quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Torres Vedras no tempo do “Sonoro”

(a audição do gramofone em Torres Vedras)

Hoje vivemos  dominados pela imagem. No princípio era o "verbo". Pelo meio tivemos o "sonoro".

Em 25 de Fevereiro de 1901 teve lugar a primeira audição do gramofone em Torres Vedras, por iniciativa de Cândido de Sousa Nascimento Vieira, que deu uma audição pública desse aparelho na sala do Casino.

O bichinho da musica e da sua audição “mexeu” desde muito cedo com os torrienses.
A existência de um grande número de bandas filarmónicas no concelho, durante a segunda metade do século XIX e o início do século XX, demonstra o interesse da gentes de então pela audição musical.

São várias as bandas filarmónicas referenciadas no concelho ao longo do século XIX e noprincipio do século XX.

A mais antiga é a “Filarmónica Torrense”,  fundada em 1818 pelo comerciante Manuel Sizudo e com a colaboração do padre Estevans, conhecida por esse nome a partir de 1821 e que acompanhou as tropas do Duque de Saldanha na Batalha de Asseiceira em 1834 (1).

A imprensa regional, que surgiu em 1885, refere várias notícias sobre a actuação dessa  filarmónica, em vários eventos públicos. Mais tarde, já no início do século XX, era também conhecida por “Banda Torreense” ou “Banda Velha”. Em 1925, os seus responsáveis receberam uma proposta da associação de bombeiros locais, que ela costumava acompanhar em cerimónias, para se agregar a essa associação, o que se concretizou em 1 de Maio de 1926, mudando a designação para “Banda de Musica da Associação de Bombeiros Voluntários de Torres Vedras”. Continua hoje em actividade, com o nome de “Banda dos Bombeiros Voluntários de Torres Vedras”. Uma cisão nesta banda em 1944 levou à criação da chamada “Banda Nova”, extinta em 1976.

(Banda dos Bombeiros Voluntários de Torres Vedras, em 1930)


Mas existiram muitas outras Bandas, referenciadas ao longo do século XIX e no início do século XX (até 1930) na imprensa local, algumas com sede em aldeias do concelho e ainda em actividade (entre parêntesis a data da fundação ou da primeira referência na imprensa local):

- Fanfarra 24 de Julho, fundada em 1885, e que chegou a montar um coreto próprio no Largo da Graça em 1888, antes de aí se instalar outro coreto em 1892;

- Fanfarra da Sociedade Recreativa Torreense ;

- Filarmónica do Maxial;

- Banda Filarmónica da Ermegeira ou Banda Filarmónica Ermegeirense (em 1900);

- Filarmónica da Ribaldeira ou Sociedade Filarmónica da Ribaldeira fundada em 25 de Dezembro de 1860 (ou Real Filarmónica da Ribaldeira, assim citada em 1906);

- Fanfarra de Sociedade de Instrução e Recreio Carmoense  (de S. Domingos de Carmões), fundada em 1 de Abril de 1889;

- Fanfarra ou Filarmónica do Turcifal, fundada em 1889 (Sociedade recreativa do Turcifal em 1907):

- Sociedade Filarmónica Incrível Aldeiagrandense (Aldeia Grande- Maxial), fundada em 5 de Agosto de 1894;

- Grupo Recreativo Musical, este de vida efémera (entre 1894 e 1902) (2).

 - Filarmónica União (referida em 1899), ou Fanfarra União Torrense (em 1911);

-  Tuna na Feliteira, referenciada em 1901 (3).

- Tuna do Grémio Artístico e Comercial(1904);

- Grupo Musical “Sol-e-dó” (1904);

- Banda Musical Ponterrolense ou Sociedade Musical Ponterrolense ou Filarmónica Ponterrolense (1923);

- Tuna Minerva Torreense (fundada em finais de 1917);

- Orfeão Torreense (1926);

- Grupo Musical “O Torreense” (em 1929).

Esta não é uma lista exaustiva, mas mostra a importância de divulgação musical no concelho (4).

Para além da actuação das filarmónicas em ocasiões festivas e em procissões, o único meio de reprodução sonora até então conhecido era o realejo:

“No outro domingo a praga dos realejos invadiu a villa. Foram nada menos de quatro que se fartaram de estafar a moer musica por essas ruas e largos” (5).

O gosto pela musica, como acto de afirmação cultural e de coesão social, esteve presente, desde muito cedo, neste concelho, facilitando a adesão popular aos novo meios de comunicação surgidos entre finais do século XIX e o início do século XX, que tinham como principal atractivo a difusão de musica.

Foi o que aconteceu com a divulgação, em Torres Vedras, no dia 2 de Dezembro de 1894 do fonógrafo, inventado por Edison em 1877, então o último “grito” na técnica da reprodução sonora:

“A maravilhosa invenção de Edison chegou finalmente a Torres Vedras e pode agora presencear as pessoas que desconheciam o phonografo, a nova creação daquele talento fenomenal.
“O Aparelho que foi adquirido pelo sr. J.S.d’Oliveira Miranda na ocasião da exposição de Chicago, continua dando audição na sala do Grémio de Torres Vedras, onde o público pode ir ouvir mediante pequena quantia” (6).

