Domingos Jorge, de 48 anos com 22 de cativeiro.

Pela origem dos resgatados, ficamos a saber que não foi apenas a costa norte do concelho a ser atacada por piratas, mas também a zona da Assenta.

Refira-se também que, perante a continuação e frequência dos actos de pirataria junto à foz do Alcabrichel, D. Afonso VI mandou construir uma fortaleza junto de Porto Novo, o forte de Nossa Senhora da Graça, cuja construção se iniciou em 1662.

Contudo, essa construção, mais do que ter por objectivo defender a costa do ataque de piratas, visava integrar um conjunto de fortalezas marítimas, entre o Cabo Carvoeiro e o Cabo da Roca, que defendessem o território de um desembarque castelhano, num período de intensas guerras entre os dois reinos, na sequência da restauração portuguesa de 1640.

Ainda em 1810, João de Lemos Lima Falcão, coronel do regimento de milícias de Torres Vedras contribui com 46$130 réis em “metal” e 32$600 réis em “papel” para o resgate de cativos (9).

Tema ainda por estudar, aqui ficam algumas referências ao testemunho dessa actividade na costa do nosso concelho.

(1)    – Sobre este tema, mas referindo-se à costa vizinha da Ericeira, existe um interessante estudo, da autoria de Maria da Conceição Ramos: A Pirataria Argelina na Ericeira do Século XVIII, editado pela Mar de Letras em 1998;

(2)    - SANTA MARIA, frei Agostinho de, Santuário Mariano, tomo II, ed. 1707, p.74;

(3)    - PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquíssima Província de Portugal da Ordem dos Eremitas de S. Agostinho, parte I, Lx, 1642, Livro III, tit. VI, fl.348 v;

(4)    - leia-se o resumo desse episódio em Luís, Maria dos Anjos Santos Fernandes, “A Vigilância e defesa da Costa” em A dos Cunhados – Itinerário da memória, ed. Pró- Memória, 2002, pp.127-130, com base no mesmo PURIFICAÇÃO;

(5)    - SANTA MARIA, ob. cit., p.75;

(6)    – leia-se sobre esse assunto a excelente síntese na obra citada de Maria da Conceição Ramos, no capítulo intitulado “O resgate de cativos – intervenção central e local”, ob. Cit em (1), pp 27 e ss;

(7)    – “Relação dos Cativos que por ordem de (…) D. João V” foram resgatados da cidade de Argel em 1739 (site da BNL), nºs 2 e 3 da lista

(8)    – “Relação dos Cativos que por ordem do fidelíssimo rey Dom Joseph I” foram “resgatados na cidade de Argel (…)” (site da BNL), nº 69 da lista;

(9)    – “Donativos para Resgate – 1810”, no site da BNL. 

terça-feira, 26 de setembro de 2023

No Bicentenário do Nascimento de José Félix Henriques Nogueira

(Henriques Nogueira in Galeria Republicana-1882)

Passando este ano o bicentenário do nascimento de José Félix Henriques Nogueira, não podíamos deixar de invocar, nesta coluna, essa efeméride (1).

Nasceu na Bulegueira, aldeia da freguesia de Dois Portos, então pertencente ao julgado/concelho da Ribaldeira, em 15 de Janeiro de 1823.

Tendo ficado órfão de pai aos 7 anos,foi viver para Lisboa, na casa de um tio, onde começou a frequentar a escola secundária em 1835.

O seu primeiro acto político teve lugar aos 17 anos, em 1840, assinando um protesto contra a extinção do concelho da Ribaldeira (seria extinto em 1855).

Publicou o seu primeiro artigo em 1844 na revista Panorama, dirigida por Alexandre Herculano, uma evocação da Ericeira.

Nesse mesmo ano, na edição de 9 de Março dessa mesma revista, publica-se uma gravura da Ermida de Nª Srª do Socorro, da autoria de Henriques Nogueira, cumprindo a “promessa de outros desenhos seus, que estamparemos neste jornal”. Revela-se assim uma outra faceta de Henriques Nogueira, menos conhecida, a de desenhador.

O ano de 1851 foi crucial na sua biografia, editando nessa altura a sua primeira obra de fôlego, “Estudos Sobre a Reforma em Portugal”, obra em 2 volumes (o 2º Volume saiu em 1855),  iniciando uma actividade política mais consistente, editando uma “carta ao Centro Eleitoral Operário”, datada da Póvoa de Penafirme, onde incitou os operários a apresentarem uma candidatura própria às eleições para deputado, e candidatando-se, nesse mesmo ano, a deputado pelo Círculo de Alenquer, candidatura que repetiu no ano seguinte, desta vez pelo Círculo de Torres Vedras, mas sem êxito.

