terça-feira, 28 de novembro de 2023

As “Festas” de Torres Vedras de 1929 -Inauguração do Mueu Municipal e rede telefónica

 

Inauguração da Linha Telefónica em T. Vedras - (Fonte: Torre do Tombo)

“Dois dias duraram elas.

“E se a função não foi de espavento, nem coisa de encher o olho (…) aos mais exigentes, foi, no entanto, qualquer coisa decente e compostinha, que não deixou em mal o bom nome da vila”(1).

Essas “festas”, realizadas em 28 e 29 de Julho de 1929, foram as da inauguração da rede telefónica urbana e do Museu Municipal de Torres Vedras, incluindo uma visita às obras do novo Hospital e a realização do 1º Concurso Hípico de Torres Vedras, contando com a presença do Governador Civil de Lisboa, o coronel Morais Sarmento, e do major João Luís de Moura, entre outras “altas individualidades.

Esse evento deu continuidade à inauguração da ligação telefónica entre Torres Vedras e Lisboa que ocorreu em 4 de Março, ocasião para a qual chegou a estar anunciada a presença do Presidente da República, o general Óscar Carmona, que acabou por faltar por “razões de saúde (2).

Vivia-se então o terceiro ano da  Ditadura Militar iniciada em 28 de Maio de 1926.

Esta enfrentava então um momento de encruzilhada quanto ao seu futuro, digladiando-se várias facções e várias tendências.

Uns viam no modelo da ditadura espanhola, liderada por Primo de Rivera, apoiada pelo rei Afonso XIII, uma possibilidade de restaurar a monarquia mantendo a ditadura, outros desejavam o regresso a uma República conservadora e democrática “regenerada” pela ditadura, mas o modelo cada vez mais presente era o de adaptar a realidade portuguesa ao fascismo italiano de Mussolini.

Ainda no início desse mês de Julho de 1929 tinha tomado posse o 6º governo da Ditadura, liderado pelo general Ivens Ferraz, fruto de mais uma crise política provocada por essa “guerra” surda entre fações da ditadura, da qual saiu mais reforçada a figura de Salazar.

Mas voltando às “Festas” de Torres Vedras, estas tiveram inicio pelas 11 da manhã do Domingo 28 de Julho, com a chegada dos “ilustres convidados”, o coronel Morais Sarmento, antigo Ministro da Guerra, ocupando nesta data o cargo de Governador Civil de Lisboa, e o major João Luís de Moura, “que fizeram a viagem de automóvel”, deslocando-se aos Paços do Concelho para uma sessão solene, onde aqueles dois militares do 28 de Maio receberam o título de cidadãos honorários de Torres Vedras.

No primeiro discurso dessa sessão, proferido pelo vice-presidente da Câmara, o Dr. António Freire, este recordou a acção de Morais Sarmento a favor da vila de Torres Vedras, quando ocupou o cargo de Ministro da Guerra, destacando a entrega “aos cuidados do Município do vetusto Castelo da Vila, cedendo ainda importantes parcelas de terreno” dependentes daquele ministério, enaltecendo o facto de, como Governador Civil, ter também beneficiando, com vários donativos, a Associação de Educação Física, os Bombeiros Voluntários e a sua Banda, a “Cantina Escolar”, o “hospital em construção” e a escola primária da freguesia do Maxial, entre outros apoios.

Após essa sessão solene, pautada por vários discursos de elogio aos convidados e aos feitos da Ditadura Militar, “os visitantes subiram ao segundo piso do edifício camarário a fim de ser inaugurada a rêde telefonica dentro da vila. E que conta com 65 subscritores”.

A primeira chamada foi efectuada, simbolicamente, por Morais Sarmento para o Hotel dos Cucos, para o “sr. General Trindade, presidente da Junta Autónoma das Estradas, aproveitando para “ lhe pedir “a conclusão da estrada de Vilar” para Torres Vedras.

Depois o Governador Civil efectuou um segundo telefonema para “o sr. General Ivens Ferraz”, o recém empossado Presidente do Concelho de Ministros do 6º governo da ditadura.

