segunda-feira, 5 de junho de 2023

As Origens do Partido Socialista em Torres Vedras


Fundado em 19 de Abril de 1973, no exílio alemão, o actual Partido Socialista só surgiu em Torres Vedras já depois do 25 de Abril, embora tenha existido, no início do século XX um primitivo Partido Socialista com alguma actividade em Torres Vedras.

Em Portugal as primeiras manifestações do ideário socialista ocorreram na década de 70 do século XIX, na sequência da “Comuna de Paris”, acontecimento que teve lugar entre Março e Maio de 1871, que acabou com a repressão sangrenta sobre os revolucionários franceses.

Nesse mesmo ano de 1871, em Agosto, o genro de Karl Marx, Paul Lafargue, deslocou-se a Portugal para reunir com os membros locais da Associação Internacional dos Trabalhadores, organização fundada por ocasião da Primeira Internacional (1864-1876), visita que motivou a fundação da “Fraternidade Operária”(FO)  em Janeiro de 1872.

Devido às perseguições policiais e ao incipiente peso social e económico do operariado português, a FO extinguiu-se em 1873.

Muitos dos membros da FO, apoiantes em Portugal da Primeira Internacional, fundaram , em 1875, o primeiro Partido Socialista português.

Entre os fundadores estiveram Aznedo Gneco, José Fontana e, entre cerca de uma vintena, um homem que veio a estar muito ligado a Torres Vedras, Manuel do Nascimento Celestino Aspra.

Foi este Celestino Aspra, tipógrafo de profissão, que esteve ligado à divulgação de algumas ideias associadas a esse primeiro socialismo, como o mutualismo operário, sendo um dos fundadores da "Associação Mutualista 24 de Julho de 1884” (1).

Fundador da primeira tipografia torriense, a esta estiveram ligados os dois primeiros jornais editados em Torres Vedras, “O Jornal de Torres Vedras” (Janeiro de 1885 a Dezembro de 1886) e “Voz de Torres Vedras” (Fevereiro de 1887 a Janeiro de 1890).

Foi num artigo do jornal “ Voz de Torres Vedras”, de 6 de Julho de 1889, intitulado “As Classes”, que se publicou a  primeira referência local à obra e pensamento de Karl Marx, a propósito do qual o articulista se interrogava : “Quem não sente o arruído das classes escravizadas pelo salário, classes que em altos brados reclamam por toda a parte o seu quinhão no banquete social, apresentando-se para tomarem nas suas mãos o destino d’este mundo (…)?”.

Em plena 1ª República, o candidato socialista pelo Círculo de Torres Vedras às eleições para deputado de 1915, Raul dos Santos Palermo, recebeu um total de 20 votos neste concelho, de um total de 1644 expressos. Esse mesmo candidato, o único “socialista”, voltou a apresentar-se por este círculo em 1919, recebendo 23 votos de um total de 860 (2).

Foi em Abril de 1917 que se fundou um “Núcleo de Propaganda Socialista de Torres Vedras”, iniciativa acolhida “com viva satisfação pela classe operária”, ficando as adesões a cargo de José Augusto Correia Lemos, na Rua Mouzinho da Albuquerque, nº 32, r/c. A inauguração desse Núcleo ficou marcado para 1 de Setembro, numa “sessão de propaganda, numa colectividade”, estando programada a actuação de um “sexteto” de Lisboa que “executará o hino operário “A Internacional” (3).

Na sequência dessa iniciativa, o núcleo local do Partido Socialista, liderado localmente pelo marceneiro António Vicente Santos Júnior, concorreu, pela primeira vez, e única durante esse regime, às eleições autárquicas, em Maio de 1919, obtendo 45 votos.

Em 1931, por ocasião da tentativa de formação de uma frente única republicana para enfrentar a recém criada União Nacional nas eleições para o parlamento prometidas pela ditadura do 28 de Maio,  (4) foi eleito como representante local da chamada Frente Republicano-Socialista, em sessão realizada no Teatro-Cine em 28 de Junho desse ano, pelo núcleo local do Partido Socialista, aquele mesmo António Vicente (5).

A partir da década de 30 do século passado não se regista qualquer actividade do Partido Socialista em Torres Vedras, proibido que estava pelo Estado Novo. A partir dessa década a oposição é liderada por republicanos históricos e pelo cada vez mais influente Partido Comunista Português.

