terça-feira, 17 de março de 2020

Uma Breve História das Epidemias em Torres Vedras


("O Triunfo da Morte", de Piter Brueghel)

A História do impacto em Torres Vedras das epidemias conhecidas ainda está por fazer.

Embora se registem muitas epidemias na Península Ibérica desde que existem registos, isto é, desde a época romana, uma das mais antigas documentadas foi uma em 1188, mas foi a tristemente “famosa” “peste negra” uma das que deixou mais marcas na memória colectiva.

Para Carlos Guardado , em Torres Vedras o surto de peste “ter-se-ia dado entre finais de Setembro de 1348 e Janeiro de 1349” (1).

Segundo outro autor, Júlio Vieira, deve-se ao  impacto da “peste negra” na região, baseando-se na tradição, “a fuga de parte dos povos de Torres Vedras, em busca dos melhores sítios, para as fraldas da serra do Montejunto onde construíram cabanas para viverem (…) pelo que resultou a fundação da povoação chamada Cabanas de Torres” (2).

Também existe referência, num único documento , a uma peste local em 1395, fonte estudado por Ana Maria Rodrigues (3).

Não existe referência na região ao efeito da peste de Lisboa de 1438, uma das mais mortíferas .

Existe registo em Torres Vedras da chamada  “peste grande” de 1576 nos livros dos acórdãos da Câmara e no próprio processo de beatificação de Gonçalo de Lagos, a quem se atribuem alguns “milagres” junto de habitantes da vila infestados, que atingiu todo o reino a refere nesta região.

Também por aqui se sentiu  “a chamada “peste pequena” que aqui chegou em 1580” (4) havendo memória de nesta ocasião terem falecido todos os frades do Convento da Graça (5).

Fez-se igualmente  sentir neste concelho a peste de 1598 “que havia começado em Lisboa no mês de outubro, durando cinco anos” (6) , aqui tendo chegado pelo menos em Janeiro de 1599, tudo bastante documentado nos livros de acórdão da câmara desses anos (7).

Sobre uma das piores pestes europeias, a peste Bubónica de 1644, não existe qualquer registo local.

Uma epidemia de “febres malignas” atingiu o lugar da Ponte do Rol, entre 11 de fevereiro e 2 de Maio de 1795 (8) e que esteve na origem do estabelecimento, naquele lugar, por ordem de D. Maria I, de um hospital “para tratamento dos doentes pobres”.

Esta epidemia foi estudada recentemente  por André Melícias, provando a alargamento dessa epidemia, pelo menos, à freguesia de S. Pedro da Cadeira, (9).

Houve outra epidemia em  1798 nos lugares de Abrunheira, Monte Redondo e Maxial, entre Abril e Junho desse  ano (10).

Vieira refere a epidemia de 1810 de grandes dimensões e bastante mortal, registada no final do ano, já anteriormente referida por Madeira Torres nos seguintes termos: “Por este tempo [finais de 1810] grassava na villa, e muito mais nas suas vizinhanças, um contagio, que foi quase geral, sendo mais mortífero nas terras invadidas [refere-se à 3ª invasão francesa], e nos emigrados por serem mais incomodados, e menos socorridos. Contaram-se tantos mortos, que foi preciso designar-se um amplo cemitério juncto à Igreja de S. Miguel, e ainda este teve de ampliar-se além dos seus primeiros limites” (11). Segundo Júlio Vieira (12), deve-se a este facto o nome dado a “casal dos ossos” localizado próximo desse lugar.

A grande mortalidade causada por esta epidemia esteve na origem de um avultado empréstimo do governo britânico, em dinheiro e cobertores, ainda segundo Madeira Torres.

Em Abril e Maio de 1817 registou-se nova epidemia, “de febres e esquinencias” [amigdalite ou angina na faringe ou laringe], localizada nos lugares da Ermigeira e Maxial, que atacou “88 pessoas maiores, e 41 menores, fallecendo das primeiras, 3 e das segundas 8” (13).  

Registou-se também uma epidemia no lugar da Carvoeira em 1824 (14).

