terça-feira, 25 de julho de 2017

Há 190 anos: em 25 de Julho 1827 foi inaugurado o “Hospital Real dos Inválidos Militares de Runa”

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 Foi em 18 de Junho de 1792 que a princesa D. Maria Francisca Benedita, filha de D. José, irmã da rainha D. Maria I, viúva do principe D. José, seu sobrinho, mandou iniciar construção do “Hospital Real” de Runa, ordem confirmada por Decreto de 25 de Julho de 1802 e por Alvará de 27 de Julho desse mesmo ano (1). Com essa finalidade aquela princesa comprou a chamada Quinta de Alcobaça, em 11 de Agosto de 1790, para além de outras propriedades próximas, incluindo a Quinta de S.Miguel da Enxara do Bispo, tudo pelo preço de “40 contos de réis”.
 “A construção do edifício só veio a iniciar-se, porém, em 1803, participando nela mais de trezentos operários. Em 1807, quando a família real emigrou para o Brasil, já grande parte do edifício se encontrava erguida” (2) . Mesmo distante, a princesa continuou a enviar regularmente “do Rio de Janeiro repetidas vezes avultadas sommas em dinheiro” (3). Quando finalmente regressou ao reino, em 1821, deu ordens para que a obra fosse apressada e concluída, o que aconteceu no dia 25 de Julho de 1827, por ocasião do seu 81º aniversário.

 A descrição desse dia mereceu uma ampla “reportagem” na Gazeta de Lisboa nº 199 de 23 de Agosto de 1827; “(…) Com a maior satisfação annunciamos aos bravos Defensores da Patria, e a todos os Portuguezes amigos da Gloria Nacional, que no dia 25 de Julho forão recebidos no Real Asylo dos Invalidos, mandado edificar junto ao Lugar de Runa, e magnificamente dotado por S. A. R. a Serenissima Princeza D. Maria Francisca Benedicta, os primeiros Militares, que no Serviço da Patria adquirírão enfermidades porque forão julgados em estado de lhes aproveitar o beneficio deste tão piedoso quão patriótico Estabelecimento, do qual Portugal carecia, e que hoje deve unicamente á generosidade, assiduos disvélos, e heroicas virtudes de huma Princeza, que o Ceo conserva para exemplo de seus iguaes, e consolação dos Portugueses. “A’s onze horas e meia da manhã do dia 25 de Julho de 1827, dirigio-se á 1greja do Real Asylo dos invalidos S. A. R. a Serenissima Senhora D. Maria Francisca Benedicta, viuva do nunca assás chorado Principe do Brazil, D. José, tendo a honra de acompanhar S. A.R. os Excellentissimos Mordomo Mór, e Viadores da mesma Senhora, diversas pessoas da primeira Nobreza, o Coronel Governador do Asylo e seus Ajudantes, o Corregedor, Provedor da Comarca, e outros Magistrados, bem como as Pessoas mais distinctas tanto no estado Ecclesiastico como Secular da mesma, Celebrada huma Solemne Missa, a que assistírão, em uniforme, e lugar distincto, os Militares Invalidos, e recitada huma eloquente e análoga Oração, pelo Prégador Regio o muito R. P. M. Fr. João de Santa Anna; passou S. A. R. á Sala destinada para refeitorio dos Invalidos. “No topo desta Sala se achava preparada para S. A. R. huma cadeira, a que servião de ornato diferentes troféos militares, entre os quaes se distinguião duas bandeiras, nas quaes os fieis e cançados defensores do Estado podião ler em torno do Escudo Real, a nobre apóstrofe, que outr’ora dirigia ao seu Rei hom Poeta Soldado: E Julgareis qual he mais excellente;Se ser do mundo Rei, se de tal Gente. “Tanto que S. A. R. occupou este assento, Ordenou,que os Invalidos fossem introduzidos na Sala, e acolheo a cada hum delles singularmente, com aquella carinhosa affabilidade, que só pode gerar a solida beneficencia, que inspirára a Sua Alteza Real a primeira idéa desta fundação, e de cuja expressão só podem formar exacta idéa, aquelles que tiverão a satisfação de presencealla, e de ouvir da bocca de S. A. R. as seguintes palavras, dirigidas áquelles para quem preparára hum tão honroso descanço : “» Estimo ter podido concluir o Asylo, que mandei construir para descançardes dos vossos honrosos trabalhos; emrecompensa só vos peço a Paz e o Temor de Deos.» “Tendo S. A. R. mandado sentar os Militares Invalidos, e servido hum sumptuoso banquete, levantou-se S. A. R.,e acompanhada pelo seu Mordomo Mór, e Viadores, Dignou-se servir os mutilados, mas não, vencidos Defensores da Patria, e a cada hum delles dirigio Esta Augusta Virtuosa Princeza palavras de consolação, que fizeram derramar lagritnas de enternecimento e gratidão, não só áquelles a quem S. A. R. as dirigia, mas ao grande numero de espectadores de todas as classes, que por permissão sua havião sido admittidos na Sala. “Repetidos vivas, nascidos do enthusiasmo da gratidão, e do respeito, que inspira a verdadeira Magnanimidade,e a solida Virtude, resoárão em toda a Sala quando S.A. R. se despedio dos seus novos hospedes. “Este bello dia em que completou oitenta e hum annos a Augusta Fundadora do Real Asylo destinado aos Defensores da Patria, foi terminado por hum solemne Te Deum, ao qual S. A. R. assistio com aquella efusão de Piedade, de quem tão eminentemente sabe alliar as virtudes Christãs cou hurn inalteravel e esclarecido amor dos Povos,que Seus Augustos Antepassados Governárão. “Não só dos lugares vizinhos, mas de outros mui distantes, concorreo innumeravel Povo a presencear esta solemnidade verdadeiramente Nacional. Forão todos os concorrentes agazalhados e servidos, e soccorridos os necessitados com esmolas abundantes; folgando todos de verneste numeroso concurso reinar a mais perfeita tranquillidade, e a mais imperturbavel ordem; apezar de não apparecer em armas nem ainda huma Guarda de honra (…)”. Em vésperas daquela solenidade escreveu Roque Ferreira Lobo um panegírico em honra da princesa. (4).
 
