quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Maceira – Das Fontes Termais às Piscinas do “Vimeiro”

Muitas foram as gerações torrienses que aprenderam a nadar nas piscinas do “Vimeiro”, para além das quantidades de água, com o mesmo nome, consumida pelas mesmas, ao longo dos anos.

A fama da qualidade das águas termais das quatro fontes, “distribuídas entre as duas margens do rio Alcabrichel” (1), já vem de longe.

Segundo a lenda e a tradição popular, a rainha Santa Isabel já tinha procurado cura nessas águas, no início do século XIV, o mesmo fazendo a infanta D. Leonor, a meio do século XV.

Sabe-se que, pelo menos no século XVII, a foz do Alcabrichel foi alvo frequente de assalto de “piratas” do norte de África que, entre outras coisas, aqui se abasteciam das águas dessas fontes.

A primeira referência à existência de fontes junto do Convento de Penafirme, que detinha os direitos sobre elas, data de 1726, na obra “Aquilégio Medicinal”, da autoria do “físico” Francisco da Fonseca Henriques, conhecido por “Dr. Mirandela”. Esta descrição é igualmente referida no inquérito paroquial de 1758, “respondido” pelo padre António Duarte de A-Dos-Cunhados.

Essas nascentes de água medicinal eram, então, popularmente designadas como “Fonte da Rainha Santa e Fonte dos Frades” (2).

É numa descrição de 1810, da autoria de Francisco Tavares, que essas fontes são pela primeira vez referenciadas como sendo do “Vimeiro” (3), erro em que volta a incorrer, em 1822, Adrien Balbi, referindo-se às “Águas Santas do Vimeiro” (4). A confusão dos lugares ficou a dever-se à proximidade do lugar do Vimeiro (no vizinho concelho da Lourinhã), famoso desde a Guerra Peninsular devido à célebre Batalha do Vimeiro de 1808, cujo campo de batalha ficava próximo da Maceira e da zona onde essas fontes se localizavam, sendo bom recordar que a movimentação das tropas britânicas, envolvidas naquela batalha, se estendeu entre Porto Novo e o Vimeiro, ao longo do rio Alcabrichel e passando pela Maceira, tendo-se provavelmente servido das fontes aí existentes.

A confusão dos nomes manteve-se até aos nossos dias, até porque, por razões de marketing, era mais fácil vender a “marca” “Vimeiro”, quando se iniciou, no século XX, a exploração industrial das águas e das piscinas localizadas junto da Maceira.

As águas do “Vimeiro” foram analisadas pela primeira vez em 1867 pelo Dr. Agostinho Vicente Lourenço, posteriormente, de forma mais detalhada em 1893, pelo professor Charles Lepierre, e, no ano seguinte, pelo Dr. Eugénio Dias, referindo este último a existência de três fontes.

João Pedro Cardoso foi a primeira pessoa a solicitar, em 1894,  a concessão de exploração comercial das águas dessas fontes, oficialmente concedida por  alvará de 30 de Janeiro de 1896, e designadas por “Águas Santas do Vimeiro”. Após o falecimento do concessionário, as termas foram vendidas à Empresa das Águas do Vimeiro (5), que, por alvará de 12 de Janeiro (ou 5 de Dezembro?)  de 1921, deu início à exploração das chamadas “Caldas Santas do Vimeiro”.

A “Empresa das Águas do Vimeiro”, sob gerência e propriedade de Joaquim Belchior desde 1945, inaugurou, em 24 de Junho de 1946, um balneário para os utentes da “Fonte Santa”, na Maceira, , o “Hotel das Termas da Maceira” em 12 de Junho de 1949 e, em 23 de Junho de 1954, as referidas “Piscinas do Vimeiro” (6), depois de efectuar grandes obras ao longo das margens do rio Alcabrichel. Uma segunda piscina, de maiores dimensões, foi concluída em 1956 (7). Recorde-se que o uso daquelas águas para banhos, com recurso a tanques, está documentado desde 1810.

Ao longo de décadas foram exploradas as duas fontes termais conhecidas, respectivamente, por “Fonte de Santa Isabel”, situada em frente das piscinas, do outro lado do rio, e a Fonte dos Frades, a meio caminho entre a Maceira e Porto Novo, percurso que era percorrido por um “comboio” puxado por um tractor que transportava os utentes dessas termas.

Pedro Garcia Anacleto, durante muitos anos o director clínico das termas, descreveu assim as indicações clinicas dessas águas:

“Fonte de Santa Isabel – doenças da pele, dos climas quentes, disfunção hepatobiliares, dispepsias quer hipoácidas, quer hiperácidas, colites átonas e espáticas, litíase renal  e vesical, e reumatismo por excesso de ácido úrico.

“Fonte dos Frades – doenças da pele, doenças hepáticas e, em especial a litíase biliar, doenças da nutrição, do foro ginecológico, dos intestinos, hemorroidal, afecções inflamatórias dos olhos, bronquite, sinusite, asma alérgica, catarros nasofaríngeos, laringites, rinites e anosmias” (8).