Em 1853, apenas com 30 anos, viajou para a Inglaterra, passando também pela Bélgica. Alemanha, França e Espanha. Em 1857 escreveu as suas recordações dessa viajem, embora referindo-se apenas à sua estadia no território britânico.

No jornal “O Progresso” começou a publicar, em 1855, um conjunto de crónicas intituladas “Estudos Políticos”, que vão dar origem à sua segunda obra de fôlego, “O Município do Século XIX”, obra editada em 1856.

No auge da sua actividade intelectual, morreu em Lisboa com uma doença do foro pulmonar, em 23 de Janeiro de 1858, apenas com 35 anos.

Henriques Nogueira está sepultado no cemitério dos Prazeres, em Lisboa, sepultura identificada com o seu busto, da autoria de Manuel Bordalo Pinheiro, pai de Bordalo e Columbano.

As suas obras foram pioneiras em muitas áreas do pensamento político e social, expressas em muitos artigos dispersos e, principalmente (2).

Nos “Estudos…”, no capítulo dedicado ao “Governo”, note-se a actualidade do que escreveu: “ Quando será que os destinos humanos se regularão pela força do direito, da justiça e da sabedoria, e não pelo abominável direito da força, do despotismo e da ignorância? Quando será que os graves negócios e pendências entre as nações se decidirão pelos princípios da equidade, sem o recurso bárbaro e estúpido da guerra?” (3).

Nessa obra defende muitas ideias que, se para altura eram inovadoras, hoje, sendo aceites, nem sempre são praticadas por esse mundo fora, como a defesa do voto livre e universal, do reforço do poder da Assembleia Legislativa, da valorização do trabalho e do direito ao trabalho através de um salário justo, reflectindo também sobre o trabalho feminino.

A defesa do mutualismo, da educação, da liberdade de imprensa, do reforço do poder municipal, são outros dos tópicos da sua reflexão. As preocupações com o papel da educação é, aliás, transversal a toda a sua obra (4).

Defensor do Iberismo, partindo do modelo federal da Suiça e dos Estados Unidos, revela-se um percursor, quase 10º anos antes, da idéia que esteve na base da construção da União Europeia e até da ONU, ideia que ele defende, com maior enfâse, em artigos publicados no Jornal “O Progresso”, em 1855, com os seguintes argumentos: “É tempo (…) que os povos se emancipem destes governos anacrónicos [baseados em fronteiras nacionais] que, pela compressão, pelo isolamento e pela miséria, obstam ao seu natural progresso. Um dos meios mais profícuos que com este santo fim têm sido lembrados é sem dúvida a formação de grandes nacionalidades que possam resistir com vantagem contra os estrangeiros que pretendam dominá-las. Estas nacionalidades serão depois outros tantos grupos de uma só família – o género humano. O que até hoje se decide pelo arbítrio de três ou quatro nações poderosas, será então resolvida num congresso geral, em que todos os povos terão representantes” (5). O que não é esta última frase, senão a defesa daquilo que se criou depois da 2ª Guerra, a ONU?

A outra sua obra fundamental, “O Município do Século XIX” é um esboço histórico pioneiro sobre a o municipalismo português, muito no seguimento dos estudos do seu amigo Alexandre Herculano.

Defendendo nessa obra a descentralização do poder, definiu nessa obra algumas das principais funções dessa instituição, que se devia basear em eleições democráticas, dando a cada freguesia o poder de eleger um vereador.

Entre essas funções, destaque  para a organização em cada município de um arquivo, de uma biblioteca, de um museu, de uma imprensa municipal, de uma escola municipal, de um teatro municipal, de um ginásio  e de associações municipais que representassem as várias áreas económicas ( agricultura, industria, comércio e as actividades artístico-literárias). Muitas dessas ideias só foram concretizadas no século XX, alguns mais de cem anos depois desse escrito.

Ficam aqui apenas alguns tópicos para quem queira continuara a explorar e conhecer a valiosa obra do autor torriense.