 Foi primeiro administrador do “Hospital” o Brigadeiro Luis Pereira Miranda Palha, autor da primeira monografia escrita sobre aquele estabelecimento (5). Até ao seu falecimento, dois anos depois, a princesa aí voltou por várias vezes. Sousa Escrivanis, na sua monografia sobre o “Real Asylo” de Runa inclui uma curiosa lista com o nome das pessoas que nos lugares de Runa, Penedo, Zibreira e Matacães conheceram a princesa, parte delas tendo trabalhado “na  construção do asylo (6) A princesa, além de ter deixado em testamento ao “Asilo” vários bens pessoais (7), declarou este estabelecimento “seu universal herdeiro, passando então a administração das rendas para o Conselho de Administração, o qual, bem como todo o Estabelecimento, é hoje [1859] governado pelo Ministério da Guerra”(8).

 O edifício é de estilo neoclássico e foi responsável pela sua construção o arquitecto José da Costa e Silva. “O edifício tem 450 palmos de frente com 25 janellas: o seu fundo é de 280 palmos com 13 janellas: tem 4 faces regulares e três andares, além das àguas-furtadas, nas quaes, somente, se poderiam acomodar 300 pessoas” (9). Integrando o edifício destaca-se a sua original capela: “Ao centro do edifício, a notável entrada para a igreja, formando peristilo, é de uma arquitectura austera e nobre. O templo tem uma curta nave ou corpo e um grande transepto em que os topos são rematados em semicírculo. O conjunto é dominado por uma cúpula. É inegável que o revestimento de mármore dá certa riqueza ao interior, mas o ambiente é frio e o altar-mor, colocado ao centro, é pesado e fúnebre. De notar, contudo, os nichos com esculturas de mármore de Carrara ao estilo neoclássico (...)” (10).
 Madeira Torres refere que  os mármores usados na capela foram extraídos das “pedreiras descobertas nos logares de Figueiredo, e Furadoiro” (11).. Contudo, os anotadores de Madeira Torres, com base em apontamentos que lhe foram facultados por José Ribeiro d’Almeida, comandante daquele estabelecimento à época (1861), desmentem aquela origem dos mármores, que tiveram, sim, origem, “mas de outros mais existentes nas imediações do mesmo Azylo”,  acrescentando que os de cor preta foram extraídos das pedreiras de “Pêro-Negro ao pé da Çapataria” (12). Pertence também a esta igreja uma alta e valiosa custódia de prata dourada cravejada de pedras preciosas, fabricada de acordo com desenho elaborado pela própria princesa. Essa valiosa e original custódio pode ser vista no museu existente no edifício, que inclui, entre muitas outras peças interessantes “três tábuas portuguesas da primeira metade do século XVI” [escola de Gregório Lopes?]”representando São Luís, rei de França, S. João Baptista e S. Jerónimo, S. Bento e santo Ambrósio, e uma tela representando Santo António e o Menino, assinada  por Vieira Lusitano “(13). Durante a década de 50 do século XIX o espaço onde se encontra o edifício foi alvo de diversas obras de beneficiação (14). A encerrar, recomendamos, após uma visita ao lugar, ao seu valioso museu e aos seus jardins, fazendo  nossas as palavras de Alexandre Herculano que, realçando o pitoresco da localização do edifício, sugeria “formosos passeios nos arredores”, espairecendo “pelas cercanias do hospital” (15). Venerando Aspra de Matos    (1)   A melhor e mais actualizada biografia da princesa pode ser lida em :BRAGA, Paulo Drumond, A Princesa na Sombra – D. Maria Francisca Benedita (1746-1829), Colecção H11, ed. Colibri/CMTV, 2007;
(2)   Lar de Veteranos Militares – Runa, ed. Serviços Sociais das Forças Armadas, Lx. 1970;(3)   Anotadores de MADEIRA TORRES, Manuel Agostinho, Descripçaõ Historica da villa e termo de Torres Vedras, 2ª edição, Imprensa da Universidade, Coimbra 1862,  pág.68;
(4)   LOBO, Roque Ferreira, Panegírico em honra da Sereníssima Princesa do Brasil e Senhora Dona Maria Francisca Benedita pela sua fundação de um Hospital para Militares Inválidos, na sua Quinta do lugar de Runa, termo da Villa de Torres Vedras, Regia Typ. Silvianna, Lisboa, 1826;
(5)   PALHA, Fernando Luiz Pereira de Miranda, Breve narração acerca do Real Asylo de Inválidos Militares estabelecidos em Runa, Typ. da Sociedade de propaganda dos  Conhecimentos Úteis, Lisboa 1842;
(6)   ESCRIVANIS, Augusto Carlos de Souza, Descripção do Real Asylo de Inválidos Militares em Runa (…), Lisboa, 1882;
(7)   Leia-se: LÁZARO, Alice, O Testamento da Princesa do Brasil D. Maria Benedita (1746-1829), ed. Tribuna da História, Lisboa 2008;
(8)   (Anotadores, MADEIRA TORRES, ob.cit., pág.69.
(9)   HERCULANO, Alexandre, “O Hospital Militar de Runa”, in O Panorama, nº72, Setembro 15, 1838, texto transcrito em CUSTÓDIO, Dr. Jorge Raimundo, Hospital Militar de Runa, ed. CMTV/ADDPC de T. Vedras, 1982;
(10)                      Monumentos e Edifícios Notáveis do Distrito de Lisboa, Vol IV, pp. 34-35, 1963;
(11)                       MADEIRA TORRES, Manuel Agostinho, Descripção Histórica da villa e Termo de Torres-Vedras, [1819], 2ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1861, pág.67;(12)                      Anotadores, MADEIRA TORRES, ob.cit., pág.68.(13)                      Monumentos e Edifícios Notáveis do Distrito de Lisboa, Vol IV, pp. 34-35, 1963;
(14)                      Ver lista em:Anotadores, MADEIRA TORRES, ob.cit., pág.71;(15)                      HERCULANO, ob. Cit.
(Uma versão resumida deste texto foi publicada nas páginas do jornal Badaladas, na secção Vedrografias de 21 de Julho de 2017)   

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Torres Vedras Há Cem Anos: 1917 (1)


Se é hoje pacifica a idéia, entre historiadores, de que a 1ª Guerra marcou uma profunda ruptura com uma realidade herdada do século XIX, chegando mesmo a falar-se num “curto século XX” balizado entre essa Guerra e o fim da União Soviética em 1991, não é menos verdade que o ano de 1917 foi, de todos os anos da Guerra, o “ano de todas das decisões” ou mesmo, “o ano que mudou o mundo” (2).