Em 1833 surgiu na vila, em 22 de Maio, prolongando-se até junho,  a  epidemia de “Cholera-morbus” (febre amarela), a qual, embora menos devastador que noutros lugares do país, provocou 30 mortos na vila. Foi introduzida por um almocreve vindo de Vila Franca de Xira, “que morreu na rua dos Pelomes contagiando mais algumas pessoas da mesma rua”, onde ele habitava (15).

Ao que parece a “Chólera-morbus” atingiu mais o termo que a vila, tendo sido o Barro e a Louriceira os lugares mais atingidos (16).

Constituiu-se então “um Hospital privativo e provisorio na Quinta chamada do Desembargador ao sul da Villa, e no fim da Varsea-Grande, juncto á estrada que vae para o Repellão; e um cemiterio juncto á Ermida de S. João (17).

Ao todo teriam morrido no concelho 600 pessoas vitimadas por esta epidemia (18) , sendo assim uma das mais mortíferas registada na região.

No concelho, só os lugares do Ramalhal e Amial escaparam ao flagelo.  O facto de a Câmara ter tomado várias medidas preventivas antes desta chegar ao concelho contribui para evitar que o seu efeito fosse ainda mais devastador, pois, tomando-se conhecimento que aquela epidemia já grassava em Lisboa, tomaram-se várias medidas para a combater em vereação extraordinária de 30 de Abril desse ano (19):

1ª – removeram os matadouros para “o poente da villa no cítio da Fonte da Pipa próximo do rio (…)”;

2ª – “que a dessecação das tripas seja para o Monte de S. Vicente ou cazal da Forca assim como a cura do sebo”;

3ª – “que as rezes que se talharem nos açougues sejão os mais saudáveis, e o pescado o mais fresco, e todo aquelle que se achar incapaz será apreendido e queimado”;

4ª – mandou queimar todos os animais “sendo bois, porcos, ovelhas ou cabras, e todos os mais enterrados de forma que não possão ser lançados no Cano Real”;

5ª –“que se fará dar mais prompta expedição às agoas do Cano Real devendo  as confinantes alargar e aprofundar para esse fim a regueira tanto quanto seja necessário, e que para evitar extagnação de immundices no mesmo Cano Real se despejará para elle nas noites quartas feiras e sábados de cada semana o tanque do chafariz da Praça juntamente com mais doze pipas ou dornas de àgua que para esse fim se lançarão nas mesmas noites em o dito tanque sendo conduzidas por carros do chafariz dos canos”;

6ª – mandou escoar as águas da regueira dos Polomes;

7ª - “que em todos os dias da semana deverão todos os proprietários e moradores desta villa fazer limpar de manhã suas respectivas testadas e de dois em dois dias os pateos interiores, cavalariças ou currais de bois, fazendo extrahir os extrumes para fora da villa”;

8ª – proibia a existência de “currais de vacadas, ovelhas, cabras ou porcos” dentro da villa, obrigando os seus donos a remover os animais para fora da vila;

9ª –proibia os ferradores de sangrar animais dentro da vila, só o podendo fazer “junto do Rio alé, da Ponte da Mentira”;

10ª – mandava que se fizessem “revista” aos “comestíveis e vegetaes que estiverem a venda nas tendas desta villa” e proibia “que estas ultimas possão ser conservadas em as ditas tendas de hum para o outro dia por causa da fermentação”;

11ª –“que se publiquem aos Povos os comestíveis que são nocivos à Saude Publica”;

12ª-  que, dando-se o caso de a “enfermidade que infelizmente graça em parte da capital” chegar à vila, “se estabelecerão fora della alguns Hospitaes Provizorios para cujo efeito se destinarão desde já as cazas da Quinta de Custodio José Rodrigues e as do Beneficiado José de Leonico e João Ignacio no citio da conquinha e as da Quinta do Prior”;

13ª – que os “Boticarios tenham em suas boticas todos os medicamentos constantes da relação que fora dada pelos facultativos”;

14ª – em caso de necessidade serão chamados todos os facultativos da vila e termo como os da comarca “para concorrer ao ponto onde for necessário”;

15ª – que se promova uma subscrição na vila e termo em dinheiro, roupas e “alguns utensílios, só nominal e para ter efeito somente e se verificar a recepção no cazo de infelizmente chegar a existir o fim pqrq que he aberta”.