Muitos dos fundadores do actual PS torriense vieram da oposição ao Estado Novo e, em vésperas do 25 de Abril, participaram em eventos unitários, ora nas acções da oposição, ora assinando documentos contra a “situação”, junto com outros oposicionista locais, como foi o caso, por exemplo, de um João Carlos, um Dr. Augusto Troni, uma Leonia Rodrigues ou um Sérgio Simões.

Foi em documento de 4 de Maio de 1974 que a “Comissão Concelhia de Torres Vedras do Partido Socialista” apresentou “À População do Concelho de Torres Vedras” a “declaração de princípios” do partido, anunciando para breve a inauguração da sua sede local, que se situou numa vivenda na Av. 5 de Outubro, que existiu a poente do “Pacar”.

Em documento de 7 de Junho de 1974, apresentou-se publicamente a lista de nomes que integraram a “Comissão Provisória da Secção Concelhia de Torres Vedras”, composta por 26 nomes (ver imagem em anexo).

Concorrendo pela primeira vez a eleições, nas “Constituintes” de 25 de Abril de 1975, o Partido Socialista foi o mais votado no concelho, com 15 881 votos (43,59%), embora não tenha vencido em todas as freguesias (foi derrotado pelo PPD em A-Dos-Cunhados, Campelos, Freiria, Silveira e Ventosa).

Nas primeiras eleições autárquicas, realizadas em 12 de Dezembro de 1976, o PS venceu, sem maioria absoluta, com 10 073 votos (36,73%), em lista encabeçada por Alberto Avelino (6).

Para além de ter sido o primeiro presidente eleito da Câmara Torriense, Alberto Avelino tinha sido deputado na Constituinte de 1975, voltando a estas funções de deputado mais tarde e exercendo, durante 12 anos, o cargo de Governador Civil de Lisboa, sendo uma das figuras históricas do novo PS.

Em termos locais, esse partido tem dominado a liderança municipal desde essas eleições de 1976, caso raro em Portugal.

(1)    - leia-se “Associação de Socorros Mútuos 24 de Julho de 1884. Nos primórdios do associativismo operário em Torres Vedras”, in Turres Veteras X - História do Sagrado e do Profano, Lisboa, ed. Colibri-CMTV, 2008, pp.231-245;

(2)    - ver  “Republicanos de Torres Vedras”, ed. Colibri e CMTV, 2003;

(3)    - leiam-se as edições de 5 de Abril e 19 de Julho de 1917 de “A Vinha de Torres Vedras”;

(4)    -  as tão esperadas eleições para a Assembleia Nacional realizaram-se apenas em 16 de Dezembro de 1934, “disputadas” unicamente pelo  movimento da ditadura, a União Nacional, força política que se manteria como “partido” único até ao 25 de Abril;

(5)    - ver Gazeta de Torres de 14 de Junho de 1931;

(6)    – muitas destas informações foram recolhidas no arquivo pessoal do autor.

ANEXO:

Documentos para a História do PS em Torres Vedras 





quinta-feira, 25 de maio de 2023

As memórias do Carnaval de António Carneiro

                                               

Se há acontecimento que une todas as gerações torrienses vivas, ele é o Carnaval de Torres.

Toda a gente que tenha nascido ou vivido em Torres Vedras tem histórias da sua vida relacionadas com esse evento.

Se essa memória for a de alguém que esteve por dentro da organização e da expansão que o Carnaval de Torres conheceu nas últimas décadas, estão reunidas as condições para que essas memórias se tornem um documento fundamental para conhecer a evolução, a transformações e o espírito desse acontecimento único que é o Carnaval de Torres.

É o que acontece com António Carneiro, que acaba de nos brindar com um surpreendente livro de memórias sobre o Carnaval de Torres: “Aconteceu assim…memórias e …outras histórias”.

Este livro, tratado graficamente pelo Antero Valério e ilustrado com um conjunto de fotografias ,  muitas da autoria de Carlos Miguel (cronista visual do nosso carnaval das últimas décadas, como se revela pela extraordinária fotografia que foi escolhida para capa do livro), é já uma obra fundamental para se conhecer como é que o Carnaval de Torres atingiu a sua actual dimensão e notoriedade.