O Fonógrafo de Edison foi o primeiro aparelho capaz de gravar e reproduzir o som, usando grandes cilindros.


Em 1887 o alemão Emil Berlinder inventou outro aparelho mais prático de reproduzir o som, que era gravado num disco plano, o gramofone, novidade que chegaria a Torres Vedras, como referimos no início, em 25 de Fevereiro  de 1901:

 “Ao suspirar da tarde de uma segunda-feira de Fevereiro de 1901 Cândido Vieira prepara um estranho objecto dotado de comprido e largo funil montado sobre uma caixa de madeira que transmite voz. Pela primeira vez os frequentadores do salão do Casino escutam o som mágico do gramofone numa audição que os “deixou maravilhados pela distinção com que reproduz os trechos que executa, ouvindo-se mesmo a grande distância do salão(…). Dias depois a experiência seria repetida no Grémio Artístico” (7).

Segundo a imprensa da época, esse aparelho era o “mais aperfeiçoado que temos visto; reproduz os sons nitidamente à distância podendo ser ouvido simultaneamente por muitas pessoas, quando colocado no meio de uma sala sem que seja necessário adaptar tubos aos ouvidos”(8).


Aqueles dois passos, o da divulgação do fonógrafo e o da divulgação do gramofone, naquelas duas datas, foram importantes para introduzir, na então vila, o gosto pelas novas técnicas de reprodução do som e da musica, fomentando o espírito de curiosidade pelas novidades tecnológicas relacionadas com a audição musical.

Uma coisa acabou por levar a outra e, em 22 de Junho de 1924 teve lugar a primeira audição inaugural de rádio em Torres Vedras, promovida pelo “Rádio Club de Torres Vedras”, cujos estatutos tinham sido aprovados em 25 de Abril desse ano (9).

A rádio, também conhecida por “telegrafo sem fios”, foi inventada por Marconi em 1896, realizando-se a primeira experiência em 1901. A primeira emissão radiofónica regular teve lugar nos Estados Unidos em 1919 e em 1924 teve lugar a primeira emissão radiofónica regular em Portugal com a criação da “Rádio Lisboa”.


Em Torres Vedras, nesse mesmo ano,  um “um grupo de rapazes” tomou a iniciativa de fundar na “vila uma sociedade para a vulgarização da telefonia sem fios”(10).

“Uma casa de banho foi o primeiro estúdio onde se reuniram os mentores da inovação : Leonel Trindade, António Hipólito Júnior, Raul Rodrigues e António dos Santos” (11).

Esse grupo adquiriu um “moderníssimo aparelho destinado à recepção de concertos musicais transmitidos pelas estações inglesas, francesas, americanas, italianas, etc.” (12).

Criado apenas 4 anos depois da primeira emissão regular de rádio a nível mundial, os responsáveis por esta iniciativa tinham por objectivo a audição de emissoras estrangeiras, promovendo também  a audição pública e colectiva  de musica Jazz e Clássica que passava nessas rádios.

Criaram também uma “biblioteca onde os seus associados possam adquirir novos conhecimentos”.

“O tema fez furor em todos os centros de conversas dividindo opiniões entre crentes e cépticos e estabelecendo deste modo o contraponto de gerações. Os quatro mosqueteiros da rádio faziam ensaios de resultados animadores com o “aparelho rádio-telefónico” que seria inaugurado na tarde de um domingo de Junho de 1924 (…). Se os imensos curiosos que assistiram à experiência efectuada de um das janelas do Teatro-Cine esperavam ouvir o mundo desiludiram-se perante os gorjeios indistintos, postos no ar, que só tiveram melhoria adequada em Dezembro com a compra de um “aparelho moderníssimo [TSF] acompanhado de um Haute-Parleur” comprado em Lisboa nos Armazéns do Chiado. A partir deste momento o vibrante entusiamo de O Torrense ganhou corpo de esperança ao escrever que “em Torres Vedras vão pois ser ouvidos  concertos de jazz-band do Savoy Hotel de Londres” (13).

“O primeiro posto emissor-receptor do Rádio Club funcionou no prédio que, na Rua Dr. Aleixo Ferreira, fazia esquina para o Largo do Terreirinho”, mudando-se mais tarde a sede do clube para “o primeiro andar de um prédio (…) situado no Pátio do Capote, à Rua 1º de Dezembro” (14).

O “Rádio Club” durou cerca de uma ano, tendo-se dissolvido em 1925, integrando-se na Associação de Educação Física e Desportiva de Torres Vedras, fundada oficialmente em 9 de Abril de 1925 (15).

(anuncio da venda de "aparelhos de TSF" em Torres Vedras, num calendário de 1943)


Na década de 30, por volta de 1934, segundo registou-se “uma iniciativa populista que colocou nas principais praças da vila altifalantes (…) que difundiam “musica, conferências culturais, canto, teatro, etc.”. Proclamava o presidente da Câmara, Dr. Barros de Moura, que tal melhoramento pretendia “levar ao povo em geral ensinamentos de toda a espécie (…)”. Torres Vedras terá sido pioneira” neste tipo de iniciativa “que punha o pessoal a dançar ou a trautear cançonetas pelas esquinas (…).Relatos de futebol ainda não se escutavam mas estou convicto que o esquema serviu para ouvir alguma homília do cardeal Cerejeira ou discurso de Salazar” (16).