Recorde-se que estamos a falar da inauguração da rede pública telefónica. Em Março deste ano, como referimos, foi efectuada a primeira ligação simbólica entre Torres Vedras e Lisboa. Já existiam telefones em Tores Vedras, mas eram particulares, tendo  a primeira ligação sido  efectuada em 24 de Dezembro de 1885, ligando o casal das Lapas, em A-Dos-Cunhados, à vila. Antes já existia um sistema de comunicação por telégrafo inaugurado em 23 de Junho de 1865, ligando Torres Vedras a Caldas da Rainha e a Mafra, com uma estação provisória instalada no Largo do Terreirinho.

Continuando com as “festas”, por volta do meio-dia aquelas individualidades deslocaram-se à sala Irmandade dos Clérigos Pobres, anexa à Igreja de S. Pedro, para inaugurar o Museu Municipal, dirigido por Salinas Calado, destacando a citada reportagem do jornal Gazeta de Torres os principais objectos expostos ao público, como o bufete da Maceira, o foral manuelino de Torres Vedras, vários objectos de arte sacra, uma imagem em marfim, colecções arqueológicas de várias épocas e os oito quadros quinhentistas, então ainda atribuídos a Gregório Lopes.

Após essa inauguração, os “ilustres hospedes visitaram (…) as obras do novo edifício hospitalar, em construção, e cujo corpo central se encontra já bastante adiantado”, sendo recebidos “pelo sr. Joaquim dos Santos Vaquinhas, presidente da comissão edificadora e uma das pessoas que mais se tem esforçado para dotar a vila com uma instituição hospitalar digna, e que possa satisfazer as crescentes necessidades da população”. Contudo, esta obra só foi concluída e inaugurada em 1943.

Após essas visitas e inaugurações, seguiu-se um almoço no Hotel dos Cucos, que terminou com mais uma ronda de “uso da palavra” para enaltecer os convidados e a obra da Ditadura.

O programa de festas desse dia culminou com a realização do Primeiro Concurso Hípico de Torres Vedras, ao qual concorreram 40 cavaleiros, realizado em terrenos pertencentes ao proprietário das Termas dos Cucos, José António Vieira, e próximos desse empreendimento.

“Três escassas semanas atraz estava o campo ainda em cultura de grão. E os pinheiros ainda firmes e erectos em seu enraizado.

“Na altura devida, porem, as pistas estavam prontas, os obstáculos em seus sítios próprios, as vedações e ripados devidamente colocados”, tudo graças à “boa vontade” daquele proprietário e ao “esforço e trabalho incansável do capitão sr. José Lúcio Nunes”.

No dia seguinte teve lugar o programa religioso das “festas”, dedicadas a “S. Gonçalo, padroeiro da vila”, iniciando-se este segundo dia com uma missa solene, pelas 13 horas, e uma procissão a partir das 19 horas, que “percorreu as principais ruas da vila, sempre no meio do maior respeito, repicando os sinos festivamente e estralejando no ar constantes girandolas de foguetes.

“Muitas das janelas do percurso encontravam-se engalanadas com ricas colchas de seda e damasco”.

As “festas” terminaram à noite com iluminações no Largo da República “aonde os extensos relvados se coalhavam de tigelinhas minhotas e o arvoredo ostentava centenas de balões multicores”, com as bandas dos Bombeiros de Torres Vedras e de Infantaria 5 das Caldas da Rainha a tocarem alternadamente.

A encerrar, um “magnifico fogo de artifício fornecido pelo pirotécnico local sr. José de Oliveira Nunes” e “bouquets” coloridos “lançados do alto do Castelo de Torres Vedras”.

Ao longo dos dois dias a vila foi invadida “por muitos milhares de forasteiros vindos de toda a parte” e que, ao alvorecer da madrugada de terça-feira ainda deambulavam pelo Largo da República, antes de apanharem as “varias careiras de camioneta não só para Lisboa, como para outras terras”.

Este foi um dos primeiros casos, ocorridos em Torres Vedras, de uma prática comum ao longo do regime surgido no 28 de Maio, a das inaugurações de vários “melhoramentos locais”, com a presença de “altas individualidades” do regime, uma constante da propaganda política junto das populações da “província”, ao mesmo tempo que servia para demonstrar a fidelidade a esse mesmo regime, por parte das “elites” e autoridades locais.