Como responsável activo pela fase moderna do nosso Carnaval, António Carneiro dá-nos uma obra fundamental para quem queira construir, para memória futura, uma História do Carnaval de Torres.

O memorialismo não é um género muito cultivado por estas bandas, muito menos na forma despretensiosa, mas bem documentada e experienciada, como o faz o nosso amigo “Toni” Carneiro.

Para além de António Carneiro, temos, felizmente, João Maria Brandão de Melo que nos vai deliciando, nas páginas do jornal  Badaladas, de forma irregular, com as suas memórias carnavalescas, trabalho que também merecia ser reunido em livro.

Pena temos nós que não houvesse outras figuras históricas do nosso Carnaval que publicassem as suas memórias (lembramo-nos de um Amílcar, de um Luís Faria, de um Jaime Alves, de um Levy dos Santos, de um Verino, de  um Renato Valente…e tantos outos que construíram o nosso Carnaval).

O livro de António Carneiro lê-se de um trago. Lê-lo, para além do grande prazer que nos deu, é um forma de penetrarmos  no espírito do centenário Carnaval de Torres, pois as saborosas histórias que ele nos  revela não são as  de um mero observador exterior, mas muitas delas tiveram a cumplicidade activa do autor e foram “estruturantes”  para a identidade actual do nosso Carnaval.

Este é um livro fundamental na estante de qualquer torriense, goste-se ou não do Carnaval.

 

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Vitor Alves, um “capitão” de Abril em Torres Vedras


Ainda está por fazer um levantamento dos militares nascidos ou criados em Torres Vedras que participaram no “25 de Abril”.

Um há, contudo, que foi decisivo, não só para a concretização desse golpe militar, que pôs fim a 48 anos de ditadura, como para o rumo democrático dessa revolução.

Chamou-se Vitor Manuel Rodrigues Alves, nascido em Mafra em 30 de Setembro de 1935, mas que viveu parte da sua infância e juventude em Torres Vedras.

O major Vitor Alves foi uma das figuras cruciais para o êxito do “25 de Abril”, mas, muitas vezes, o seu papel nesse acontecimento e na evolução dessa revolução não tem sido devidamente valorizado, em grande parte devido à sua personalidade discreta e sóbria.

Contudo, como se revela na excelente biografia que Carlos Ademar lhe dedicou (1), a sua acção foi crucial, quer para o êxito do golpe de estado que pôs fim ao regime salazarista, quer para o rumo democrático e liberal do regime saído do “25 de Abril”.

Formado na Escola do Exército, participou na Guerra Colonial, onde combateu durante mais de uma década nos mais difíceis cenários de guerra, apercebendo-se da incapacidade do regime para encontrar uma saída política para esse conflito, o que o levou a ser um dos pioneiros na formação do que veio a ser o MFA e um dos principais responsáveis pela elaboração do programa político desse movimento.

Depois do movimento vitorioso, integrou cargos em várias estruturas, como o Conselho de Estado, o Conselho dos Vinte e, mais tarde, o Conselho da Revolução, foi ministro sem pasta,exercendo também várias funções diplomáticas. Foi um dos fundadores do Grupo dos Nove, sendo um dos “vencedores “ do 25 de Novembro e ministro da educação no IV Governo Provisório, liderado por Pinheiro de Azevedo. Foi mais tarde conselheiro presidencial de Ramalho Eanes, candidato pelo PRD nas eleições de 1985, 1986 e 1989, e fundador da Associação 25 de Abril, entre muitas outras actividades cívicas em prol da defesa da comunidade portuguesa no mundo, de um bom relacionamento com as antigas colónias e em defesa dos Direitos Humanos.

Toda esta acção está bem documentada na referida biografia, uma obra que é também um fiel retrato da vida política e social de Portugal entre o final da década de 1960 e da década de 1980, durante as quais Vitor Alves foi uma figura decisiva

Neste artigo não pretendemos fazer uma história dessa importante personalidade, mas referir as suas ligações a Torres Vedras.