Como vimos, a epidemia chegou à vila cerca de três semanas depois de tomadas estas medidas;

Em 1844 registou-se uma epidemia de escarlatina na vila atribuída ao efeito dos arrozais existentes nas proximidades, a norte, e que terá causado muitas vítimas (20).

No ano seguinte voltou a registar-se uma epidemia atribuída à existência  daquela cultura, que acabou por ser abandonada por esse motivo.

Num relatório escrito pelo administrador do concelho em 5 de Janeiro de 1860, em resposta ao pedido do Ministério do Reino par se conhecer a influência da cultura do arroz na saúde  pública, pode ler-se que “ a cultura do arroz n’este concelho foi introduzida no anno de 1841, e até  ao anno de 1845 teve muito pequeno desenvolvimento, e n’este anno, que se póde considerar o de mais cultura, appareceram febres intermittentes em grande escala; depois nos annos seguintes por occasião dos arrozais largarem flor desenvolvia-se nas povoações proximas aos locaes aonde existiam as searas o mesmo mal, o que deu lugar a que os povos clamassem contra a cultura, a que se attribuiam as febres que faziam muitas victimas, e alguns cultivadores abandonaram a cultura; e em 1848, por portaria do ministerio do reino, foram mandadas arrazar as searas e prohibida a cultura  de futuro” (21).

Tal opinião, sobre os efeitos nocivos para a saúde pública da cultura do arroz, corroborava a dos médicos de Torres Vedras nos relatórios enviados com o mesmo objectivo, em Novembro de 1859:

No anno de 1845 a 1846, em consequencia de uma grande sementeira de arroz que se fez ao norte d’esta villa, cuja embocadura vinha dar a ella, todas as pessoas que assistiam para este lado foram atacadas de [febres] intermittentes rebeldes e perniciosas, das quaes muitos doentes foram victimas da morte, e os que não tinham meios para se curarem nas suas casas se recolheram ao hospital, aonde foram tratados devidamente, e muitos escaparam: era tão pernicioso o ar que se respirava do norte d’aquellas sementeiras, que algumas mulheres saindo das suas casas com saude para ir lavar alguma roupa ao rio voltavam d’ahi a pouco accomettidas de febres” (22).

A observação demonstra (...) que o augmento e gravidade das doenças n’esta localidade é devida á cultura do arroz, exercendo esta o seu domínio em todas as direcções (...). A classe jornaleira tem sido sempre a mais atacada, porém as outras classes não o tem sido pouco, mesmo a mais recatada, e com maior copia de meios; sendo os que trabalham nos arrozaes, em regra, os que mais soffrem  (23).

Em  1843 e 1844, quando aqui se renovaram” as sementeira do arroz “appareceram logo as febres, que de benignas, segundo o costume anterior, se tornaram perniciosas pela maior parte; acontecendo que em 1845, em que tomou grande incremento aquella cultura, de tal forma cresceram as molestias, e de tal maneira se tornaram geraes, que  a epidemia da cholera de 1855 e 1856 n’estes sitios foi de menos susto e de menos mortalidade” (24).

De acordo com a opinião unanime daqueles médicos, assim que aquela cultura foi abandonada cessaram as referidas enfermidades.

Em 1848  um acórdão da Câmara de 6 de Outubro mandou que se tomassem medidas para o caso de a peste de “Cholera-morbus”, que então grassava na Europa, chegar ao país, mas não existe qualquer registo conhecido do seu impacto na região.

Em 1853, a partir de Outubro, grassou pelo país uma grave epidemia de “Cholera-morbus”, desconhecendo-se, contudo, se houve algum caso registado no concelho de Torres Vedras.

A última grande epidemia que atingiu o concelho no século  XIX foi, novamente,  a “chólera-mórbus”, em 1856, contudo mais benigna que a de 1833.