Ao longo das últimas décadas tem-se assistido ao declínio do uso dessas fontes e das piscinas.

Contudo, mantem-se em grande actividade a empresa de engarrafamento das “àguas do Vimeiro”, conhecendo actualmente um período de grande projecção e expansão (9).

(1)    MIRANDA, Guilherme, “Património e recursos naturais”, in A dos Cunhados- Itinerários da memória (obra colectiva coordenada por João Luís Inglês Fontes, ed. Pró-memória, 2002, pág.37;

(2)    Deve-se ao Dr. Pedro Garcia Anacleto três obras de síntese sobre o tema dessas fontes termais : “As fontes termais do Convento de Penafirme”, in “Badaladas” de 1 de Outubro de 1958,   “As Águas Santas do Vimeiro e as suas termas” in Panorama, nº 23, IIª série, Setembro de 1961 e “Os Vastos Recursos do Concelho de Torres Vedras em Terapêutica Associada Termal e Heliolimarítima”, in Termas e Turismo, brochura editada pela CMTV em 1970. Refira-se também o conjunto de artigos sobre este tema incluídos na já citada obra colectica A dos Cunhados, Itenerários da Memória, principalmente os sub-capítulos “Os recursos termais”, da autoria de José Luís Inglês Fontes, pp.195-200, e  “exploração dos recursos termais : As Termas do Vimeiro (Maceira)”, por Ana Sofia Nunes Cordeiro, pp.286-292;

(3)    FONTES, José Luís Inglês, ob. cit., pág.195;

(4)    BALBI, Adrien, Essai Statistique sur le Royaume de Portugal et Algarve, ed. 1822;

(5)    FONTES, ob.cit, pág. 198 e 199;

(6)    leia-se reportagem do evento nas páginas do Badaladas de 15 de Julho de 1954;

(7)    Para esta fase, leia-se o referido estudo de Ana Cordeiro, citado em nota (2);

(8)    ANACLETO, ob. cit, 1970;

(9)    leia-se a entrevista, conduzida por Joaquim Ribeiro a Diogo Abreu, gerente da empresa, publicada no jornal Badaladas de 16 de Abril de 2021. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

As primeiras “Máquinas Voadoras” em Torres Vedras

(inauguração do aeródromo de Santa Cruz em 1931 - Foto do arquivo Adão de Carvalho)

Comemora-se este ano o centenário da célebre travessia do Atlântico Sul, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro, preconizada por Gago Coutinho (1869-1959) e Sacadura Cabral (1891-1924), com recurso a três aviões e que decorreu entre 30 de Março e 17 de Junho de 1922.

O entusiasmo que esse feito despertou em Portugal deu um grande contributo para a divulgação do avião, um meio de transporte que revolucionou a forma de viajar (1).

O feito não passou despercebido aos torrienses da época e logo se desenvolveu a ideia de criar condições para a prática de voo neste concelho.

Desconhecendo-se quando é que este conselho foi sobrevoado pela primeira vez por esse novo meio de transporte, a primeira referência conhecida e documentada sobre a aterragem de um avião na zona de Torres Vedras data de 1930.

Na sua edição de 31 de Agosto de 1930 o jornal “Gazeta de Torres” anunciava, em título, um “Passeio de Aviadores” no concelho, programado para a 6ª feira seguinte,  5 de Setembro, formado por “um grupo de aeroplanos da Esquadrilha de Aviação República”, da Amadora, que se deslocava em excursão a Santa Cruz, prevendo-se a sua aterragem “nas Várzeas defronte da Quinta d’Alfaiata”, sendo recebidos “pela rapaziada de Santa Cruz que lhes oferecerá uma caldeirada fragateira servida nos pinhais d’Alfaiata”.

O mesmo semanário publicou na sua edição de 7 de Setembro de 1930 uma reportagem sobre esse dia histórico para o concelho de Torres Vedras.

Muito antes da hora marcada para a chegada dos aviadores, prevista para as 10 da manhã, “já o vasto campo de Alfaiata se encontrava povoado por muitas centenas de pessoas”.

O primeiro avião surgiu do lado norte, dando uma “volta sobre o campo, em reconhecimento, e pouco depois o avião aterra”, um Marone 4 da esquadrilha de Tancos, pilotado pelo capitão Frederico Costa, que resolveu “fazer uma surpresa aos seus colegas da 5ª arma” que vinham da Amadora e que vão chegar um pouco mais tarde.

Em curiosa entrevista recolhida pelo repórter da “Gazeta”, o primeiro aviador a aterrar em solo torriense deu a sua opinião sobre o improvisado campo de aviação junto à Quinta dos Casalinhos, que, sim, tinha condições, “aparte o ter sido um campo de cultura, preparado à ultima hora, e que se ressente desse facto. Já pela sua vastidão, já pela sua situação, este campo é, salvo os pequenos inconvenientes que se encontram, devido mais à sua rápida transformação que às suas condições naturais, um belo aeródromo. O seu terreno demasiado macio, porque há poucos dias deixou de ser um terreno de cultura, presta-se, depois de devidamente calçado, a ser um magnifico campo de aviação”. Como veremos mais à frente, não foi este o  local escolhido para a instalação do primeiro aeródromo torriense.