Se a guerra foi o tema dominante em 1917, tendo conhecido novos e decisivos desenvolvimentos, como a revolução Russa, que desestabilizou a frente leste, ou a entrada dos Estados Unidos na guerra, nesse mesmo ano ocorreram grande e pequenos acontecimentos premonitórios para os cem anos seguintes.


Data desse ano a declaração de Corfu, que levaria à formação da Jugoslávia, a Declaração de Balfour, que preconizava a criação de um Estado Judeu da Palestina e definia a organização do Médio Oriente, o tratado de Brest-Litovsky, que começou a ser negociado no final do ano entre a Alemanha e a Rússia e que definiu a geografia futura do leste da Europa, sem esquecer o facto, que então passou quase despercebido, da formação, no parlamento italiano, do grupo “Fascio Parlamentare di Difesa Nazional”, que originou o movimento fascista, no mesmo ano em que Benito Mussolini debitava as suas ideias no Il Popolo d’Italia.

Mas, “cereja no topo desse ano”, um outro acontecimento desenrolou-se ao longo de todo o ano, com consequências imediatas no rumo da guerra, mas que marcaria todo o século. Referimo-nos à Revolução Russa, iniciada em Fevereiro e que culminaria na Revolução de “Outubro” (em Novembro).



Mas, para Portugal, esse foi igualmente um ano marcante, pois foi o ano em que, de facto, as tropas portuguesas começaram a combater na frente ocidental, onde chegaram em 2 de Fevereiro.



A participação de Portugal na frente europeia provocou grandes problemas sociais e económicos, gerando grande agitação social e política, que levou ao fim do governo de “União Sagrada”, com o regresso de Afonso Costa à liderança do governo e que culminaria, em Dezembro, como o golpe de Sidónio Pais.



O desespero social da população e as suas dificuldades crescentes não terão sido estranhas às aparições de Fátima que tiveram lugar entre Maio e Outubro desse ano.


Em Torres Vedras a guerra foi o tema dominante, quer pelas notícias divulgadas na imprensa local, quer pelo facto de muitos jovens torrienses terem sido mobilizados para a frente ocidental.

O jornal local “A Vinha de Torres Vedras” , “ no patriótico intuito de fornecer notícias do torrão natal àqueles que em terra de França estão honrando o nome português” resolveu colaborar no esforço de guerra enviando  “gratuitamente a vários conterrâneos nossos”, mobilizados para guerra, exemplares da sua edição semanal (3).


Para além das muitas notícias que a imprensa local dedicava ao conflito, por cá realizavam-se muitas iniciativas para apoiar o esforço de guerra.


Foi nesse sentido que foi criada uma “sub-comissão” local da “Cruzada das Mulheres Portuguesas” (4) que organizou várias iniciativas para angariar fundos para auxiliar as famílias dos soldados mobilizados, de entre as quais se destacou uma “Festa da Flor”, realizada no Domingo 1 de Julho.

A “Cruzada da Mulher Portuguesa” foi criada por Ana de Castro Osório nesse ano, tendo como principal objectivo apoiar a criação de orfanatos para os filhos dos soldados falecidos, mas também apoiar as vítimas da guerra, formar enfermeiras de guerra, recuperar mutilados e  fomentar “madrinhas de guerra”. Esta organização é um exemplo da crescente emancipação feminina.


Em Torres Vedras essa organização era presidida pela “professora oficial srª D. Emília de Castro Garcia” (5).


Um dos temas mais abordado, não só na imprensa local, mas também na documentação oficial da câmara e do administrador do concelho, relacionou-se com a produção, distribuição, racionamento e preço dos produtos alimentares, aquilo que na época ficou conhecido pela “crise das subsistências” (6), principal reflexo da situação de guerra junto do dia-a-dia das populações.


No concelho registaram-se vários casos, ao longo de 1917, relacionados com a “exportação”, muitas vezes ilegal, de produtos agrícolas, a produção do pão, alimento básico das populações, por causa do seu preço elevado, da má qualidade do fabrico ou da sua falta, ou ainda vários casos de açambarcamento.


Essa situação mereceu várias queixas na imprensa local, que denunciava que, de “há tempos para cá”, o preço do pão e o de outros géneros subir “assustadoramente” e de, apesar das promessas das autoridades em punir severamente quem não pesasse correctamente o pão, este ter rapidamente voltado a aparecer “mal cozido e com falta de peso” (7).


Problemas como esse foram factores que provocaram alguma agitação social, registando-se várias notícias que dão conta de várias reclamações por parte de sectores da população junto das autoridades locais contra a falta de géneros, o açambarcamento ou a má qualidade do pão fabricado.


Também em 27 de Fevereiro há registo de um tipo novo, neste concelho, de agitação, uma  greve dos operários da oficina de  tanoaria da “viúva de António da Silva”, pelo aumento de salário (8). Por intervenção das autoridades e após negociações, todos foram trabalhar, menos um operário que acabou por ser despedido.


A questão salarial deveu-se ao constante aumento do custo de vida, provocado pela situação de guerra, que se sentia de forma mais grave entre o escasso operariado local, mais dependente do salário do que a maior parte da população rural que, embora com rendimentos mais baixos, tinha a possibilidade de se socorrer de um economia de auto subsistência que caracterizava o mundo rural do concelho.


As crescentes dificuldades e carências alimentares da população mais pobre terão estado na origem da constituição, em Abril, de uma comissão de residentes na vila “para levar a efeito a organização de uma sopa para os pobres”(9).


Mas não foram só as consequências económicas e socias da guerra a marcar os acontecimentos em Torres Vedras nesse ano de 1917.


Logo em Janeiro regista-se uma alteração na recém criada companhia que fornecia luz electrica na vila, inaugurada em 1912, quando José Augusto Lopes, “conceituado comandante do Vapor “Cazeng”, e o filho, José Augusto Lopes Júnior, “proprietário e administrador da Casa Fivelim”, compraram as acções da Sociedade Progresso Industrial, Cabral e Cª, concessionária daquele serviço e passaram a deter a administração daquela empresa (10).



Talvez reflectindo essa mudança, a imprensa local anunciou que a partir de 7 de Fevereiro os estabelecimentos da vila passavam a encerrar à 19 horas “em virtude de Torres Vedras ser iluminada a electricidade”(11).