Nascido em Mafra, a sua família, depois se uma curta passagem por Vila Franca de Xira, mudou-se para Torres Vedras na década de 1940, vivendo na Rua Conde Tarouca, nº 28, 1º andar. “Era num prédio de três pisos. A família Alves residia no 1º andar e a senhoria no 2º. Teresa, a mulher de Vítor Alves durante 50 anos (…) refere-se-lhe como a “casa do risco ao meio”, por ter um corredor longo e muitas divisões de um e outro lado”. Nessa casa existia uma grande biblioteca, propriedade do avô paterno Alexandre, figura tutelar de Vitor Alves, com quem conviveu de perto durante os 4 ou 5 anos que este viveu na casa paterna em Torres Vedras. “O seu ingresso na Escola do Exército, em 1954, ocorreu dois ou três anos após a morte dessa figura tutelar” (2).

O pai de Vitor Alves, Eduardo, era escriturário da Junta Nacional dos Vinhos, falecendo em 1968. A mãe, Maria Palmira, “foi o grande motor da família”, exercendo “funções de telefonista nos CTT e passou posteriormente para o apoio à secretaria”.

Os pais de Vitor Alves tiveram 11 filhos, dos quais cinco morreram à nascença. Os dois mais novos, dos 6 sobreviventes, José Manuel e Carlos António, foram os únicos a nascer em Torres Vedras. Após a morte do pai, a mãe e os irmãos mudaram-se para Oeiras.

Vitor Alves conclui os estudos primários e secundários em Torres Vedras (3), recordando, numa entrevista concedida a Manuela Cruzeiro em 2004, a sua passagem pelo Liceu de Torres Vedra e a memória com que ficou de alguns professores: “O professor Mesquita, de Português, era extraordinário, bem como o de Matemática. Ambos eram de esquerda”. Referia-se ao professor José Carvalho Mesquita, que conheceu a prisão e foi saneado. O “professor de matemática” era o Dr. Albarran Grilo. Na mesma entrevista o “capitão de Abril” recordou igualmente com simpatia o professor de ginástica Carlos Dieguez. Já em relação ao director do liceu, o Dr. João Carlos Cunha, a sua opinião não era tão simpática. Para além da sua ligação à Legião Portuguesa, Alves desconfiava que ele era informador da PIDE, opinião que não é verdadeira (4).

A causa da desconfiança de Vitor Alves em relação ao Dr. Cunha prende-se com o facto de ter conhecimento, depois do 25 de Abril, da existência, nos arquivos da PIDE, de uma denuncia anónima contra si e um amigo do liceu, João Antunes, descrevendo as conversas entre ambos. “João Antunes tinha três ou quatro anos a mais do que Vitor Alves e ambos eram colegas do liceu. Morava na mesma rua, quase em frente da casa do Dr. Cunha. Os dois ficavam a conversar até altas horas da noite, à porta de um e do outro, o que não passaria despercebido ao director” (5), nascendo desta situação a infundada desconfiança em relação ao Dr. Cunha.

Como vimos, Vitor Alves deixou Torres Vedras em 1954, para ingressar na Escola do Exército, e a sua família deixou esta localidade em 1968, após a morte do pai.

Vitor Alves faleceu no dia 9 de Janeiro de 2011.

Em vésperas do cinquentenário do 25 de Abril, seria interessante, no mínimo, colocar uma placa evocativa da sua passagem por Torres Vedras na casa onde viveu.

(1)    – ADEMAR, Carlos, Vitor Alves – o Homem, o Militar, O Político, ed. Parsifal, 2015 (com o apoio, entre outros, da Câmara Municipal de Torres Vedras;

(2)    – ADEMAR, pág.40;

(3)    – ADEMAR, pág. 41;

(4)    - o autor desta rubrica teve oportunidade de consultar os arquivos da PIDE, onde, pelo contrário, o Dr. Cunha era alvo das desconfianças da policia politica e dos seus informadores torrienses, apesar de ser um apoiante do regime. Também sei, de boa fonte, que o mesmo Dr. Cunha, amigo de alguns oposicionistas, lhes indicou quem eram os informadores da PIDE em Torres Vedras, para eles se poderem defender melhor da perseguição dessa polícia;

(5)    – ADEMAR, pág.44

 

quarta-feira, 19 de abril de 2023

No Dia do 50º aniversário - Documentos para a História do Partido Socialista em Torres Vedras


Fundado em 19 de Abril de 1973 no exílio alemão, o Partido Socialista só surgiu em Torres Vedras já depois do 25 de Abril, embora tenha existido, no início do século XX um primitivo Partido Socialista com alguma actividade em Torres Vedras.

