"No meio de tantas memórias de lugares que foram ocupando as minhas
férias, seria injusto não referir o local onde tantos e tantos anos passei as
férias da minha juventude: a Praia de Santa Cruz.
"Desde que me conheço, os meus pais mudavam-se todos os anos para Santa
Cruz no período de férias, normalmente em Setembro. Em Santa Cruz também
estavam muitos dos meus amigos (alguns, para inveja minha, passavam lá boa
parte das infindáveis férias de verão) e tinha amigos que apenas encontrava
nesse período.
"A rotina diária era forçosamente diferente. O cheiro da maresia ao
levantar, o ir comprar o pão ao centro da aldeia, e depois passar o dia quase
todo na praia, na areia, no meio de jogos e brincadeiras, quase só
interrompidos pela tão esperada ida ao banho.
"Normalmente almoçava-se em casa, não sem antes tomar um último banho,
"in extremis", de forma a que não se regressasse a casa muito
molhado, enrolado na toalha.
"De longe em longe, a minha mãe levava o almoço até à praia e então aí,
basicamente, não saíamos da praia todo o dia.
"Algumas vezes a tarde contemplava um programa diferente. O aluguer de
uma bicicleta no sr. Joaquim "das bicicletas" (primeiro com rodinhas
laterais, mais tarde sem elas), ou então e em especial nos dias mais cinzentos,
umas horas no "salão de jogos" a jogar "matrecos".
"Mais tarde lembro-me dos serões na praia, quando alguém já tinha um
gira-discos ou um gravador portáteis, encostados aos montes de almofadas que
por lá havia, a ouvir musica ou a conversar.
Em Julho e Agosto imperam os dias maiores e mais solarengos. Já
Setembro é um mês mais incerto. Se há anos em que parece estarmos no inverno e
a chuva não pára, há outros em que se tem os melhores dias de todo o verão, com
marés muito vazias e calmas.
"Também em Setembro o areal da praia está mais vazio. Há menos
veraneantes. E há fins de tarde fabulosos.
"Setembro é também o mês das marés vivas. Como os meus pais gostavam de
alugar a barraca mais à frente da fila, na altura das marés vivas o mar chegava
até lá muitas das vezes. Era uma festa (pelo menos para nós). Faziamos
barreiras de areia à volta da barraca e jogávamos à "apanhada" com o
mar. Normalmente conseguiamos sempre saltar para dentro da barreira antes de
ficarmos molhados, mas, por vezes, as ondas eram mais fortes e destruiam-nos as
barreiras, molhando tudo à passagem.
"E depois, havia ainda os gelados ao fim da tarde e a Ti' Angelina das
pevides, tremoços e amendoins. E os livros de 'histórias aos quadradinhos' em
segunda mão que se tocavam na papelaria União, por apenas cinco tostões.
Enfim, recordações de tempos felizes e despreocupados em que voltávamos
para a escola já fartos de férias.
"Tal como eu fui mudando, Santa Cruz, hoje, também está diferente.
Apesar de muitas das casas térreas e baldios terem dado lugar prédios altos e à
construção de uma cintura de urbanizações, houve recentemente o bom senso de
requalificar e "pedonalizar" o centro da aldeia, estancando alguma da
descaracterização que Santa Cruz foi sofrendo ao longo do tempo.
"A frente de mar também foi arranjada e, por força das ondas, a praia
está a ficar mais estreita.
Muitos dos locais da minha infância e juventude mudaram ou acabaram,
mas isso faz parte da vida (embora não entenda porque é que a nossa querida
"praia do norte" foi rebatizada para "praia do centro").
"Hoje vou passar férias para locais mais longínquos mas gosto ainda de
passear nas ruas calmas de Santa Cruz, quando já não há a confusão do Agosto.
Gosto de olhar o largo horizonte e vislumbrar as Berlengas ou de, à noite, ir
tomar um copo ao "Manel".
"E quando os Setembros são bons espero sempre encontrar um final de dia
soalheiro, onde uma maré vazia nos faz ficar na praia até quase ao sol se pôr".
Mári Luís Aspra de Matos, in blogue VONTADE DE IR