domingo, 1 de novembro de 2009

O Teremoto de 1 de Novembro de 1755 em Torres Vedras


(ruinas do antigo Convento de Penafirme)


Rezam as crónicas que aquele Sábado, dia 1 de Novembro de 1755, amanheceu sereno e soalheiro.
Era dia de Todos os Santos e muitas igrejas estavam cheias de fiéis desde as 9 da manhã.
Nessa manhã o padre António Duarte, pároco de A dos Cunhados, entregava-se às cerimónias litúrgicas do dia, quando, pelas 9 horas e meia dessa manhã começou a sentir um forte abalo. Na realidade o abalo iniciou-se às 9h40.
A ele devemos um dos mais completos relatos sobre a forma como o terramoto foi sentido na região.
Afirma o pároco que este durou cerca de um quarto de hora. Segundo outras testemunhas, referindo-se à forma com foi sentido em Lisboa, o abalo durou 9 minutos, divididos por três abalos. Outros ainda referem que a terra tremeu por três vezes durante 17 minutos, tendo o mais forte durado 7 minutos.
António Duarte descreve o momento nos seguintes termos: pulsava “a terra para cima e ao mesmo tempo balanceava para as quatro partes, norte, sul, oriente e poente, e sendo maiores os balanços que dava do oriente para poente”.
Um dos maiores impulsos deu-se nessa direcção, “a meio do terramoto”. Nessa altura o padre António Duarte estava no interior da Igreja de A-dos-Cunhados, “de joelhos junto ao altar-mor capitulando as preces que nesse acto se fazem” e viu “a tribuna da capela-mor” sobre ele, “o que tão bem viram as mais pessoas que estavam no corpo da Igreja e além disso viram o coro e porta principal ir submergindo para o fundo”. Quando o abalo terminou, os paroquianos, vendo a sua igreja ilesa, em reconhecimento de tal facto, prometeram “à Senhora de mais se não apagar a sua lâmpada, nem de noite, nem de dia”, mantendo a cera acesa nos oito dias seguintes.
No lugar de A-dos-Cunhados não caiu qualquer casa, “só duas moradas de casas ficaram somente com sinais do que foi e as mais delas totalmente ilesas”, situação atribuída a milagre “de Maria Santíssima Senhora da Luz”.