Muitos dos fundadores do PS torriense já tinham tido participação na oposição ao Estado Novo e, em vésperas do 25 de Abril e nos primeiros tempos da nova situação, participaram em eventos unitários, ora participando nas acções do CDE em 1973, ora assinando alguns dos primeiros documentos de adesão ao regime democrático, junto com outros oposicionista locais.

É assim que integramos nesta amostra alguns desses documentos unitários, onde ainda não surge o nome do PS, mas onde participaram alguns dos fundadores desse partido a nível local.

Os restantes documentos referem-se, esses sim, aos primeiros tempos do PS em Torres Vedras, culminando no documento referente às primeiras eleições livres, as Constituintes realizadas em 25 de Abril de 1975, ganhas localmente a a nível nacional por esse partido.

Prometendo voltar ao tema de forma mais detalhada, aqui ficam alguns desses documentos para a história do PS em Torres Vedras (clicando sobre esses documentos podem lê-los em maior formato):



(4 de Maio de 1974)
(7 de Junho de 1974)
(Junho de 1974)


terça-feira, 21 de março de 2023

AFINAL, QUANDO COMEÇOU O CARNAVAL DE TORRES? por Jorge Ralha

                                  

Com a autorização do próprio, publicamos em baixo um texo do professor e investigador de história local Jorge Ralha, um contibuto informado para o debate sobre o "centenário" e a história do Carnaval de Torres

"Nos últimos meses, inúmeras vezes fui questionado por amigos e conhecidos, sobre o início do Carnaval de Torres no século XVI. Fui explicando que uma coisa é “carnaval em Torres”; outra, “Carnaval de Torres”. O primeiro, (quase) sempre houve; o segundo, tem caraterísticas próprias (como, no último documento, se procura identificar, previamente à resposta à questão).

Para não perturbar os festejos de um centenário no mínimo questionável, e que pode configurar uma enorme fraude cultural coletiva, o que se publica agora e de seguida, são documentos – todos eles existentes na Biblioteca Municipal - sobre o Carnaval de Torres.

Tudo o que é opinião, cabe ao leitor.

O cidadão que goste de questionar-se, em que conceito se revê?

a)Na descrição do século XVI em que se bate num galo (a perseguição de animais e, eventualmente, o seu manjar, não é uma raridade na Europa);

b)Na descrição de 1923 em que um rei de Carnaval chega à estação de caminho de ferro, forma-se um cortejo e visita as coletividades;

c)Na descrição de 1931 em que o rei acompanhado da rainha, assistem ao corso com carros alegóricos e batalha de flores, com entradas pagas cuja receita é a favor da Colónia Balnear Infantil (da Física).

Quando começou, afinal, o Carnaval de Torres Vedras: no século XVI? Em 1923? Ou serão os torrienses tão “à frente” que começam a comemorar o centenário do Carnaval de Torres oito anos antes?

Estranho, é que tantos sábios e experientes reunidos, ainda não tenham dito nada!!! (exceto Venerando Matos no Badaladas de 20.01.23, porem não retirando as lógicas conclusões). Ficará para o futuro o anacronismo de nas comemorações aparecerem um conjunto de casais reais cuja rainha só aparecerá no ano seguinte (1924).

Assentemos que a história se constrói segundo processos cumulativos no tempo, até se fixar numa matriz, mesmo assim, dinâmica. Exemplifico para melhor compreensão: a humanização percorreu um caminho até assentar na versão conhecida como homo sapiens sapiens. Ainda ninguém se lembrou de estabelecer o aparecimento do Homem nos espécimes anteriores do australopitecos ou do “homem” de Neanderthal, pois não?. Assim, o Carnaval de Torres, como todos os processos humanos. Quanto ao argumento da tradição, também houve tempo em que se considerava que o Sol girava em volta da Terra! O conhecimento humano emendou o erro, até hoje!

Uma nota de otimismo: talvez possamos começar a preparar convenientemente o centenário do Carnaval de Torres, em 2031, cujos cem anos se celebrarão obviamente no ano seguinte.

a)O Carnaval de Torres começou no sec. XVI?

