terça-feira, 3 de outubro de 2023

Piratas na Costa Torriense

                                                 

(Actual Praia de Santa Rita, local de desembarque de piratas mouros)

Pirataria, corso ou…comércio marítimo?

Se cada uma dessas actividades é distinta, já não é tão fácil classificar quem a elas se dedicou ao longo da história. Por exemplo, o que dizer de Fernão Mendes Pinto? Pirata por conta própria nos mares asiáticos, corsário ao serviço da coroa portuguesa ou comerciante marítimo?

E que dizer da construção dos grandes Impérios Marítimos Europeus, como o Francês, o Holandês ou o Britânico, construídos com o recurso a corsários, meros piratas aos olhos de portugueses e espanhóis, detentores da exclusividade marítima pelo Tratado de Tordesilhas?

Passando por cima da controvérsia da designação, o que abordamos hoje aqui é a “pirataria” magrebina que assolou a costa deste concelho nos séculos XVII e XVIII (1).

A costa, junto ao velho convento de Penafirme, hoje em ruínas, foi por várias vezes assaltada por piratas “mouros”, principalmente no verão e ao longo do século XVII.

O facto de nesse local existirem várias fontes de água e de se situar longe de povoações que pudessem rapidamente defender a costa, terá motivado esses assaltos.

Segundo a opinião de frei Agostinho de Santa Maria, os corsários que frequentavam esta costa “vinhão muitas vezes a fazer nella água em suas lanchas, e a furtar o gado que podião, e também a cativar alguns pescadores, que fugindo delles se hião recolher no Porto Novo, ou estavão naquella praza reparando seus barcos & redes & por vezes intentarão acometer o Convento, para roubar, & cativar os religiosos”(2).

O próprio mosteiro antigo dos frades de Penafirme era alvo do ataque dos ditos piratas, não só para o roubarem, como “levarem os frades cativos” (3).

Por causa desses assaltos os frades de Penafirme tomaram várias iniciativas para se protegerem : reforçaram as portas do convento com trancas de ferro, armaram-se e passaram a vigiar a costa de dia e de noite.

Se avistassem os piratas durante o dia, faziam tocar a rebate o sino da torre da Igreja. Se os avistassem durante a noite, usavam como sinal um facho que acendiam, colocado na mesma torre.

No caso de ataques de maior gravidade usava-se um sistema de sinalização luminosa, com fachos que eram acesos nos locais mais altos, desde a costa até Torres Vedras. Daí os nomes ainda hoje conhecidos, de “ponta da Vigia”, em Vale de Janelas, “Alto da Vela”, em Santa Cruz, ou “Casal do facho”, no Varatojo.

Nesses tempos, os habitantes de Penafirme estavam isentos da prestação do serviço militar, para ocorrerem à defesa da costa.

Data dessa época o episódio que imortalizou o frade Roque da Gama. Ajudado por quatro lavradores, defendeu o convento de um ataque de 14 piratas, em 30 de Junho de 1620, conseguindo aprisioná-los (4).

Terá sido em resultado desse acontecimento que o rei Filipe III decretou “que ouvesse no Convento hua (...) praça de armas (...) & assim mandou dessem para o convento hus tantos mosquetes, & lanças, hum tambor, & frascos, que alli se conservão para esse fim; & ordem para cobrarem em Lisboa cada hum anno certa quantidade de polvora & balas” (5).

Mais do que o saque e a recolha de mantimentos, um dos principais objectivos desses ataques de piratas magrebinos era fazer cativos, actividade que alimentava um lucrativo negócio de resgate de cativos.

Embora com avanços e recuos, em relação à sua autonomia, desde o século XIII que a responsabilidade de recolher “esmolas” para resgatar cativos cabia à Ordem da Santíssima Trindade (6).

Do resgate de cativos efectuado por essa ordem, nas cidades muçulmanas do norte de África, existem vários “relações” acessíveis na net, disponibilizadas no site da Biblioteca Nacional de Lisboa.