Para esta situação muito terão contribuído as medidas de prevenção que começaram a ser tomadas ainda em 1855, quando uma circular de 20 de Agosto do Governo Civil mandou o executivo municipal estabelecer um cemitério em cada freguesia como primeira medida de prevenção (25)  e, pouco tempo depois, mandava criar hospitais provisórios.

Em relação a esta última recomendação, o executivo considerou não existir necessidade de criar imediatamente os referidos hospitais por “acharem suficiente (...) o Hospital da Misericordia d’esta villa”. Contudo “caso a epidemia se estabelecesse e progredisse a ponto tal que a Mizericordia não podesse receber todos os doentes atacados de epidemia (...) que era conveniente desde já olhar para o local onde depois se podessem estabelecer, um dois ou mais hospitais provisórios que recebessem os doentes que alli se não podessem tratar”, propondo o convento da Graça e a Quinta do Desembargador, “onde já em 1833 se estabeleceu um Hospital de cholericos”, que tinham “as necessárias condições para aquelle fim” (26).

Ainda nessa sessão foi formada uma “Comissão Central de Socorros”, composta de 17 cidadãos, entre os quais os médicos e facultativos, e na sessão seguinte nomearam-se os membros dessa comissão para cada uma das paróquias de fora da vila, em número de 5 cidadãos por cada uma (27).

Contudo, perante as notícias cada vez mais preocupantes da progressão da doença, pouco depois tomou-se a decisão de estabelecer hospitais provisórios nos lugares acima designados (28).

Pouco depois decidiu-se dar provimento a um ofício do Governo Civil, datado de 20 de Outubro, que “mandava supprimir d’esde já em todo o Districto de Lisboa, todas as feiras que até ao fim do presente anno deverião ter lugar em quaesquer terras ou povoados do mesmo districto” (29).

Em Novembro o tom de preocupação aumentou perante a notícia de que “a cholera infelismente se tem aproximado”, determinando o executivo “que se passassem Editaes recomendando aos povos da villa e concelho a maior limpeza das suas casas, lojas, sagões   [sic] e estrumeiras, removendo todos os focos de infecção (...) e não fazendo uso de comidas e bebidas corruptas”, mandando ainda que os moradores acendessem “fogueiras à noite em frente das casas, segundo as possibilidades de cada um, (...) por ser aconselhado como um dos meios de purificar o ar e que a tradição ensina ter-se uzado com proveito em semilhantes ocaziões”.

Devido ao mau estado do caminho que conduzia à Quinta do Desembargador, um dos locais escolhidos para estabelecer um hospital provisório, sugeriu-se ainda, em alternativa,  utilizar “a caza que anda edifficando José Gomes Fevelim à  Horta Nova”, mandando continuar as obras deste edifício de modo a que pudesse receber doentes(30).

Só em 28 de Julho de 1856  se declarou o primeiro caso de cólera no concelho, vitimando um habitante do lugar do Paul, estendendo-se depois ao lugar de Monte Redondo e a partir daí a quase todos os lugares do concelho (31).

Em Agosto registam-se nos acórdãos da câmara dois pedidos de auxilio, um, do lugar do Turcifal, requisitando um dos três médicos facultativos da Câmara para ir àquele lugar afim de aí “estabelecer e cuidar do tratamento dos cholericos pobres daquella Freguezia”, oferecendo-se o então vereador Maurício José da Silva, “que era cirurgião, mas não do partido da Camara, (...) para ajudar no tratamento dos coléricos do Turcifal”(32); outro, da comissão de socorros da Ribaldeira “exigindo recursos desta Camara para occorrer à pobreza e miseria dos povos daquella Freguesia que se achava invadida pelo flagelo da cholera morbus” (33).

Em Setembro terminou a epidemia no concelho, encerrando-se em 3 de Outubro o Hospital Provisório para coléricos que entretanto se tinha estabelecido no extinto Convento da Graça.

