No início do século XIX, Santa Cruz era ainda um modesto e pouco povoado lugar do litoral do concelho, longe ainda de se tornar num dos mais atractivos centros turísticos da região.
Aliás, o “turismo” não fazia parte da realidade desse tempo. Não existiam férias e viajar era privilégio de poucos e, mesmo estes, estavam limitados pelas dificuldades geográficas, físicas e técnicas para ultrapassar longas distâncias.
Sem pesca comercial de vulto, ou riqueza agrícola, apenas as suas azenhas proporcionavam algum rendimento económico aos seus habitantes.
Os actuais limites de Santa Cruz incluíam, no início do século XIX, três locais distintamente referenciados: Pizão, Casal d’Azenha de Santa Cruz e Santa Cruz.
Num recenseamento de 1843 (1) registavam-se 6 “fogos” (2) em Santa Cruz e 2 no Pizão, enquanto um outro recenseamento de 1862 (3) registava 4 “fogos” com 21 “almas” (4) em Santa Cruz, 1 “fogo” com 6 “almas” no Pizão e 1 “fogo” com 7 “almas” no casal d’Azenha de Santa Cruz. Como termo de comparação, tendo por base os recenseamentos oficiais da população portuguesa, Santa Cruz, abrangendo já os três lugares referidos, possuía, em 1911 10 fogos e 62 pessoas, em 1940 168 fogos e 157 pessoas, e, em 1991, 972 edifícios e 950 pessoas. Repare-se na proporção entre habitações e pessoas nos dois últimos censos referidos, reveladores do facto da maior parte das habitações funcionarem como segunda morada, situação que ainda não se registava no início do século XX.
TERRA DE AZENHAS
No princípio do século XIX, grande parte dos terrenos do litoral, junto a Santa Cruz, pertenciam à Igreja de S. Miguel, compreendendo de comprimento “de Norte a Sul huns três quartos de legoa, que he o que vae desde o pisão de Penafirme (…) pela costa do mar até à foz do sizandro, e de largura de nascente até ao mar hum quarto de legoa pouco mais, ou menos”. Do ponto de vista agrícola essa faixa de terreno “pela maior parte he fraco, e está ainda por cultivar, por causa do ar do mar” (5), bem como do avanço das areias, situação confirmada noutro documento da mesma época que, referindo “o areial da foz do Sizandro, e o que de Santa Cruz e Foz-Velha, a Oeste e nordeste de Torres Vedras”, regista que “estes areais estão completamente desguarnecidos, e as areias movem-se n’elles livremente” (6).
Em contrapartida os “arêaes próximos ás ribas da costa do Occeano no nosso concelho, especialmente nos nomeados sítios de S. Cruz e pizão, são muito abundantes d’agoa boa e perenne, e até de nascente copiosas, algumas das quaes fazem mover os pisões (…).Muitas dessas nascentes porem são desaproveitadas, por incúria dos habitantes d’aquelle sitio; a maior, e que faz mover a azenha do Pisão (…), e de óptima àgoa, hé a chamada fonte da Estacada, que nasce no fundo dum monte d’arêa. Hé pelo motivo da sua abundância d’agoas, que esta nossa costa se torna muito singular (…)” (7).
A existência de Azenhas no litoral do concelho, próximas de Santa Cruz, vem de longa data e parece ter constituído a principal riqueza desses sítios, fazendo mover engenhos de apisoar panos, dois dos quais ainda funcionavam na segunda metade do século XIX, enquanto um terceiro já se encontrava arruinado : “Os dois engenhos mencionados pelo A” (A= autor, Madeira Torres) não herão situados na raia meridional do terreno do convento, mas sim na occidental; hum próximo do cazal de Valle de Janelas sobre as ribas do mar, o qual tinha também azenha, e já não existe, por estar tudo demolido; e outro próximo da Aldêa de S. Cruz de Ribamar, mas ao Norte della, a extrema do dito terreno, o qual ainda existe, e tem juntamente azenha, movendo-se tudo ao mesmo tempo, quando convem, pela agoa da chamada fonte da Estacada (…). Mas em vez d’aquelle demolido há outro mais moderno (…) na Azenha da dita S. Cruz, o qual está no terreno do casal pertencente á Freg.ª de S. Miguel d’esta villa, de quem he foreiro” (8). Esta última azenha mencionada deverá ser aquela que existe restaurada junto à “Torre”.