(1)    – “AS festas em Torres Vedras”, in Gazeta de Torres, 4 de Agosto de 1928. A maior parte as citações deste artigo têm origem nessa reportagem;

(2)    - Ver edições de 4 e 14 de Março de 1929 de “O Jornal de Torres Vedras”;

sábado, 4 de novembro de 2023

A História trágico-marítima do litoral torriense

                              

Naufrágios na Costa Torriense

Torres Vedras é um concelho com cerca de 20 quilómetros de costa marítima, pelo que não é de estranhar a existência de muitas memórias de naufrágios nesta zona.

Numa área entre dois importantes portos de pesca, como Peniche e Ericeira, próxima do estuário do rio Tejo e fazendo parte do litoral que, durante séculos, ligou o Mar do Norte com o Mediterrâneo, pela costa deste concelho terão passado milhares de navios ao longo dos tempos.

Com uma costa de grandes arribas, cortadas pela foz de dois rios de dimensões razoáveis, como o Sizandro e o Alcabrichel, famosa pela agitação marítima e pelos temporais violentos, com a existência de três históricos, embora pequenos, portos de pesca, como Porto Novo, Cambelas e Assenta, não será de estranhar que aqui se tenham registado vários naufrágios ao longo dos séculos.

Tema ainda por estudar e investigar, aqui deixamos um pequeno registo para a construção da “história trágico-marítima” do litoral do concelho torriense.

O mais antigo naufrágio registado nessa costa data de 28 de Agosto de 1650, o “encalhe no areal de Penafirme, perto da Ericeira [?]” do galeão S. Francisco, acabado de sair dos estaleiros a caminho da Índia (1) pouco mais se sabendo sobre esse acontecimento.

Vai ser preciso espera mais um século e meio para voltarmos a encontra referência a outro naufrágio no litoral do concelho torriense, o do navio inglês London “na Praia Formosa, em Rendide” , ocorrido no início de 1801 (2)

Um dos aspectos curiosos dessa notícia parece ser a mais antiga referência à Praia Formosa.

No ano de 1823 ocorreram dois naufrágios, os mais trágicos ocorridos nesta região, o primeiro o da fragata da armada francesa “La Cornaline”, ocorrido em 2 de Fevereiro, frente a Cambelas,  que custou a vida a cerca de cem marinheiros, e o segundo, na madrugada de 10 para 11 de Julho, a norte do chamado Cabo Rendide, o paquete “Lusitano”, “um dos primeiros barcos a vapor (…) da carreira de Lisboa ao Porto”, morrendo mais de 60  pessoas, entre os seus 200 passageiros e 16 tripulantes (3).

Só em 1885 voltamos a encontrar notícias de novo naufrágio na costa torriense, ocorrido na Praia de Santa Cruz, no dia 31 de  Outubro, quando “um forte pé de vento deitou por terra as barracas dos banhistas, que fugiram apressados para terra; e quando os banheiros José Rosa e José Pisco estavam tratando de reunir as barracas desmantelladas, ouviram gritos de soccorro no mar, dados por seis homens que formavam a tripulação de um barco de pesca em imminente risco de soçobrar, o que de facto succedeu.

“Apenas dois dos tripulantes sabiam nadar, e portanto poderam conseguir alcançar a terra; aos outros quatro acudiram os valentes e benemeritos banheiros, que arrostaram com o embate das ondas, indo arremessar pelo mar dentro o cabo salva vidas, a que se agarraram os naufragos, conseguindo assim a sua salvação”(4).

No dia 12 de Abril de 1902 registou-se outra tragédia marítima quando o barco de pesca “Boa Viagem”, ao entrar no porto de Assenta, se virou com uma onda, morrendo dois pescadores, salvando-se o terceiro, o único que sabia nadar (5).

Apenas dois anos depois, em 13 de Junho de 1904, o vapor espanhol Aviles, encalhou, devido ao nevoeiro “no porto Chão ao sul da Foz da Areia”. O navio carregava carvão, com destino a Barcelona. A tripulação de “20 homens e mais 5 passageiros” conseguiu salvar-se, mas, ao chegarem a terra “foram assaltados por muitos indivíduos, verdadeiros piratas que lhes roubaram as roupas, os comestíveis e até os próprios remos da embarcação” (6).

Cenas idênticas passaram-se quando no dia 7 de Março de 1917 ocorreu nova tragédia perto da praia da Assenta com o lugre “Lusitano”, oriundo da Guiné portuguesa, naufragando com um carregamento destinado à C.U.F , falecendo 11 marinheiros, registando-se a pilhagem “dos salvados que deram à costa” (7).