Os lugares mais atingidos do concelho foram a Serra da Vila, onde se registaram 20 mortos, e a Freiria e as povoações desta freguesia, morrendo aqui 40 pessoas. Ao todo morreram no concelho mais de cem pessoas. (34).

O surto de febre amarela que atingiu Lisboa em 1857 não teve efeito em Torres Vedras, apenas  sendo registado o caso de duas pessoas doentes que vieram de Lisboa, mas que não contagiaram ninguém neste concelho (35).

Em Dezembro de 1872 registaram-se no concelho alguns casos de “bexigas” (36).

Entre Dezembro de 1876 e Janeiro de 1877 registou-se uma epidemia de varíola na vila, levando o administrador do concelho a solicitar vacinas (37);

Em julho de 1882 registou-se uma epidemia de varíola na freguesia de Dois Portos (38);

Em 1884 foram tomadas medidas de prevenção contra o surto de cólera que grassava no país.

Em 29 e 30 de Dezembro de 1889  iniciou-se na vila uma epídema de “influenza” (39);

Um acórdão de 5 de Agosto de 1896 dá conta de uma epidemia na Cadriceira.

Confirma-se assim uma maior incidência de epidemias na primeira metade do século XIX, embora nunca se tendo registado grande mortandade neste concelho.

Uma dos mais devastadores surtos epidémicos, ainda presente na memória de habitantes ainda vivos, através de relatos directos de pais e avós, foi a “pneumónica” de 1918. (40)

Em Portugal, a primeira vaga dessa epidemia registou-se entre Junho e Julho de 1918, entrando rapidamente em declínio e tendo um impacto pequeno. Mas uma segunda vaga iniciou-se nos arredores do Porto em Agosto, disseminando-se lentamente durante os meses seguintes, atingindo o sul e o seu clímax em Outubro, continuando a fazer sentir o seu efeito até Dezembro de 1919.

Em Torres Vedras a doença “começou a fazer-se sentir nos lugares situados ao norte do concelho”, propagando-se “assustadoramente” a todo o concelho, provocando “grande miséria” nos lugares “onde a epidemia tem feito mais estragos”, pelo que se aguardava “a vinda de algum açúcar, cuja falta é enorme”, ao que parece por ser necessário para o fabrico de remédios farmacêuticos. Foi igualmente criado um hospital provisório “para os doentes atacados de epidemia”(41).

Neste concelho o período mais crítico decorreu entre 27 de Setembro e 31 de Outubro de 1918, obrigando ao encerramento de estabelecimentos e paralisando momentaneamente a vida política, social e económica de Torres Vedras.

A pneumónica foi registada pela primeira vez neste concelho a 27 de Setembro e durou até 20 de Novembro. Embora se tenham registado ainda alguns casos esporádicos após esta data, estes registaram-se a partir de então de forma descontinuada, ou seja, entre aquelas duas datas registaram-se todos os dias óbito provocados pela pneumónica, sendo o dia 21 de Novembro o primeiro que não registou nenhum óbito por gripe ou pneumonia.

Não deixa de ser significativo que o primeiro caso se tenha registado no Ramalhal. Poucos dias antes tinha tido lugar, nessa localidade, a 22 e 23 de Setembro, a festa de Nª Snrªda Ajuda, uma das mais concorridas do concelho e que atraiu muitos forasteiros das redondezas. Uma das causas da rápida propagação dessa epidemia terá sido exactamente a aglomeração de muitas pessoas nas  tradicionais festas de verão. Além disso, essa localidade era servida por estação de caminho-de-ferro.

As localidades da freguesia do Maxial foram também as primeiras a conhecer os efeitos mortais da epidemia, talvez pela proximidade em relação ao Ramalhal, ou por outra razão não detectada, quem sabe se relacionada com as vindimas, que atraiam a este concelho mão-de-obra de fora do concelho, sabendo-se que a deslocação de trabalhadores pelo país para os trabalhos agrícolas é outro dos factores geralmente associado com a rápida propagação da epidemia.

Recorde-se ainda que o Ramalhal e o Maxial são duas freguesias localizadas a norte do concelho e que, em Portugal, a pneumónica se expandiu de norte para sul.