Os mesmos autores que temos citado, referem ainda a existência de algumas importantes riquezas naturais, descobertas ou exploradas no século XIX, junto ao litoral de Stª Cruz: “Nas ribas do occeano na nossa costa (…) encontrão-se muitos veios de carvão de pedra, que temos visto, como por ex. na da praia chamada Formosa, próximo à povoação de S. Cruz de Ribamar da parte do Sul, donde há poucos annos Antonio Jacintho da Gama Leal desta villa mandou extrahir alguns sacos d’elle que se consumio em sua casa ( e até mais pela terra dentro junto a huma das fontes da dita povoação de Stª Cruz chamada de agoa férrea, onde apparece também enxofre). E são estes os veios, ou minas de carvão de pedra, que em 3 de Junho de 1858 registou a p 73vº do Lº 31 do Reg.º da nossa câmara, Antonio Melchior Olivero de Lisboa, dizendo existir = no sitio das ribas do Occeano chamado oiteiro da vela, Freguezia de S. Pedro da Cadeira, mas em terreno da de S. Miguel desta villa, e com os veios em toda a extensão do dito oiteiro, e immediação tanto na direcção do penedo do Guincho, como no da Fóz da Arêa = (i.e., foz do Sizandro). E bem assim se encontra na riba da praia chamada Mexilhoeira ao Norte da nomeada Stª Cruz (…)” (9).
Confirmando referências de outras épocas sobre esta praia, não encontramos qualquer registo de actividade piscatória de vulto nesse lugar, não porque o mar que a banhava não fosse rico, mas porque as condições geológicas da costa, neste sítio, não eram propícias a abrigar barcos de pesca. Nas proximidades, apenas o lugar de Porto Novo oferecia tais condições. A única riqueza marítima explorada parece ter sido apenas a apanha de algas, usadas como fertilizante, documentada no início do século XX.
Sem pesca comercial ou riqueza agrícola, apenas as suas azenhas proporcionavam algum rendimento económico aos habitantes desta praia.
AS SUAS FESTAS
Pelo menos em duas ocasiões anuais Santa Cruz animava-se com a presença de gentes das redondezas: uma, no início de Maio, com a festa em honra de Santa Helena, também conhecida pela Festa de Vera Cruz, descrita pelo cronista J. Tavares no jornal “A Semana” de 10 de Maio de 1888: “Havia festa a Santa Helena, na (…) praia de Santa Cruz. Cá da villa tinham-se organizado caravanas que realisaram corajosamente a trajectória por leitos tão escabrosos e descurados (…). Vamos dar entrada em Santa Cruz. São 7 horas da manhã: Chegámos ao Alto dos moinhos, e o Occeano troou numa salva marulhanta. Os nossos carros, em bicha, puchados a duplo tiro, na frente arautos a cavalo, ao lado moços d’estribeira (…).
“As casinhas brancas do logar, pittorescamente amontoadas sobre o dorso do monte arenoso, encheram a nossa vista, cançada de ver plainos de matto razo, ou massiços de pinhaes rachiticos (…).
“Àquella hora a modesta população não dava ainda siignaes de festa. Apenas notei, como denuncia, o caminho em redor da tosca ermida todo atapetado de malva roza”. Depois do almoço “cá fora começava a desenvolver-se a animação festiva. A musica cumpria furibundamente os seus deveres arraialegos. Quando sahi estava já o largo mesclado de barretes, trajes garridos de mulheres feias, pontas de varapaus ferrados, tudo em grupos falladores, rodeando as quintandas de vendedores de vinho e polvos fritos que, em numero de 16, estavam disseminados pelo chão.
“Nas varandas das testadas as raparigas dançavam ao som do harmonium, e os rapazes no largo jogavam a bola, indiferentes à festa d’ermida, que foi só para meio cento de pessoas que lá poderam apertar-se dentro, a ouvir a missa de festa, esmagando as camarinhas de suor no rosto com os signaes da cruz.
“O aspecto da meia encosta que vae morrer à praia, para onde olha a ermida, era deveras pittoresco, pelo matriz tumultuoso que a animava (…).
Outra festa, ao que parece já extinta nos finais do século XIX, pelo menos nos moldes que passamos a descrever, realizava-se pelo S. João. Nesse dia “dirigem-se homens e mulheres com um junco verde, que também atão ao pescoço dos seus animais do gado bovino, vaccum e asinino e nas bocas das quartas da agoa, espetão caniços no meio das suas searas, põem flores , e plantas aromáticas nos telhados sobre as portas : fazem no sítio de Santa Cruz na véspera do Sancto fogueiras, não todos ao mesmo tempo, mas cada hum por sua vez, depois do seu vizinho, n’ellas defumão os seus bois como o fumo das plantas aromáticas, que ahi tem e vão finalmente banhál-os ao mar no dia Sancto, em cuja véspera concorre igualmente muita gente a banhar-se”(10).
BANHOS DE PRAIA
A frequência de Santa Cruz por banhistas, antes da primeira metade do século XIX, acontecia apenas em raras ocasiões, como a anteriormente descrita. Contudo, um acórdão da Câmara, de Outubro de 1828, refere a ausência, em Torres Vedras, do cirurgião Joaquim Teles de Miranda, facultativo do partido médico municipal, por estar “em banhos do mar no cítio de Santa Cruz” (11).