Aquele que foi, talvez, o mais famoso naufrágio nas praias torrienses ocorreu em 5 de Fevereiro de 1930, famoso, não só porque ainda é possível, em certas ocasiões, observar um dos mastros do navio naufragado, como esse naufrágio deu nome a uma das principais praias de Santa Cruz, a “praia do Navio”.

Tratou-se do naufrágio do navio norueguês Hav (“Oceano” em português), vindo de Cardiff para o porto de Leixões, com um carregamento de carvão, um naufrágio que ocorreu após um conjunto de acontecimentos rocambolescos, quando era rebocado de Leixões para Lisboa, para ser reparado, tendo-se salvado toda a tripulação de 11 homens (8).

No dia 1 de Maio de 1947 um violento temporal apanhou de surpresa embarcações de pesca da Assenta. Uma delas, a lancha Olinda afundou-se à entrada do porto da Ericeira, para onde se pretendia refugiar, matando os três pescadores da Assenta (9).

Na madrugada do dia 2 de Outubro de 1970, quando se encontrava em dificuldades, o capitão do cargueiro holandês Shamrock Reefer conseguiu encalhar, propositadamente, esse grande navio na praia de Porto Chão, a sul da foz do Sizandro, conseguindo assim salvar toda a tripulação (10).



Um dos últimos naufrágios registado na costa torriense ocorreu no dia 15 de Fevereiro de 1978.

Foi o do cargueiro alemão Alchimist Emden que ocorreu junto à praia de Cambelas, um novo contributo para a fama dessa praia como “a praia dos naufrágios”.

Não se registando vítimas nesse naufrágio, temeu-se, contudo, um desastre de grandes dimensões “dada a quantidade e natureza da carga – 1150 toneladas de hidrocarbonetos”, situação que, felizmente, não se concretizou (11).

Deixamos, assim, este breve e limitado registo de alguns dos naufrágios ocorridos na costa torriense, esperando que contribua como ponto de partida para uma investigação mais aprofundada sobre o tema.

(Já com este artigo feito, ontem o mar de SantaCruz ceifou mais 4 vidas:)

(1)    - ESPARTEIRO, comandante António Marques, Catálogo dos Navios Brigantinos (1640-1910), Centro de Estudos de Marinha, Lisboa 1976, pág. 7 (disponível na net);

(2)    - Ofício do Juiz de fora de Torres Vedras, José Pedro Quintela, ao secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, datado de 20 de Fevereiro de 1801, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU CU Reino, Cx. 269, pasta 41);

(3)    - CUNHA, João Flores, “Estórias (especuladas) de Torres – Dois Naufrágios em 1823 junto ao Cabo Rendido”, in Badaladas de 5 de Abril de 2019. Sobre o naufrágio do Lusitano leia-se também CATARINO, Manuela, São Pedro da Cadeira – Histórias, Memórias e Património de uma freguesia torriense, ed. Junta de Freguesia de S. Pedro da Cadeira, Setembro de 2021, pág.143;

(4)    - in Jornal de Torres Vedras de 5 de Novembro de 1885;

(5)    - CATARINO, ob. Cit. pág. 143 e Folha de Torres Vedras de 20 de Abril de 1902;

(6)    - VIEIRA, Júlio, Torres Vedras Antiga e Moderna, 1926, pág.229;

(7)    - CATARINO, ob. Cit., pp. 143-144;

(8)    - ver uma interessante e completa reportagem sobre o assunto no site “Torres Vedras Antiga”, transcrita por Joaquim Ribeiro na reportagem “Pesquisa do blogue Torres Vedras Antiga revela novos dados – A História documentada da praia do Navio. Ver também a reportagem coeva do incidente nas páginas do jornal Gazeta de Torres de 9 de Fevereiro de 1930;

(9)    - CARÉ Jr., José, Memórias da Ericeira marítima e piscatória – séc. XIX-XX, pág. 43;

(10)                       - Ver Diário de Lisboa de 2 de Outubro de 1970. Baseei-me igualmente nas legendas de fotografias de Raul Guilherme, vendidas no site Delcampe;

(11)                       - CATARINO, ob. Cit, pág. 144.