Em 1946 teve lugar uma efémera experiência de emissão de uma rádio local, uma iniciativa ensaiada por Alberto Veloso, emitindo em Onda Média.

Só na década de 60 surgiu a primeira rádio local com emissões regulares, gerida por funcionários e doentes do sanatório do Barro, Rádio Onda Livre, que iniciou as suas emissões em 1967, e, depois de uma interrupção, regressou, por pouco tempo, em 1976.

(anúncios da venda de rádios na década de 1960)

Recorde-se, a propósito, que, nos 60 e 70, generalizou-se e popularizou-se a aquisição de gira-discos pelas famílias de classe média. Em Torres Vedras casas como a “Soel” ou a loja da Casa Hipólito tiveram um papel importante na expansão desses aparelhos, vendendo também os discos em vinil, um bem raro e caro.

Deve-se à “Galeria 70” a criação, pela primeira vez no concelho, de uma seção especializada na venda e divulgação de discos em vinil.

(anuncio de 1964 de uma feira de vinis)


Mais recentemente, na década de 80 do século passado, desde 1983, Torres Vedras conheceu um amplo movimento pela legalização das rádios locais.

Depois de um período de puro amadorismo, em que se andava com um emissor às costas e se emitiam noticias e musicas, clandestinamente em casa de uns de outros, com recurso aos gira-discos e aos vinis dos envolvidos, fugindo ao controle das autoridades, realizou-se, em 11 de Novembro de 1985, a 1ª emissão da Radioeste.

Em 17 de Janeiro de 1986, a recém criada Cooperativa Regional de Informação Rumor promoveu um debate público sobre o movimento de rádios locais e em defesa da sus legalização.

Em Fevereiro desse ano, começou a emitir a Rádio Extremadura, projecto que uniu  a Rumor, o Clube de Radioamadores de Torres Vedras e outros. Uns meses depois começa a emitir  a Rádio Onda Livre, retomando  um projecto já aqui anteriormente mencionado. A estas, veio a juntar-se, mais tarde, em 1987, a Rádio Europa FM.

Só as Rádioeste e Rádio Europa, conseguiram ver reconhecida a sua legalização, por alvará de 9 de Maio de 1989, mantendo-se ainda hoje em funcionamento.

Como dizia um famoso tema musical dos anos de 1980, “o vídeo matou as estrelas da rádio”.

Pode ser um pouco exagerado, mas o tempo do “sonoro” deu lugar ao domínio da imagem e do digital, embora  a companhia da rádio continue a fazer parte das nossas vidas.

Esta é uma história que ainda está por fazer, deixando aqui algumas pistas para quem queira aprofundar o tema.

(1)    VIEIRA, Júlio, Torres Vedras Antiga e Moderna, 1926, pp.165-166;

(2)     referida por Célia Reis na sua obra, Cenas da Vida de Torres Vedras;

(3)     REIS, ob cit.;

(4)    está por fazer a história das bandas e filarmónicas existentes no concelho, algumas ainda em actividade, mas, para além da já citada referência na obra de Júlio Vieira e de referências na obra de Célia Reis, existe um interessante levantamento documental e fotográfico publicado na revista “Toitorres-Notícias”, nº 38, de Maio/Junho de 1996, coordenado por António Rodrigues e da autoria de Adão de Carvalho, sob o título de “A Arte Musical em Torres Vedras”.

(5)     Jornal de Torres Vedras de 20 de Outubro de 1885;

(6)    A Semana de 2 de Dezembro de 1894. Essa sessão tinha sido anunciada, dias antes, pela Gazeta de Torres Vedras na sua edição de 29 de Novembro desse ano;

(7)    SALES, António Augusto, O Guardador do Tempo, ed. CMTV, Janeiro 2007, pag.33,  segundo a Folha de Torres Vedras de 3 de Março de 1901;

(8)     A Vinha de Torres Vedras de 28 Fevereiro 1901;

(9)    O Torreense de  20 julho1924;

(10)A Nossa Terra de  20 de Abril de 1924;

(11)TRAVANCA, Cecília, Reconhecer Leonel Trindade, ed. Cooperativa de Comunicação e Cultura, TV, Out.  de 1999, pág. 25;

(12)A Nossa Terra de  20 de Abril de 1924;

(13)SALES, Ob. Cit.,  pág. 61;

(14)TRAVANCA, ob. cit, pág.25;

(15)ler também entrevista de  Venerando Ferreira de Matos a um dos fundadores, António dos Santos, publicada no Boletim da Física, III série, nº 41 de Novembro e Dezembro de 1943, também incluída no dossier “Para a História da Rádio em Torres Vedras”, coordenado por António Rodrigues e com documentação cedida por Adão de Carvalho, publicado na revista “Toitorres Notícias” nº40 de Novembro/Dezembro de 1996;

(16)SALES, ob. Cit. p.61;