Entretanto, surgem “ao longe, entre os flocos brancos das nuvens, mais trez aviões”, e, mais atrás, outros dois.

Deste grupo da Esquadrilha da Aviação República da Amadora, aterra primeiro o Vickers 9, “pilotado pelo tenente Umberto Cruz” acompanhado pelo mecânico Ramos. “Há palmas na assistência , ao verem a sua aterragem, feita em pura perda, a melhor da tarde”.

Seguem-se as aterragens do Vickers 4, “tripulado pelo tenente Manuel Gouveia, o heroe que acompanhou Brito Pais e Sarmento de Beires no seu glorioso raid” (Lisboa-Macau em 1924), do “Vickers 6 com o capitão Sergio e o major Cunha e Almeida”, do Vicker 8 com “o capitão Mendonça e o tenente Pimenta”, e, por último, “o Breguet 11, com os tenentes Sanos Moreira e Cunha Abreu”.

“Um outro aeroplano surge no espaço, mas afasta-se passando a oeste do campo na direcção norte”.

Público e aviadores juntam-se “na sombra da sádia dos pinhais de Alfaiata”, comendo as suas merendas, enquanto “meia dúzia de fragateiros preparam a caldeirada típica, que há de ser servida na sombra apetecível do pinhal, há vinho branco de uma dezena de anos e anedotas do Pistachini, que entreteem a assitencia”.

Depois de preparar a caldeirada, juntam-se todos à volta de uma mesa em U, no meio do pinhal, onde o “vinho com gelo” é servido pelo “João Pedro”, e a refeição pelo “Faustino Antolin”. Todos os participantes, com excepção dos aviadores, “eram obrigados a levar copo, prato e talher”.

Terminada a refeição, e “depois do clássico cafezinho”, todos se dirigem ao “improvisado campo de aviação”, de onde “os aeroplanos vão, um a um, levantando de novo em direcção ao sul”, acompanhados de dois novos passageiros, o tenente França Borges e o acima referido “João Pedro”.

A “Comissão de Iniciativas” de Torres Vedras e Santa Cruz já se tinha antecipado àquele evento e deliberado, em reunião de 1 de Setembro,  “estudar a possibilidade da construção dum campo de aviação próximo ao moinho, antes de Santa Cruz” (2).

Ainda antes do ano de 1930 acabar, anunciou-se que aquela Comissão de Iniciativas tinha “resolvido tomar de arrendamento, pela quantia de 300$000 anuais, o terreno próximo de Santa Cruz destinado a pista de aviação”, tendo igualmente aprovado “a verba de 3.000$000 para proceder ao nivelamento do mesmo terreno” (3).

Esse terreno é aquele onde actualmente se localiza aeródromo de Santa Cruz e foi usado pela primeira vez, como ensaio pré-inaugural, na aterragem de “um aparelho” na 2ª feira, dia 27 de Abril de 1931 (4).

Para melhor servir esse aeródromo e a praia de Santa Cruz, iniciaram-se os trabalhos, em Maio de 1931, da estrada camarária a ligar os Casalinhos àquele local.

Na sua edição de 19 de Julho de 1931 o semanário “Gazeta de Torres” anunciou a inauguração desse aeródromo no dia 27 desse mês, integrado num pacote de melhoramentos para aquela praia, como a canalização da água, a linha telefónica e um campo de ténis.

A festa foi abrilhantada pela Banda dos Bombeiros e contou com a presença de várias “individualidades”, sendo a inauguração do campo de aviação feita pela presença de “grande número de aviões”, oferecendo-se aos aviadores e aos “elementos oficiais” um almoço, no Hotel Miramar.

Ao todo aterraram no novo aeródromo cerca de vinte aviões (5).

Só anos depois é que a gestão deste aeródromo ficou à responsabilidade do Aero Clube de Torres Vedras, a partir da inauguração oficial desta associação em 15 de Setembro de 1944.

(1)    – leia-se o excelente dossier sobre esse acontecimento e a História da aviação em Portugal, na revista Visão-História nº 69 de Fevereiro de 2022;

(2)    – in Gazeta de Torres de 7 de Setembro de 1931;

(3)    – in Gazeta de Torres, de 7 de Dezembro de 1931;

(4)    – in Gazeta de Torres, de 3 de Maio de 1931;

(5)    – leiam-se as detalhadas reportagens desse evento nas edições dos jornais “Gazeta de Torres” e “Jornal de Torres Vedras” de 2 de Agosto de 1931. Leia-se também, sobre o assunto, a muito bem documentada edição da “Toitorres Notícias” nº 37, Março/Abril de 1996, com tratamento de texto de António Rodrigues e fotografias e outros documentos do arquivo de Adão de Carvalho.