Em Abril registou-se grande agitação, a dominar uma polémica que encheu as páginas da imprensa local, por causa da decisão do executivo camarário, dominado pelo PRP, de  mandar cortar 240  árvores junto ao actual Choupal, atitude que quase provocou um levantamento popular. Em reunião de 10 Agosto, o senado da câmara, face às pressões populares, decidiu anular aquela decisão.


Não é noticiado nas páginas da imprensa local, mas sabe-se que foi nesse ano, no dia 1º de Maio, que foi fundado o hoje centenário Sport União Torrense, nascido da fusão de dois clubes de futebol fundados em 1913, o do Grémio Artístico e Comercial e o Grupo Sportivo da Tuna.


No dia 2 de Maio registaram-se grande inundações, provocadas por uma violenta trovoada na tarde dessa Quarta-Feira, atingindo a àgua, em certas zonas da vila, os 2 metros de altura, alagando casas comerciais e casas particulares. A Rua Paiva de Andrada tornou-se num “verdadeiro rio”. Nas zonas rurais a trovoada destrui “grande parte dos cereais, do trigo, das favas, do vinho e sementeiras de batata, milho e feijão”, agravando a situação económica do concelho (12).


A meio do ano, no dia 11 de Junho, conheceu a luz do dia mais um título da imprensa local, o jornal  “Ecos de Torres”, “republicano independente”, mais tarde, após o sidonismo, orgão do novo Partido Reconstituinte (criado por cisão no PRP)), juntando-se ao outro título que então se editava, “A Vinha de Torres Vedras”.

A vida política local ficou também marcada por dois acontecimentos.

Um, foi a formação, em Abril, do Núcleo de Propaganda Socialista de Torres Vedras, “acolhido com viva satisfação pela classe operária” (13), ficando as adesões a cargo de José Augusto Correia Lemos, na Rua Mouzinho da Albuquerque, nº 32, r/c. A inauguração desse Núcleo ficou marcado para 1 de Setembro, numa “sessão de propaganda, numa colectividade”, estando programada a actuação de um “sexteto” de Lisboa que “executará o hino operário “A Internacional” (14).

O outro acontecimento político importante foi o da realização das eleições administrativas para as juntas de freguesia e para a Câmara que se realizaram em 4 de Novembro de 1917.

Esse acto eleitoral foi bastante disputado, embora o peso dos eleitores em relação à população do concelho fosse bastante diminuto, devido ao discutível sistema eleitoral republicano, de tipo capacitário, que exclui da decisão política os mais de 75% de analfabetos do concelho.

Concorreram duas listas, uma do PRP, que controlava a Câmara desde 1910, e outra, apelidada de “Lista do Concelho”, liderada por Aleixo Cezário de Sousa Ferreira, reunindo à sua volta a participação e apoio de monárquicos, “evolucionistas”, “unionistas” e alguns “democráticos” descontentes com o PRP.

A “Lista” teve o apoio dos dois jornais locais. Por sua vez, o recém criado Núcleo Socialista não apela ao voto numa das candidaturas, apenas apelando a que ninguém se abstenha.

A “Lista do Concelho” venceu as eleições, mas acabou por não tomar posse, devido ao golpe de Sidónio Pais no mês seguinte (15).

Para além das conjunturas, havia um outro ritmo que marcava o desenrolar anual da vida dos seus habitantes nessa época.

O ano começou com a realização da tradicional feira de S. Vicente, que se realizava na “Várzea do Jardim ” em Janeiro.

Fevereiro era o mês do Carnaval, que nesse ano de 1917 decorreu entre 18 e 20 de Fevereiro, embora as ruas fossem preteridas aos “salões” das colectividades locais, como o “Casino”, a “Tuna” ou o “Grémio”, que anunciavam “comédias”, “récitas”, “cançonetas”, “fados”, para além dos bailes (16).

Anunciada em 1918, não encontramos qualquer referência à realização, em 1917, da tradicional Procissão dos Passos, ainda sujeita às limitações impostas pelo regime republicano ao culto público.

Em Abril, como costumava referir a imprensa local anualmente, anunciava-se a “chegada das andorinhas” à vila (17).

O primeiro de Maio foi comemorado com a actuação da Filarmónica Torrenese no coreto do Largo da Graça que, depois de executar algumas peças do seu reportório, percorreu as ruas “tocando o Hino 1º de Maio” (18).



A mesma banda iniciou a sua época de concertos regulares em 17 de Maio, mesmo dia em que se iniciou a temporada de touradas na Praça de Touros então existente na vila.

Nas Termas dos Cucos a época balnear iniciou-se em 1 de Junho, com a abertura do Hotel ali localizado.

A noite de Santo António era comemorada, como era tradição, no Varatojo e o Grémio anunciava para essa noite um baile na sua sede, com a promessa de fogueiras no seu quintal.

A 29 teve lugar a centenária Feira de S.Pedro e, no mês seguinte, a mais importante feira da zona rural do concelho, a Feira do Mato no Turcifal, seguindo-se, em 19 de Agosto a Feira de S.Vicente, onde se vendiam “alfaias agrícolas, gado, fruta e quinquilharias”(19).

A ápoca de praia em Santa Cruz só se iniciava na segunda metade de Agosto, prolongando-se até meados de Outubro. Nesta ano de 1917 teve início em 27 de Agosto com a inauguração, no “Club-Miramar” de uma sala de bilhar, com bufete.

Depois das vindimas, durante o mês de Setembro, o ano encerraria com os bailes de passagem de ano nas colectividade locais.

A Guerra, as dificuldades económicas provocadas por ela  e os acontecimentos desse ano eram o tema de conversa nas muitas tabernas do concelho, frequentadas pelo “povo”,  ou nos “modernos” espaço dos “cafés”, em expansão no centro urbano e o principal ponto de encontro das elites locais.


Seguindo a publicidade publicada na imprensa desse ano existiam então 4 espaços desses: “A Brazileira”, fundada dois anos antes e localizada na Rua Serpa Pinto;a mais antiga “Havaneza” no Largo da República, o único destes espaços ainda hoje existente; a “confeitaria e Pastelaria Chic” na Rua Heliodoro Salgado, ao lado da “Sapataria Trigueiros”; e a “Pastelaria Confiança”, na Rua Dias Neiva.