(…) “andando uns moços folgando com um galo no dia de Entrudo de 1574 … trazendo os moços paus como é costume no tal dia para matarem o galo (…) passando pela porta do mestre de gramática … chegaram outros moços doutra escola e ali se juntaram uns com os outros, onde tiveram os seus passatempos e brincadeiras de brigas com o galo como sempre houve e (…) em zombaria (um estudante)  para rirem pegou na besta … e por acidente, atirando ao galo acertara no beiço dum moço de nome João criado de João Luís, barbeiro, morador na dita vila (…)”

FONTE: Documento citado por Venerando de Matos, Carnaval de Torres. Uma história com tradição (1923 – 1998), CMTV, 1998, p. 26 (adaptado)

b)O Carnaval de Torres Vedras começou em 1923?

(O relato dos acontecimentos de 1923 não está acessível na Biblioteca Municipal. Está o mesmo jornal – O Torreense - que é a fonte, também, para o ano seguinte que decorreu de forma semelhante, seguramente melhorada). Eis o que se escreve:

“Eram 10 horas e 17 minutos quando o comboio entrou na estação. Sobem ao ar muitos foguetes. A banda musical atroa os ares com uma marcha.

Sua Magestade* desembarca e é recebido pelos altos dignatários, dirigindo-se depois … para o coche que o aguarda.

A guarda de honra é feita, fora da estação, pelo batalhão de marinheiros de água doce.

(…) Organiza-se então o cortejo, que há de acompanhar Sua Magestade na sua visita às sociedades de recreio.

À frente um terno de trombeteiros … A seguir o batalhão de cavalaria e burraria de penachos ao vento.

Seguia o estandarte real escoltado por dois soldados de cavalaria montados em burros.

No primeiro carro seguia o ministério (depois) o carro do clero (…) o carro dos embaixadores (…)

Coche real , no qual seguiam, além de Sua Magestade, o presidente do ministério (…) e o chefe do protocolo (…) ministro da guerra. Cavalgavam à estribeira os generais (…)

Seguia o batalhão de marinheiros de água doce. (…)

Carro da burguesia (…)

Fechava o cortejo a Filarmonica Torreense.

Começa então a visita das colectividades começando pelo Casino (…) Seguiu-se o Grémio Artístico Comercial  (…) Na Tuna Comercial Torreense que a seguir foi honrada (…)

A seguir dirigiu-se o cortejo para o Largo da República onde, depois de serem passadas em revista as suas forças militares, se dissolveu. (…)**

*O rei, em 1923, ainda sem rainha que aparece em 1924

**Os atos que se seguem reportam-se especificamente a 1924

FONTE: O Torreense de 02.03.1924 (existe original do jornal na Biblioteca Municipal)

c)O Carnaval de Torres Vedras começou em 1931?

“Terá também realização este ano esta parodia a que se chama “O Rei Carnaval”.(…)

Suas Magestades (…) dignar-se hão também assistir ao corso que terá logar na Avenida, pelas 15 horas, destinando-se o producto da portagem à Colónia Balnear Infantil na Praia de Santa Cruz.

Para o corso consta estarem já inscritos bastantes carros alegóricos, cujos nomes oportunamente informaremos. Por este motivo se espera que esta festa, pela primeira vez realizada em Torres Vedras, venha a ter grande brilhantismo (…)

Fonte; Gazeta de Torres, 25.01.1931

(…)

A recepção e o cortejo de S. Magestade D. Carnaval VI

(…)

Meio dia. Largo da Estação e a Avenida 5 de Outubro formam um mar de cabeças. Esperam Ss. Magestades perto de 50 carros, entre automóveis e camionetes (…)

Largo da Graça. Recepção de S. Magestade a toda a Corte. Chegada de S. A. Real o Príncipe D. Pimpalhudo. Discurso-elogio do Duque de Al-Miar … E o cortejo põe-se outra vez em marcha para visitar as colectividades de recreio.

(…)3 horas – Abertura do Côrso e começo da Batalha de Flores. Todos os carros do cortejo. Muitos carros alegóricos, artísticos e lindíssimos (…)

S.Majestade com um cerimonial interessante corta a fita que veda a passagem do publico e inicia-se a Batalha de Flores. É agora a ocasião para enumerarmos e apreciarmos certos carros de reclame. Apontamos em primeiro lugar o monumental carro de Raul Rocha, de reclame à sua acreditada fotografia (…) o de João Rufino dos Santos, um grande e lindo sapato (…)

Sousa & Manarte, um enorme bacalhau (…) o de João Henriques dos Santos com seus 5 diabos malditos (…) o carro do vinho, com vindimadeiras e vindimadores (…) o carro das Ceifeiras (…) e muitos outros de real valor, dando ao côrso uma vida verdadeiramente agradável e interessante.