Os estragos do terramoto no concelho de T. Vedras

Nem todos os lugares do concelho tiveram a mesma sorte de A-dos-Cunhados. Nas proximidades, no “lugar da Póvoa (…) e seus arrabaldes (…) ficaram assolados por terra e de todo destruídas seis moradas de casas; outras ainda que em pé, inabitáveis e todas padeceram mais ou menos ruínas”. Na Maceira “ficaram inabitáveis, e em muita parte destruídas, cinco moradas de casas e todas as mais, ainda que habitáveis, com mais ou menos ruína”. Noutros casais da freguesia “não houve ruína que obrigasse aos seus moradores a mudar sua morada, porém em todas se vê ou méis ou menos sinais do que foi”.
Ainda na freguesia, o Convento de Penafirme, o de segunda fundação, ficou em ruínas e o novo, que estava em construção, junto à actual escola de Penafirme, “ficou tão arruinado que é preciso tornar dos fundamentos”.
Nas respostas ao inquérito paroquial de 1758 é possível perceber o impacto do terramoto nas outras freguesias do concelho:
Na Carvoeira a capela-mor da Igreja paroquial padeceu de ruína, bem como a torre sineira, e em toda a freguesia arruinaram-se sete casas.
Em Dois Portos caiu um sino e a abobada da capela-mor ficou gravemente danificada, sendo necessário deitá-la abaixo para a reparar. Nesta freguesia os edifícios das localidades da Maceira e do Mato da Granja ficaram fortemente danificados, ficando por terra a totalidade das habitações deste último lugar, vendo-se os seus habitantes obrigados a viver algum tempo fora desses lugares. Só a Caixaria não registou qualquer prejuízo.
A vizinha freguesia de Runa sofreu igualmente “grande ruína”, desconhecendo-se mais pormenores.
Em Carmões “padeceram as habitações todas da freguesia, umas com maior ruína por se demolirem paredes e pedaços delas, por isso inabitáveis, e outras com menor, mas fendidas e abertas de sorte que causavam medo para se habitarem”. A igreja paroquial foi parcialmente destruída, tendo caído dois pedaços da abóbada, “um sobre o coro que todo o abateu e outro junto ao arco do cruzeiro, e toda a abóbada ficou fendida pelo meio e a da capela-mor mais traçada e moída, e as paredes laterais da mesma sorte: o arco do cruzeiro desuniu-se em várias partes e a tribuna da capela-mor”. A torre sineira “ficou com muitas aberturas e fendas, mas não caiu, talvez por estar presa na parte superior com linhas de ferro”.
O pároco da Freiria limitou-se a referir ter padecido “esta Igreja” e toda a freguesia “tanto o terramoto, tanto, que se conta pela mais destruída de todas”.
A freguesia da Ventosa sofreu igualmente grandes estragos. A Igreja paroquial sofreu estragos nas colunas que sustentavam as naves e em todo o corpo. Igualmente arruinada ficou a Ermida de Nª Srª da Piedade, no Cadouço.
A abobada e uma torre que “se achava feita havia poucos anos” na Igreja de Ponte do Rol foi o principal estrago registado nesta freguesia, embora “quase todas as habitações desta terra” tivessem “padecido” com o terramoto.
Ao contrário das anteriores freguesias, a do Ramalhal foi das que menos sofreu com o terramoto: a “ruína que padeceu do terramoto não foi muito grande nem fez muita destruição”.
Desconhece-se o que se passou nas freguesias de Matacães, Monte Redondo e Maxial, S. Pedro da Cadeira e Turcifal, devido à escassez de informações sobre este tema referidas na resposta ao inquérito de 1758. As freguesias de Campelos, Silveira, Outeiro da Cabeça e Maceira, não existiam então como tal, pertencendo, respectivamente, a Stª Maria, a S. Pedro da Cadeira, ao Maxial e A-dos-Cunhados.


Na vila de Torres Vedras

A então vila de Torres Vedras foi “das mais bem livradas do terramoto”, segundo o relato do pároco de Stª Maria, o padre António Ribeiro. Contudo conheceu alguns estragos consideráveis nas suas casas e monumentos.
A igreja de Stª Maria do Castelo viu as suas duas torres caírem.
A torre do relógio “caiu para dentro sobre o coro”, quebrando “as grades e a imagem do Santo Cristo que nelas estava”. Uma estante de livros “levou abaixo uma linha de ferro que estava correspondente ao órgão, o qual pegando por ele o botou abaixo a igreja”.
A torre sineira caiu para fora “quebrando os dois sinos que tinha” e a sineta.
Quanto aos edifícios particulares “padecerão muitas ruínas (…), uns totalmente caídos, os mais todos ficaram vários sentimentos, principalmente nas paredes da rua, que sobre ela ficarão pendentes”.
Sabe-se também que o Castelo, embora não habitado e já em parte arruinado, sofreu graves estragos, ainda hoje visíveis.