Quase todas tinham serviço de mercearia. A Brazileira de Luis Duarte Pinto, vendia doces, chá e café, vinhos do Porto e Madeira, champagnes, cognacs, licores, àguas minerais e cervejas nacionais e estrangeiras, além de tabacos, postais ilustrados e lotaria, Entre os bolos vendidos, destacavam-se os “deliciosos pastéis de feijão “ fabricados pela D. Maria Adelaide Rodrigues da Silva “mázinha”.

O pastel de feijão, “o legitimo”, também era uma das especialidades vendidas pela “Havaneza”, de João Guimarães Junior, onde se vendiam, para além de produtos idênticos aos vendidos noutros estabelecimentos do género, conservas nacionais e estrangeiras, chocolates e manteigas nacionais, recebendo ainda encomendas de vários tipos de doces, como pudins, trouxas de ovos e “lampreias”.

A “Pastelaria Chic” de Francisco Môra Rodrigues, além de vender as bebidas alcoólicas anunciadas por aqueles concorrentes, também anunciava a venda de refrescos. Confeccionava, para além do pastel de feijão, “bolos secos e pastelaria à francesa, pastelaria inglesa”, entre outros.

A Pastelaria Confiança, gerida por Alvaro Simões, fabricava igualmente o pastel de feijão, vendia várias bebidas e doces idênticos aos referidos nos outros estabelecimentos, vendendo “leite a copo” que podia ser mandado ao domicilio a quem o solicitasse, incluindo também a venda de gelados, rebuçados de ovos, pudins, queijinhos, pão de ló e bolo de festa (20).

Entre as notícias da guerra, o desafio quotidiano de enfrentar as suas consequências económicas e socias e continuar a viver entre os ritmos da tradição e as novidades dos novos tempos, este é um retrato possível de Torres Vedras de há cem anos, em 1917.



(1)    Resumo da nossa comunicação apresentada em 3 de Junho último na conferência “1917 – O Ano de Todas as decisões”, integrada no ciclo de palestras Comemorativas do Centenário da 1ª Guerra Mundial, organizadas pelo núcleo torriense da Liga dos Combatentes, como o apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras;Um versão mais sintética deste texto foi publicada na secção Vedrografias do jornal "Badaladas" com o título "Torres Vedras em 1917", em 30 de Junho de 2017;
(2)    Angelo d’Orsi, 1917 – o Ano que mudou o mundo, Bertrand Editora, 2017;
(3)    In “A Vinha de Torres Vedras” (VTV) de 5/7/1917;
(4)    In VTV de 15/2/1917;
(5)    in VTV  de 7/6/1917;
(6)    Sobre este problema, podem ler a minha comunicação “A Questão das “subsistências” em Torres Vedras (1916-1918)” , publicada em “História da Alimentação, Turres Veteras IX, Lisboa Colibri, 2007, pp.181-214;
(7)    In VTV de 10 /5/ 1917;
(8)    In VTV de 2 /3/ 1917;
(9)    In VTV de 12/4/1917;
(10)                       In VTV de 25/1/1917;
(11)                       In VTV de 8/2/1917;
(12)                       In VTV de 3/5/1917;
(13)                       In VTV de 5/4/1917;
(14)                       In VTV de 19/7/1917;
(15)                        Para saber mais sobre a vida política em Torres Vedras nesta época, ler “Republicanos de Torres Vedras”, ed. Colibri, 2003;
(16)                       In VTV, vários números de Fevereiro:
(17)                       In VTV de 26/4/1917;
(18)                       In VTV de 3/5/1917;
(19)                       In VTV de 16/8/1917;
(20)                        Informações recolhidas a partir da publicidade publicada no jornal A Vinha de Torres Vedras, ao longo de 1917.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

25 de Maio de 1887 : inauguração do serviço de passageiros de comboio de T.Vedras para Lisboa

No dia 25 de Maio de 1887 inaugurou-se o serviço regular de passageiros por caminho-de-ferro, ligando Lisboa e Torres Vedras, facto que representou uma enorme revolução na vivência dos torrienses.
Dias antes, no dia 9 de Maio desse ano, tinha tido início o serviço regular de transporte de mercadorias.
Embora ainda fosse preciso esperar pela inauguração das ligações para norte para acabar a obra, que tiveram lugar, respectivamente, em 1 de Agosto desse ano, com o início das ligações regulares para Leiria, passando por Caldas da Rainha, e em 17 de Julho de 1888, com a inauguração da ligação à Figueira da Foz, aquelas duas datas colocaram Torres Vedras na senda do mais moderno progresso do século XIX.
Foi no dia 12 de Janeiro de 1880, e depois do fracasso do Larmanjat, que foi oficialmente aprovada a construção de um caminho de ferro que ligando Torres Vedras a Lisboa, trabalhos que conheceram um ponto alto nos anos de 1885 e 1886, com a construção de três túneis a sul da vila, que antecediam a entrada no vasto aterro onde se contrui a estação, para além da construção de várias pontes metálicas, duas a sul dos túneis e duas a norte da estação.