(1)    – Este texto baseou-se numa nossa comunicação apresentada em Janeiro deste ano, na Escola Secundária Henriques Nogueira. Sendo o nosso texto uma breve síntese, destacamos, entretanto, a publicação, nas páginas deste jornal, de três outros textos sobre Henriques Nogueira, abordando outras perspectivas, e com outra profundidade, da obra desse pensador: MATOS, Álvaro Costa de, “Henriques Nogueira: jornalista e publicista”, in Badaladas de 26 de Maio de 2023; CATARINO, Manuela, “Henriques Nogueira: defensor do Iberismo”, in Badaladas de 2 de Junho de 2023; DUARTE, Joaquim Moedas, “Henriques Nogueira : precursor do socialismo e do republicanismo”, in Badaladas de 16 de Junho de 2023 ;

(2)    – Toda a obra de Henriques Nogueira está reunida nas “Obras Completas” em 3 volumes, editadas em 1970, 1979 e 1980, pela INCM, sob orientação de António Carlos Leal da Silva, autor de um anexo com a cronologia da biografia do autor, editado em 1982. Entre muitos outros estudos sobre Henriques Nogueira, detacamos também a obra de Vitor Neto, As Ideias Políticas e Socias  de José Félix Henriques Nogueira, nº 6 da colecção H, editado pela Colibri e pela CMTV em 2005;

(3)    –“Estudos..” in Leal da Silva, Tomo I das “Obras Completas”, pág.29;

(4)    – Veja-se o nosso estudo sobre o papel da Educação na obra de Henriques Nogueira publicado na obra colectiva José Félix Henriques Nogueira, editada conjuntamente pela Escola Secundária Henriques Nogueira e pela Câmara Municipal de T. Vedras em 2008;

(5)    – in Leal da Silva, Tomo III das “Obras Completas”, pág.  83;

segunda-feira, 5 de junho de 2023

As Origens do Partido Socialista em Torres Vedras


Fundado em 19 de Abril de 1973, no exílio alemão, o actual Partido Socialista só surgiu em Torres Vedras já depois do 25 de Abril, embora tenha existido, no início do século XX um primitivo Partido Socialista com alguma actividade em Torres Vedras.

Em Portugal as primeiras manifestações do ideário socialista ocorreram na década de 70 do século XIX, na sequência da “Comuna de Paris”, acontecimento que teve lugar entre Março e Maio de 1871, que acabou com a repressão sangrenta sobre os revolucionários franceses.

Nesse mesmo ano de 1871, em Agosto, o genro de Karl Marx, Paul Lafargue, deslocou-se a Portugal para reunir com os membros locais da Associação Internacional dos Trabalhadores, organização fundada por ocasião da Primeira Internacional (1864-1876), visita que motivou a fundação da “Fraternidade Operária”(FO)  em Janeiro de 1872.

Devido às perseguições policiais e ao incipiente peso social e económico do operariado português, a FO extinguiu-se em 1873.

Muitos dos membros da FO, apoiantes em Portugal da Primeira Internacional, fundaram , em 1875, o primeiro Partido Socialista português.

Entre os fundadores estiveram Aznedo Gneco, José Fontana e, entre cerca de uma vintena, um homem que veio a estar muito ligado a Torres Vedras, Manuel do Nascimento Celestino Aspra.

Foi este Celestino Aspra, tipógrafo de profissão, que esteve ligado à divulgação de algumas ideias associadas a esse primeiro socialismo, como o mutualismo operário, sendo um dos fundadores da "Associação Mutualista 24 de Julho de 1884” (1).

Fundador da primeira tipografia torriense, a esta estiveram ligados os dois primeiros jornais editados em Torres Vedras, “O Jornal de Torres Vedras” (Janeiro de 1885 a Dezembro de 1886) e “Voz de Torres Vedras” (Fevereiro de 1887 a Janeiro de 1890).

Foi num artigo do jornal “ Voz de Torres Vedras”, de 6 de Julho de 1889, intitulado “As Classes”, que se publicou a  primeira referência local à obra e pensamento de Karl Marx, a propósito do qual o articulista se interrogava : “Quem não sente o arruído das classes escravizadas pelo salário, classes que em altos brados reclamam por toda a parte o seu quinhão no banquete social, apresentando-se para tomarem nas suas mãos o destino d’este mundo (…)?”.

Em plena 1ª República, o candidato socialista pelo Círculo de Torres Vedras às eleições para deputado de 1915, Raul dos Santos Palermo, recebeu um total de 20 votos neste concelho, de um total de 1644 expressos. Esse mesmo candidato, o único “socialista”, voltou a apresentar-se por este círculo em 1919, recebendo 23 votos de um total de 860 (2).