Refira-se ainda os casos da Feliteira e de Dois Portos, ambas servidas por estação de caminho-de-ferro que foi um dos meios da rápida propagação da epidemia.

Segundo os dados oficiais, o impacto da pneumónica não foi o mesmo em todas as freguesias do concelho.

Como é óbvio, a vila foi das mais afectadas pela propagação da doença e pelo seu efeito, situação que se ficou a dever, não só à facilidade de propagação num meio urbano, servido de transportes, com uma actividade comercial assinalável, mas também porque nele estavam centralizados os principais serviços de saúde (hospital, lares, etc.).

Outras três freguesias destacaram-se pela elevada mortalidade, quer em termos numéricos quer em termos percentuais:

-              Ramalhal, com 67 mortos, 3,71%  da sua população;
-              Maxial, com 69 mortos, 2,62% da sua população;
-              Dois Portos, com 82 mortos, 2,08% da sua população.

A freguesia de Ponte do Rol, embora tivesse contado com um reduzido número de óbitos, 26, mercê da sua reduzida base demográfica, obteve uma percentagem elevada, 2%.

Pelo contrário, a freguesia de S. Pedro da Cadeira, apesar de ter registado o maior número de falecimentos a seguir à vila, 91 mortos, registou uma percentagem baixa, devido á sua enorme base demográfica.

As freguesias que no concelho registaram a mais baixa percentagem de mortalidade foram as freguesias da Carvoeira (0,87%), Matacães (0,94%) e Ventosa (1,01%).

Durante esse período morreram no país 31785 pessoas, sendo a região de Lisboa uma das mais atingidas. Em Torres Vedras morreram, segundo os dados oficiais que não são totalmente coincidentes com aqueles que encontrámos nos livros de óbitos consultados, 861 pessoas (42), numa percentagem de 2,2% da sua população, tomando como referência os censos de 1911.

Em termos nacionais e apenas em relação àquele período, a epidemia matou cerca de 0,6% da população nacional.

Torres Vedras registou assim uma mortalidade quase quatro vezes superior à média nacional.

A pneumónica foi a última grande epidemia registada em Portugal.

A introdução das vacinas, a melhoria das condições de vida e a evolução da medicina permitiram que, pelo menos nos países mais desenvolvidos, as epidemias se revelassem menos mortíferas a partir de 1918.

Mesmo assim registaram-se no século XX alguns momentos críticos, como a chamada “gripe asiática” que entrou em Portugal em Agosto de 1957, durando até Outubro e que causou 1050 mortos em Portugal, 288 em Lisboa, desconhecendo-se a que se passou em Torres Vedras.

Em 1968 houve nova epidemia, a “gripe de Hong Kong”, não matando ninguém em Portugal.

A última grande epidemia deu-se já neste século, a chamada “gripe A”, que, tendo entrado em Portugal em 29 de Abril de 2009, registou 200 mil casos em Portugal, causando 124 mortes no país. (43)). Desconhecemos os números em Torres Vedras.

Actualmente enfrentamos novo surto epidémico, o “COVID 19”, cujo desfecho é imprevisível. Mesmo que se venha a revelar menos mortífero de muitos dos registados acima, como acreditamos ser o caso, o efeito das medidas de contenção e na vida social e económica já se parece comparar com o que aconteceu em 1918.

… e a história continua!