O primeiro túnel perfurado foi o "do Cabaço", o do meio, junto à azenha do mesmo nome, já ligado de lado a lado em Junho de 1885.
Mais complicada foi a perfuração do túnel da Certã, o mais próximo da estação, tendo custado a morte de um trabalhador espanhol, em 18 de Agosto de 1885, quando este entrou no túnel inadvertidamente, antes de terem explodido todos os tiros necessários à sua abertura, registando-se ainda ferimentos noutros trabalhadores. Finalmente, a 2 de Outubro de 1885, após dois meses de trabalho, ficou concluída a obra.
A imprensa local da época registou esse acontecimento: "Quando apareceu a luz do lado do Cabeço do Cabrito, subiram ao ar muitos foguetes. Foram depois embandeiradas as duas entradas do túnel e as vagonetas, e os dignos empreiteiros fizeram distribuir extraordinariamente pelos capatazes e operários uma boa quantia de dinheiro, dando-lhes depois folga nesse dia. O túnel tem sido percorrido de um a outro lado por muitas pessoas desta vila." (1).
O túnel mais extenso e distante de Torres Vedras, o "da Boiaca", com 160 metros, ficou perfurado em 5 de Outubro de 1885, completando-se assim essa importante obra de engenharia, dirigida pelo técnico francês Abel Marty, que foi assassinado em 26 de Abril de 1886, sem ter assistido à chegada da primeira locomotiva a Torres Vedras.
Quando da construção da estação foi necessário cortar o viaduto que transportava as águas para a vila, até ao Chafariz dos Canos.
O desaterro necessário à construção da estação do caminho de ferro e aos seus serviços transformaram imenso toda a paisagem a leste da vila, numa extensão de, aproximadamente, dois quilómetros, descrita do seguinte modo pela imprensa local:
"A situação da estação é formosissima. Os trens que desembocarem do tunel penetrarão numa deliciosa planície fechada à direita pelas àrvores que bordam o Sizandro, e ao largo por colinas cobertas de vinhedo; em frente, destaca-se a vila, o castelo e o elegante chalet do falecido João Pinto, hoje propriedade do sr. António Maria de Carvalho.
"Pena é que este quadro ridente seja empanado do lado contrário pelo cemitério - uma construção informe, antiga, com sua capela de gosto arquitectonico pesado e casas de mal "(!?)" adjacentes, um verdadeiro ponto negro em tantas belezas" (2).
A construção do troço da linha para a Figueira, cujas obras se iniciaram em finais de Outubro de 1885, provocou igualmente  alterações na configuração paisagística a norte da vila, com o corte de parte da colina do forte da Forca, cuja terra seria aproveitada "para o alçamento da linha pela varzea do Sizandro até às Covas |onde se localiza a estação| - um aterro respeitável, de alguns metros de altura"(3).
Ainda antes de se iniciar o transporte regular de mercadorias e de passageiros, teve lugar uma viagem experimental, com a chegada da primeira locomotiva a Torres Vedras, em 30 de Dezembro de 1886.
Nesta ocasião e data foi lançado o  número único do jornal "Lisboa - Torres Vedras", editado pela "Typographia Torreense" de Manuel do Nascimento Aspra, "destinado a comemmorar a entrada da primeira locomotiva na estação desta villa"(4), onde se fez eco de muitas das esperanças suscitadas a nível local com a chegada do comboio.
A. de Sottomayor, um dos colaboradores dessa publicação comemorativa, anunciava a chegada "a esta rica povoação" da "guarda avançada do progresso", enquanto que J. G. ( João Gualberto ?)de Barros e Cunha acrescentava que, a "partir de hoje Torres Vedras fica sendo um bairro de Lisboa, um suburbio de Madrid, quasi um arrabalde de Paris"
Mais realista, António Batalha Reis reflectia sobre algumas preocupações e vantagens concretas para o concelho deste novo melhoramento:
"(...) Entrâmos pois a valer na intimidade da civilisação actual, e vamos participar, em breve, das enormes vantagens que hoje offerecem os seus gigantescos meios de actividade e de acção!
"Mas para que este poderoso melhoramento não seja esteril, para que lhe possamos colher os sazonados fructos, e pagar honradamente a divida que hoje contrahimos com os proprietarios da linha, é necessario, é indispensavel que tenhamos vida propria, e que sintamos em nós forças bastantes para utilisar por inteiro a riqueza que tão confiadamente nos visita
"Ora a vida d'este concelho, a sua unica riqueza séria (...) assenta (...) nos bem cultivados e excepcionaes vinhedos, que descem das altas cumiadas das suas multiplices collinas até as plainas veigas, que, por toda a parte, marginam as abundantes linhas de agua que rasgam a superficie.
"(...) Lembrem-se que vae acabar o tempo, para este concelho, em que os seus erros e desleixos desappareciam esquecidos ou annulados pelo seu proprio isolamento.
"O seu hontem morre com a carreta que pausada e caprichosamente conduz os generos, e com a diligencia - de maçadora recordação- que arrasta ainda os passeiros, fazendo perder a estes, com a paciencia, a noção das noticias de que são portadores.
"O dia de hoje assignala na sua historia uma transformação economica de subido alcance, e mal iremos todos senão correspondermos a ella como devemos - porque, então, se crusarmos os braços, preparemos seguramente um amanhã de miseria e de fome, e podemos ter a certeza que a nossa innacção converterá em simples e silenciosos apeadeiros, as ruidosas, e, por certo, lucrativas estações, que hoje festivas e alegres ladeiam a linha ferrea a pequenos intervallos, e que não serão de mais, agora, para colher a enorme quantidade de cascos, cheios do nervoso torreano, que espera impaciente novos mercados e abundante clientella" (5).
 Principalmente ao longo dos primeiros anos da chegada do caminho de ferro a T. Vedras, a imprensa local continuou a reflectir sobre os efeitos dessa novo meio de transporte:
"O estabelecimento da Linha-férrea, que decerto modo nos avisinha muito mais da primeira cidade do paiz, modificando as várias condições materiais e sociais em que até hoje temos subsistido, impõe  ao nosso município um maior numero de obrigações, que sem grave desdouro não poderão deixar de se cumprir. É necessário seguirmos abertamente a vereda ampla do progresso, para que a locomotiva nos está chamando com o seu silvo agudo e penetrante.
"Torres Vedras tem de se tornar uma localidade limpa, garrida, sabendo attrahir os seus prováveis visitadores, não lhes apresentando o espectáculo triste de umas ruas mal calçadas, outras mal illuminadas, impróprias finalmente, de uma terra com a importância que a nossa chegara a ter.(...).
"À transformação económica que decerto virá influir salutarmente sobre a nossa povoação, é urgente corresponder com a transformação material, que nos ponha à altura de uma terra tão importante como a nossa, agrícola e comercialmente falando (...)" (6). 
No primeiro comboio que iniciou o transporte regular de mercadorias em 9 de Maio  de 1887  foram transportados 34 cascos e 150 barris de quarto e de quinto com vinho. Esta remessa foi despachada pela casa Santos Bernardes & Filhos” (7)
Mas o momento chave desse imenso melhoramento foi o acima referido dia 25 de Maio de 1887, com a viagem inaugural do serviço de passageiros, momento descrito pela imprensa local:
"Era immenso o enthusiasmo que desde a tarde de terça feira animava os moradores d'esta villa, quando souberam que iam definitivamente estreitar-se as suas relações com a capital (...) grande a animação com que era aguardado o primeiro comboio de Lisboa na quarta 25, dia esplendido, de bello sol, que, batendo em cheio nos vinhedos que aformoseiam as encostas que se desfructam do vasto e desafogado recinto da estação(...).
"Pouco depois das nove horas e meia da manhã começou a afluir à gare grande numero de pessoas das diversas classes socias. Às 10 e 40 surgiu do tunnel da Certã a machina nº 127, comboiando quatro carruagens e dois  wagonetes.
"N'esta ocasião subiram ao ar muitos foguetes, e a philarmonica Torreense tocou o hynno da Carta e seguidamente outras peças do seu reportório, dando assim ao acto um carácter de festa inteiramente popular, nem por isso de menos valor das outras.
"No comboio chegaram cerca de 100 pessoas, satisfeitas com os panoramas que gosaram em toda a linha (...)
"O primeiro comboio, que de Torres saiu às 6 horas e 15 minutos da manhã, conduziu limitado numero de passageiros para Lisboa. Iam n'elle alguns comerciantes da localidade, aproveitando já o enorme benefício que o progresso lhes facilita." (8) .
As enormes expectativas criadas com a chegada do caminho de ferro a Torres Vedras, provocaram algumas decepções nos primeiros tempos, não correspondendo os serviços prestados pela companhia ao que se esperava.
Logo a 25 de junho de 1887 o periódico local "Voz de Torres Vedras" anotava com alguma amargura que, embora tivesse levado "tempo immenso a construir a decantada linha de Torres" esta tinha sido mal construída, cheia "de curvas, com os apeadeiros feitos de pedra solta e terra, algumas trincheiras promettendo querer desabar, a linha é um perigo permanente, não sendo já pequeno o numero de quedas e outros desastres registados pela imprensa. Os wagons são por seu turno o peior que se podia imaginar. A companhia foi á arrecadação, procurou lá os carros que já tinham sido condemnados n'outras linhas, pintou-os, mandou-lhes dar uma demão de verniz, e impigiu-os para cá, assim como quem trata com gente despresivel, que não sabe o que é bom! Wagons tendo os tectos baixissimos, e outros defeitos, foi o que a companhia do norte poz em serviço n'esta linha, zombando do publico que escandalosamente explora...".
As críticas desse jornal não se ficavam por aqui, prosseguindo no mesmo  editorial:
"Aos olhos mesmo da população da villa está patente de uma maneira clara o desmazel-o da companhia. A frente da estação nem ao menos foi mandada asphaltar; o caminho que dá ingresso aos carros, e aos passageiros, cheio de covas, até por detraz da estação, tornou-se n'uma fabrica de quedas, que todos os numeros temos de noticiar.
"Por cima de tudo isto, que já não era pouco, a companhia formulou ainda uma tarifa de preços para as mercadorias, verdadeiramente impossivel. Quasi não vale a pena o servirmo-nos n'esta localidade da viação accelerada! Os carros dos almocreves, velhos como a descaídela do pae Adão, competem vantajosamente com a via ferrea, em que nós tanto tempo tinhamos posto as nossas esperanças. As vantagens do progresso não foram ainda postas ao nosso alcance, estão monopolisados pelos grandes senhores da companhia real, que viajam alegremente em carruagem - salão, emquanto nós se quizermos teremos de fazer uso de perfeitas gaiolas, que promettem dar comnosco...no fundo de um barranco!"
Mas nesse artigo não se responsabilizava apenas a Companhia Real pela situação descrita : "Ora a culpa do procedimento vilão da companhia, que tratou esta terra como cousa conquistada, é ainda nossa, das nossas auctoridades (...). A camâra municipal já podia ter reclamado perante o governo ácerca do serviço dos caminhos de ferro. Não o tem feito, comtudo, sem embargo dos clamores serem geraes entre todos os interessados, que são principalmente os commerciantes e os viticultores d'este concelho(...)" (9).Contudo, o forte impacto da chegada do caminho de ferro a Torres Vedras foi por demais evidente para ultrapassar as susceptibilidades e dificuldades iniciais.
Uma das primeiras consequências da chegada desse novo tipo de transporte foi a redução, em cerca de três horas, da distância anteriormente percorrida entre a vila e Lisboa, pois, em 1887, os horários previam um mínimo de 2 horas e 15 minutos e um máximo de 3 horas e 15 minutos para efectuar esse percurso.
A chegada do caminho de ferro ao concelho de Torres Vedras motivou uma maior preocupação com o estado das vias terrestres de ligação com as estações ferroviárias.
A inauguração desse meio de transporte motivou ainda o desenvolvimento de uma rede complementar de transportes, ligando vários lugares com Torres. Em 24 de Março de 1887 a companhia d "Trens de aluguer Almeida & Cunha" iniciava "uma carreira entre Torres Vedras e a Lourinhã e que se prolongará até Peniche, logo que o caminho de ferro comece a funccionar. Em todos estes pontos tenciona estabelecer succursaes de uma agência central do caminho de ferro, com sede em Torres Vedras, para receber mercadorias para Lisboa e vice-versa(...)" (10).
A chegada do comboio a Torres Vedras revelou o seu impacto sobre o movimento comercial local, como se comprova com o facto da então quase moribunda Feira de S. Pedro ter conhecido, logo no ano de 1887, pouco mais de um mês após a inauguração do serviço regular de passageiros para esta vila, uma animação nunca vista em anos anteriores, como fazia notar a imprensa local, referindo que "de a verem tão concorrida, como este ano, não se lembram os moradores mais antigos daqui" (11),  avançando a mesma notícia que nos dois primeiros comboios chegados nesse dia à vila tinham desembarcado cerca de 2000 pessoas.
Tais queixas não obstaram, apesar de tudo, que o caminho de ferro se tornasse o centro da azáfama comercial da vila tal como o mesmo jornal, pela mesma altura fazia notar, em pleno auge das vindimas :
"É extraordinario o movimento que se observa nas ruas da nossa laboriosa villa. Carros transportando para a estação de caminho de ferro cascos cheios de vinho novo; outros ainda com dornas e tinas cheias de uvas ou de mosto, impregnando de fragancias a atmosphera(...)" (12).
Também a urbanização da vila conheceu um novo fôlego e uma nova direcção, tendo por pólo a localização da estação de caminho de ferro, levando à criação dos eixos urbanos , as actuais Av.5 de Outubro e Av. Tenente Valadim, bem como de um ramal, "construido a expensas da companhia desde a estrada de Alhandra à estação" (13).
 