O maremoto no litoral torriense

Dos fenómenos associado ao terramoto que mais impressionaram os homens daquele tempo, o maremoto que se seguiu ao abalo de terra, atingindo toda a costa portuguesa, foi sem dúvida o mais assustador de todos.
Deve-se mais uma vez ao pároco de A-dos-Cunhados a única descrição conhecida desse fenómeno no nosso litoral
Quando se deu o terramoto, o “mar estava acabando de encher”. O maremoto deu-se nesta costa cerca de 1 hora e 1/4 depois do abalo, por volta das 11 da manhã.
A descrição daquele padre confirma as descrições do que por essa altura se passou em Lisboa, registando-se três grandes fluxos de subida e descida da água: “o fluxo e refluxo extraordinário só foi por três vezes (…) porém, toda aquela tarde continuou enchendo e vazando, recolhendo as águas com tanta velocidade que ficava tudo enchuto até à distância em que se tinha levantado e mandando-as com a mesma velocidade para terras”, ou seja, para além daquelas três grandes ondas, outras ondas mais pequenos tiveram lugar nesse dia, calculando-se actualmente que se registaram ao todo 16 ondas de grandes dimensões, destacando-se, contudo, aqueles três momentos.
Observada a partir de Penafirme e Porto Novo, “a novidade que se viu do mar (…) foi o levantar-se esta coisa de meia légua
cerca de 2 quilómetros e meio
distante da terra em um grande monte em que algumas pessoas divisaram diversas cores nas águas, pondo esta novidade em tão grande pasmo e temor a toda aquela vizinhança, que quase toda, imaginando era chegado o tremendo dia do juízo, da mesma sorte que estavam, ou bem ou mal compostos, sem fecharem suas casas e sem cuidarem de seus bens, fugiram para este lugar e igreja”.
Continuando a relatar-nos o tsunami, refere o cura António Duarte: “esse grande monte de mar veio discorrendo com voracidade para terra e combateu as arribas na altura de nove ou dez braças (…) Em um vale que corre do Sul para o norte e desagua na praia de Porto Novo, passando-se naquele tempo a pé enchuto correu tão cheio de água que por algum tempo se não pôde passar, cuja enchente lhe procedeu dos muitos olhos de água que circunvizinhos rebentaram (…). Os palmos que cresceu mais do ordinário se pode conjecturar pela altura das nove ou dez braças
algures entre os 16 e 20 metros de altura
em que combateu as arribas (…) chegando pela terra dentro a distancia que não há tradição chegasse em tempo algum
de facto, terá entrado, na zona de Porto Novo, pelo menos até às proximidades da actual “fonte dos frades".
Hoje pensa-se que a onda maior, que pode não ter sido a primeira, a atingir, em impacto directo, a costa portuguesa tinha um altura de cerca de 15 metros, com uma velocidade junto ao litoral de cerca de 60 Km por hora, embora a que atingiu Lisboa tenha sido mais pequena, talvez com uns 6 metros, devido ao factor atenuante da menor profundidade do rio Tejo.

Consequências na vida das pessoas

No concelho de Torres Vedras não existe qualquer registo conhecido sobre mortos ou feridos. A lenda refere apenas o caso de um frade de Penafirme que, ao subir ao monte em frente ao convento para fugir ao maremoto, teria falecido de ataque cardíaco.
Pior foi o agravamento das condições de vida das populações, como revela o pároco de Carmões: “Padeceram todos a falta de condutos para a sustentação costumada por ficarem destroçados os engenhos de moer pão, nas lojas ou tendas faltaram coisas comestíveis, e isto por tempo de mês e meio (…): houve também falta de materiais para a reedificação das casas”. E, à laia de conclusão, rematava o pároco Baltazar Freire da Costa: “esta freguesia é pequena e pobre (…) e no tempo presente estão mais necessitados pela falta e custo do pão, por cuja causa estão mais aptos para pedirem esmola” do que para ajudar a reconstruir a igreja paroquial.
No inquérito realizado dois anos depois daquele evento, vários párocos referem o atraso na reconstrução das igrejas paroquiais e habitações mais atingidas, bem como das dificuldades por que passavam os seus paroquianos desde aquela data.
Embora Torres Vedras não tenha sofrido o que sofreram outras localidades do país, com destaque para o que sucedeu em Lisboa, este trágico acontecimento ficou bem marcado no inconsciente colectivo de gerações de torrienses.

Fontes : Cópia do manuscrito do Padre António Duarte, existente nos registos paroquiais de A-Dos-Cunhados original de 1756, cópia de 1908 ; Dicionário Geográfico memórias Paroquiais de 1758, depositadas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

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