NOTAS:
(1)    – SILVA, Carlos Guardado da, “As pestes” in Torres Vedras Antiga e Moderna, edição Colibri e CMTV, 2008, pp.123 a 125;
(2)    - VIEIRA, Júlio, pag.207 de “Epidemias” in Torres Vedras Antiga e Moderna, Torres Vedras 1926, pp.206 a 208;
(3)    -  RODRIGUES, Ana Maria, “Uma Peste em Torres Vedras em 1395”, in Espaços, Gente e Sociedade no Oeste: Estudos sobre Torres Vedras Medieval, Cascais: Patrimónia Historica, 1996, pp. 13-15;
(4)    - anotadores de Madeiras Torres [anotadores], na sua monografia torriense, parte histórica, 2ª edição,  na página 180;
(5)    - VIEIRA, ob. cit.
(6)    - VIEIRA, ob.cit;  
(7)    - anotadores, p.181;
(8)    -  anotadores p.182;
(9)    - MELÍCIAS, André Filipe Víctor, “Ponte do Rol. Contributos para o estudo de uma epidemia”, in História da Saúde e das Doenças/XIV Encotro Turres Veteras (…), ed. Colibri e CMTV, 2012, pp.205-235;
(10)  - anotadores p.182;
(11)  - TORRES, Madeira “monografia”, parte  histórica, 2ª edição, p. 179;
(12)  - VIEIRA, ob. Cit, p.207;
(13)  - anotadores, pp. 182 e 261;
(14)  -  anotadores, p. 182;
(15)  -  VIEIRA, p. 208;
(16) -  anotadores, p. 182;
(17)  - anotadores, pp. 182 e 183;
(18) -  anotadores, p. 183;
(19)  -  ff. 345, 345 v e 346, do Lº 26ª dos Acordãos [1817-1834];
(20)  -  anotadores, p. 182;
(21) -  Relatório sobre a Cultura do Arroz em Portugal e sua influencia na saude publica (...), Lisboa, Imprensa nacional, 1860, p. 163;
(22)  -  João Victorino Pereira da Costa,  Relatório citado, p. 288.;
(23)  -  José Joaquim Alves,  Relatório citado, p. 289.;
(24)  - José Maria de Oliveira e Silva,  Relatório citado, p. 286;
(25)  -  Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842 – 1856), sessão de 29 de Agosto de 1855, AHMTV;
(26) -  Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842 – 1856), sessão extraordinária de 3 de Setembro de 1855, AHMTV;
(27)  - Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842 – 1856), sessão de 12 de Setembro de 1855, AHMTV;
(28) -  Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842 – 1856), sessão extraordinária de 27 de Outubro de 1855 AHMTV;
(29) -  Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842 – 1856), sessão de 31 de Outubro de 1855 AHMTV.
(30) - Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842 – 1856), sessão extraordinária  de 10 de Novembro de 1855 AHMTV;
(31) - anotadores, p. 183;
(32) -  Lº de Acórdãos da Câmara, nº 29 (1856 – 1864), sessão extraordinária  de 2 de Agosto de 1855 AHMTV;
(33)  - Lº de Acórdãos da Câmara, nº 29 (1856– 1864), sessão extraordinária  de 9 de Agosto de 1855 AHMTV;
(34) - anotadores, p. 183;
(35)  - sobre algumas destas epidemias dos anos 40, 50 e 60 do século XIX, ler o meu estudo, “Elementos para o Estudo da Saúde Pública e da criação dos Cemitérios Públicos em Torres Vedras no Século XIX”, in Turres Veteras VI – História da Morte. Instituto Alexandre  Herculano/CMTV,  2004,  pp.103-151. Ler também BAPTISTA, Nuno Miguel, “Subsídios para o estudo da morte em S. Miguel de Torres Vedras”, mesmo, pp.153-171;
(36) - Copiadores da Correspondência do  Administrador do Concelho para o Governo Civil [1868 a 1890], Arquivo Histórico Municipal de Torres Vedras, documento daqui para a frente designado com a sigla CAC;
(37) – CAC;
(38) – CAC;
(39) – CAC;
(40)  - existe um estudo sobre o seu efeito em Torres Vedras por nós publicado:  MATOS, Venerando António Aspra de, “Torres Vedras e a pneumónica de 1918” in  in História da Saúde e das Doenças/XIV Encotro Turres Veteras (…), ed. Colibri e CMTV, 2012, pp.187-203. Pode também ser consultado AQUI;
(41)  -  in O Século, 10 de Outubro de 1918;
(42)  -  dados da “pneumónica” no concelho na “Vinha de Torres Vedras” de 21 de Novembro de 1918;
(43)  GEORGE,  Francisco,  História da gripe, DGS, 2014.