Finalmente, em Setembro de 1888, anunciava-se o fim das "obras da nova Avenida do Caminho de Ferro, espaçosa, bonita, e um dos melhores trabalhos que se tem feito em Torres, com relação a belleza e utilidade(...)" (14).
Em sessão camarária, realizada em 14 Março de 1889, baptizou-se a Avenida do Caminho de Ferro com  o nome de Avenida Ignacio Casal Ribeiro, uma homenagem ao deputado do círculo eleitoral de Torres Vedras, decisão comunicada ao mesmo quando este visitou a vila a 17 de Março desse ano "como premio dos esforços que s. ex.ª desenvolveu para a construcção d'ella, e como signal do respeito e do amor de todos" (15) .
Uma outra avenida seria construída, a partir da chamada "rua da cerca" e entroncando com a Avenida Casal Ribeiro (actual Av. 5 de Outubro), nas proximidades da estação e que seria baptizada, em sessão camarária de 27 de Novembro de 1890, com a denominação de Avenida Tenente Valadim "em testemunho de admiração e para prepetua memoria d'aquelle martyr da honra e da civilisação" (16) , falecido em Moçambique em Fevereiro desse ano.
A construção destas avenidas rompeu com os limites tradicionais da urbanização da vila, ainda muito marcados pelos limites da já então demolida muralha medieval e pela direcção das "portas" da vila.
Por outro lado, a própria direcção da linha férrea funcionou, tal como tinha acontecido ao longo dos tempos com o rio Sizandro, como um limite, ainda evidente nos nossos dias, à expansão  urbana para leste.
Com a inauguração definitiva do caminho de ferro, Torres Vedras e o concelho conheceram uma animação crescente e antes pouco usual,  como se pode ler na seguinte notícia:
"No domingo chegaram a esta vila mais de 100 pessoas no comboio da manhã. A maioria delas vinha visitar estes sítios, e confessava-se encantada com o panorama que se desdobra à vista desde a saída do tunel da Sapataria até Torres.
"Outro grande numero de passageiros apeiaram (sic) em Dois Portos, para daí seguirem para a Ribaldeira, onde havia a festa e arraial que anualmente se faz a Santa Catarina.
"Em Torres, de tarde, encontravam-se grupos pitorescos de visitantes, merendando entre os choupaes" (17).  
 