Ao contrário do que aconteceu na costa da Ericeira ou mesmo na região de Peniche, esta última próxima de um dos principais refúgios desses piratas, as Berlengas, de onde partiam para as suas incursões nesta costa, não existem muitas referências a cativos “torrienses”. Mas elas, apesar de raras, existem.

Em 1739 foram resgatadas da cidade de Argel Sebastianna João de 46 anos, “casada com Pascoal Ferreira”, natural de S. Pedro da Cadeira, cativa havia 2 anos e meio, pela quantia de 630$000 réis, juntamente com a sua filha Maria Ferreira, com 12 anos, pelo mesmo valor (7).

Numa outra lista, de 1754, encontramos, entre os resgatados da cidade de Argel, um Domingos João que “tem ofício”, natural da Assenta, casado com Helena Francisca, de 60 anos, com 14 anos de cativeiro, resgatado pela quantia de 284$000 réis (8).

João Flores da Cunha, investigador da história torriense, encontrou nas suas buscas, além dos acima mencionados, mais os seguintes cativos “torrienses” resgatados: em 1674, de Argel, Estevão Lourenço de 42 anos, marinheiro, com 3 anos de cativeiro, liberto por 110.000 reis; em 1729, de Marrocos, Domingos Jorge, de 48 anos com 22 de cativeiro.

Pela origem dos resgatados, ficamos a saber que não foi apenas a costa norte do concelho a ser atacada por piratas, mas também a zona da Assenta.

Refira-se também que, perante a continuação e frequência dos actos de pirataria junto à foz do Alcabrichel, D. Afonso VI mandou construir uma fortaleza junto de Porto Novo, o forte de Nossa Senhora da Graça, cuja construção se iniciou em 1662.

Contudo, essa construção, mais do que ter por objectivo defender a costa do ataque de piratas, visava integrar um conjunto de fortalezas marítimas, entre o Cabo Carvoeiro e o Cabo da Roca, que defendessem o território de um desembarque castelhano, num período de intensas guerras entre os dois reinos, na sequência da restauração portuguesa de 1640.

Ainda em 1810, João de Lemos Lima Falcão, coronel do regimento de milícias de Torres Vedras contribui com 46$130 réis em “metal” e 32$600 réis em “papel” para o resgate de cativos (9).

Tema ainda por estudar, aqui ficam algumas referências ao testemunho dessa actividade na costa do nosso concelho.

(1)    – Sobre este tema, mas referindo-se à costa vizinha da Ericeira, existe um interessante estudo, da autoria de Maria da Conceição Ramos: A Pirataria Argelina na Ericeira do Século XVIII, editado pela Mar de Letras em 1998;

(2)    - SANTA MARIA, frei Agostinho de, Santuário Mariano, tomo II, ed. 1707, p.74;

(3)    - PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquíssima Província de Portugal da Ordem dos Eremitas de S. Agostinho, parte I, Lx, 1642, Livro III, tit. VI, fl.348 v;

(4)    - leia-se o resumo desse episódio em Luís, Maria dos Anjos Santos Fernandes, “A Vigilância e defesa da Costa” em A dos Cunhados – Itinerário da memória, ed. Pró- Memória, 2002, pp.127-130, com base no mesmo PURIFICAÇÃO;

(5)    - SANTA MARIA, ob. cit., p.75;

(6)    – leia-se sobre esse assunto a excelente síntese na obra citada de Maria da Conceição Ramos, no capítulo intitulado “O resgate de cativos – intervenção central e local”, ob. Cit em (1), pp 27 e ss;

(7)    – “Relação dos Cativos que por ordem de (…) D. João V” foram resgatados da cidade de Argel em 1739 (site da BNL), nºs 2 e 3 da lista

(8)    – “Relação dos Cativos que por ordem do fidelíssimo rey Dom Joseph I” foram “resgatados na cidade de Argel (…)” (site da BNL), nº 69 da lista;

(9)    – “Donativos para Resgate – 1810”, no site da BNL.