Brincou-se até às (…) 5 horas, num constante batalhar frenético e aguerrido. Presume-se receita regular em benefício da Colonia Balnear Infantil. Assistiram à Batalha mais de 3 mil pessoas.

(…)

Fonte: O Jornal de Torres Vedras, 22.02.1931 (existe original do jornal na Biblioteca Municipal)

d)A identidade do Carnaval de Torres

“O Carnaval de Torres acompanha o modelo de Nice mediado pelos de Lisboa e do Porto que a imprensa divulgava. É um Carnaval composto por “Corso” e “Batalha de Flores”, tendo o cocote uma feição local.

O “Rei Carnaval” é distinguido pela numeração ordinal, até 1961, como em Nice e em Lisboa. A partir de 1935 (é gralha; o ano correto é 1924), o Rei será acompanhado por uma “Rainha”, na composição de um travesti, tal como se tinha experimentado no Carnaval de estudantes de Lisboa. Mais tarde, aparecem as designações irónicas, cacafonias e de inspiração brejeira, iniciadas pelos estudantes de Lisboa e Porto.

Em Torres Vedras os reis iniciam o Carnaval, sendo recebidos, quase sempre, no “Largo da Estação”, que se equipara à Praça do Comércio, em Lisboa, e antes, à Praça Massena, em Nice. Mais tarde ser-lhes-á atribuída a “Chave da Cidade”, como se fazia em Nice e acabará queimado, como em Nice e outras personagens de muitas manifestações de Entrudo em Portugal.

A animação musical dos Corsos é feita em Torres Vedras, como em Lisboa, por bandas filarmónicas. Provavelmente, só a partir de 1960 aparecem “Zés Pereiras”, como em Lisboa e Porto, e “Gigantones” (porventura, também, cabeçudos), como em Nice e Lisboa. Nesta época instala-se um circuito sonoro ao longo do Corso que emite música de samba.

No “Corso” concorrem inicialmente viaturas particulares, “carros reclame” e carros alegóricos, tal como em Lisboa e no Porto (…)

Tudo concorre para ter existido, também em Torres Vedras, uma separação entre Entrudo “bárbaro” e Carnaval “civilizado”. As matrafonas, com raízes no Entrudo tradicional acabam por se impor (,,,)

O Enterro do Entrudo, com realizações anteriores, só é integrado no programa do Carnaval de Torres a partir de 1978 (…)

Uma originalidade tem o Carnaval de Torres: a ausência de separação entre atores e espetadores.

Apesar de todas as vicissitudes, em quase um século, o Carnaval de Torres deixou marcas no envolvimento cívico dos cidadãos na sua construção, na contribuição beneficente para instituições locais, no impacto económico ao longo dos tempos, na projeção da imagem do território e da sua notoriedade, e no clima social local de tolerância.”

Jorge Ralha, À espera do Carnaval de Torres (…) in Carnaval – História e Identidade, Turres Veteras XVIII, CMTV – Colibri – IAH, 2016, pp. 156 e 157

 por JORGE RALHA

quarta-feira, 8 de março de 2023

Mulheres Torrienses presas pela PIDE (documentos)

                                                 

O conjunto de documentos aqui revelados mostra as fichas da PIDE de 4 mulheres torrienses, ou ligadas a Torres Vedras, presas pela polícia política entre 1933 e 1974 (antes desta data ainda não havia PIDE, mas já existia policia politica, por isso não existem as fichas entre 1926 e 1932, como aconteceu com a nossa conhecida Maria "Cachucha" da Purificação, presa numa das primeiras revoltas populares contra a ditadura em T. Vedras).

É apenas uma pequena amostra, retirada do Arquivo da Torre do Tombo, que disponibilizou na internet mais de 30 mil fichas de presos políticos.

Uma homenagem às mulheres que, em Torres Vedras, lutaram pela liberdade.





sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023