O aumento de forasteiros que o caminho de ferro trouxe a Torres Vedras contribuiu ainda para o crescimento do número de pessoas que procuravam cura nas terapêuticas àguas dos Cucos, localizadas  poucas centenas de metros a sudeste da estação ferroviária, estando na origem da crescente preocupação, quer por parte da imprensa local, quer por parte dos proprietários das termas, em melhorar as respectivas instalações. Esta situação  foi geradora de um dos empreendimentos urbanísticos mais importantes do final do século XIX nos arredores da vila.
O jornal "A Semana" foi um dos que mais se bateu por esse melhoramento. Em 12 de Julho de 1888 esse periódico chamava a atenção para a "grande conveniente e maior necessidade que há de construir um edifício, apropriado e decente, onde os doentes de rheumetismo gottoso possam vir receber, com commodidade e asseio, os manifestos benefícios das nossas especialissima águas dos Cucos.
"Aquillo que hoje lá existe, considerado como estabelecimento Thermal, é um péssimo documento da nossa orientação económica, que estamos apresentando aos forasteiros, deixando abandonado um precioso elemento de vida commercial de Torres Vedras (...).
"As toscas locandas estão apinhadas de gente; as pessoas que se installam pelas hospedarias da villa, quando vão tomar banho, ao sair, não teem um quarto confortável onde demorem, acontecendo que nos dias inconstantes que tem corrido sugeitam-se até apanhar chuva, na volta(..)" (18).
Esta descrição é reveladora das dificuldades de resposta da vila na hospedagem de um número crescente de forasteiros, reflexo do aumento de movimento de pessoas provocado pelo recém inaugurado caminho de ferro.
As obras que conduziram àquele espaço que hoje conhecemos como Termas dos Cucos iniciaram-se em 26 de Novembro de 1890. O novo estabelecimento termal foi aberto ao público, provisoriamente, em 11 de Julho de 1892, realizando-se a sua inauguração oficial em 15 de Maio de 1893.
A inauguração da ligação ferroviária entre Torres Vedras e Lisboa foi assim um marco fundamental para o desenvolvimento desta localidade.
(1)   Jornal de Torres Vedras, de 8 de Outubro de 1885;
(2)   Jornal de Torres Vedras, 5 de Novembro de 1885.
(3)   Jornal de Torres Vedras, 10 de Dezembro de 1885.
(4)   Actas da CMTV, Livro nº 33, sessão de 9 de Dezembro de 1886, ff.164 verso e 165.
(5)    Lisboa-Torres Vedras, nº único, 30 de Dezembro de 1886.
(6)   Voz de Torres Vedras , 19 de Fevereiro de 1887.
(7)   A Semana, 12 de Maio de 1887.
(8)   Voz de Torres Vedras, 28-5-1887.
(9)   Voz de Torres Vedras, 25 de Junho de 1887.
(10)                       Semana, de 31 de Março de 1887.
(11)               Voz de Torres Vedras, 2 de Julho de 1887.
(12)                      Voz de Torres Vedras, 13 de Outubro de 1888.
(13)                      Jornal de Torres Vedras, 4 de Novembro de 1886.
(14)                      A Semana,  de 27 de Setembro de 1888.
(15)                      Voz de Torres Vedras, 23 de Março de 1889.
(16)                      Actas da C. M. T. V. Livro nº34, sessão de 27 de Novembro de 1890,f.67.
(17)                      A Semana, 9 de Junho de 1887.
(18)                      A Semana , 12 de Julho de 1888.
(Nota: um estudo detalhado sobre a construção e o impacto do caminho-de-ferro em Torres Vedras pode ser consultado no meu livro “O Caminho de Ferro em Torres Vedras – Impacto da Sua Chegada”, ed. CMTV/Colibri, Maio de 2007;
Por sua vez, este texto serviu de base para um outro mais sintético publicado na secção Vedrografias do Jornal Badaladas no passado dia 26 de Maio de 2017).
VENERANDO ANTÓNIO ASPRA DE MATOS