Foi em Abril de 1917 que se fundou um “Núcleo de Propaganda Socialista de Torres Vedras”, iniciativa acolhida “com viva satisfação pela classe operária”, ficando as adesões a cargo de José Augusto Correia Lemos, na Rua Mouzinho da Albuquerque, nº 32, r/c. A inauguração desse Núcleo ficou marcado para 1 de Setembro, numa “sessão de propaganda, numa colectividade”, estando programada a actuação de um “sexteto” de Lisboa que “executará o hino operário “A Internacional” (3).

Na sequência dessa iniciativa, o núcleo local do Partido Socialista, liderado localmente pelo marceneiro António Vicente Santos Júnior, concorreu, pela primeira vez, e única durante esse regime, às eleições autárquicas, em Maio de 1919, obtendo 45 votos.

Em 1931, por ocasião da tentativa de formação de uma frente única republicana para enfrentar a recém criada União Nacional nas eleições para o parlamento prometidas pela ditadura do 28 de Maio,  (4) foi eleito como representante local da chamada Frente Republicano-Socialista, em sessão realizada no Teatro-Cine em 28 de Junho desse ano, pelo núcleo local do Partido Socialista, aquele mesmo António Vicente (5).

A partir da década de 30 do século passado não se regista qualquer actividade do Partido Socialista em Torres Vedras, proibido que estava pelo Estado Novo. A partir dessa década a oposição é liderada por republicanos históricos e pelo cada vez mais influente Partido Comunista Português.

Muitos dos fundadores do actual PS torriense vieram da oposição ao Estado Novo e, em vésperas do 25 de Abril, participaram em eventos unitários, ora nas acções da oposição, ora assinando documentos contra a “situação”, junto com outros oposicionista locais, como foi o caso, por exemplo, de um João Carlos, um Dr. Augusto Troni, uma Leonia Rodrigues ou um Sérgio Simões.

Foi em documento de 4 de Maio de 1974 que a “Comissão Concelhia de Torres Vedras do Partido Socialista” apresentou “À População do Concelho de Torres Vedras” a “declaração de princípios” do partido, anunciando para breve a inauguração da sua sede local, que se situou numa vivenda na Av. 5 de Outubro, que existiu a poente do “Pacar”.

Em documento de 7 de Junho de 1974, apresentou-se publicamente a lista de nomes que integraram a “Comissão Provisória da Secção Concelhia de Torres Vedras”, composta por 26 nomes (ver imagem em anexo).

Concorrendo pela primeira vez a eleições, nas “Constituintes” de 25 de Abril de 1975, o Partido Socialista foi o mais votado no concelho, com 15 881 votos (43,59%), embora não tenha vencido em todas as freguesias (foi derrotado pelo PPD em A-Dos-Cunhados, Campelos, Freiria, Silveira e Ventosa).

Nas primeiras eleições autárquicas, realizadas em 12 de Dezembro de 1976, o PS venceu, sem maioria absoluta, com 10 073 votos (36,73%), em lista encabeçada por Alberto Avelino (6).

Para além de ter sido o primeiro presidente eleito da Câmara Torriense, Alberto Avelino tinha sido deputado na Constituinte de 1975, voltando a estas funções de deputado mais tarde e exercendo, durante 12 anos, o cargo de Governador Civil de Lisboa, sendo uma das figuras históricas do novo PS.

Em termos locais, esse partido tem dominado a liderança municipal desde essas eleições de 1976, caso raro em Portugal.

(1)    - leia-se “Associação de Socorros Mútuos 24 de Julho de 1884. Nos primórdios do associativismo operário em Torres Vedras”, in Turres Veteras X - História do Sagrado e do Profano, Lisboa, ed. Colibri-CMTV, 2008, pp.231-245;

(2)    - ver  “Republicanos de Torres Vedras”, ed. Colibri e CMTV, 2003;

(3)    - leiam-se as edições de 5 de Abril e 19 de Julho de 1917 de “A Vinha de Torres Vedras”;

(4)    -  as tão esperadas eleições para a Assembleia Nacional realizaram-se apenas em 16 de Dezembro de 1934, “disputadas” unicamente pelo  movimento da ditadura, a União Nacional, força política que se manteria como “partido” único até ao 25 de Abril;

(5)    - ver Gazeta de Torres de 14 de Junho de 1931;

(6)    – muitas destas informações foram recolhidas no arquivo pessoal do autor.

ANEXO:

Documentos para a História do PS em Torres Vedras