Em 1870 a praia de Santa Cruz foi visitada por dois ilustres banhistas, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, que aí permaneceram durante os meses de Agosto e Setembro. Essa visita foi descrita pelo próprio Batalha Reis nas páginas da “Gazeta de Torres” em 5 de Maio de 1925:
“A povoação reduzia-se então a poucas casas espalhadas sobre as ribas, como se sabe muito pitorescas, altas e de estratos vivamente coloridos (…).
“Moravamos n’uma casinhola terea, das ultimas habitações, ao sul, que voltava as costas a todas as outras, de telha van e adobes rebocados, porta sempre aberta para um campo valado de piteiras, á beira d’uma quebrada profunda, por onde, de inverno a agua corria em torrente. O pequenino prédio pertencia ao Francisco Banheiro, que, com a Madalena, sua mulher, nos tratava dos quartos, da cosinha e das roupas [esta casa ficava situada por detrás da actual Torre e ainda existiam há poucos anos].
“O Antero já então estava doente (…). Tomava experimentalmente, banhos de mar, que o não melhoravam, e nadava ainda com vigor. Caminhava muito para se fatigar em longos passeios (…)- chegávamos assim, frequentemente ao alto da vela, á Silveira, á Ponte do Rol a ao Porto Novo, através das Dunas (…)” (12).
Na década de 80 do século XIX começou a acentuar-se a frequência regular de Santa Cruz, por banhistas, situação que levou o município torriense a mandar construir, em 1883, uma fonte de água e uma estrada municipal de ligação entre Torres Vedras e aquela praia, concluída em 1902 (13).
O percurso por essa estrada foi descrito por Gabriel Pereira, que a percorreu em 27 de Setembro de 1905: “A estrada vae ao campo do Amial, pelo sopé do nome de S. Vicente, que nos fica á direita; depois pela esquerda a falda do Varatojo. A estrada segue na grande várzea, comprida e ampla, importante, onde o Sizandro abre o seu leito.
“Vinhas magnificas, cepas fortíssimas carregadas de esplêndida uva. A estrada incómmoda pela muita poeira (…).
“(…) Passamos por boas propriedades, e alguns grupos de casaes.
“Os campos estão animados, as estradas concorridas; é uma festa agora; a grande festa das vindimas(…).
“Todos estes terrenos são de alluvião moderno, mas passadas três quartas partes do caminho começa a apparecer a areia marítima. Cultiva-se milho, feijão frade, grão de bico.
“Passamos junto de alguns moinhos em grande businada, as cordas cheias de louça, dezenas de vasos de barro; os moleiros destes sitíos são grandes amadores d’esta musica.
“Passamos por alguns pinhaes, e chegamos a Santa Cruz, logar formado por algumas casas antigas, e bastantes modernas (…)” (14).
O aumento do movimento desta praia, a partir dos primeiros anos do século XX esteve na origem da iniciativa do vereador António Cabral levar à aprovação pela Câmara, em 1909, de uma decisão, segundo a qual, “durante os meses d’Agosto, Setembro e Outubro de cada anno a câmara mantivesse a illuminação publica do logar e praia de Santa Cruz, dos candieiros que por subscrição da colónia balnear d’alli, fossem adquiridos e collocados não indo o seu numero alem de 8” (15).
O mês de Setembro era então o mais movimentado e animado naquela praia. Frequentavam então aquele sítio as famílias mais abastadas de Torres Vedras, que aí construíam segunda habitação. Os menos abonados ficavam-se pelos banhos no rio Sizandro, junto aos Cucos, só se deslocando àquela praia em ocasiões especiais, em burricadas.
Desde que, em 1885, se iniciou a publicação do primeiro periódico torriense, que se encontram inúmeras referências nas suas páginas, nos meses de verão, à deslocação de personalidades e famílias “ilustres” de Torres Vedras para “banhos” em Santa Cruz ou às várias festas que aí se organizavam para os receber, com se referia na seguinte notícia:
“Reina grande animação na encantadora praia de Santa Cruz, onde se acham já muitas famílias do nosso Concelho.
“É admirável o tempo que ali se passa, sem o ruído que se nota em outras praias (…). As distracções succedem-se (…).De manhã o banho, os passeios pelas ribas, durante o dia os jogos, as conversas de algum bom cavaqueador; os jantares, as merendas ao ar livre, os bailes improvisados; enfim, passa-se ali uma vida amena e aprazível” (16).
A partir dos finais do século XIX acentuou-se o crescimento urbano do lugar, já de modo desordenado, como nos revelava um cronista da época: “As habitações rebelaram-se contra as symetrias modernas e foram-se construindo ao acaso, trepadas nas alturas; os proprietários, respigando ainda umas noções do Bello nos destroços das theorias relistas, foram escolhendo os bons sítios e d’ahi os bons panoramas que de todas ellas se disfructam” (17).
Praia das elites torriense dos finais do século XIX, princípios do século XX, é a partir dos anos 20 deste século que uma Comissão de Iniciativas desenvolve turisticamente aquela praia , embora o turismo de massas, que tanto contribuiu nos últimos anos para descaracterizar esta praia, só se tenha iniciado já na década de 60 do século passado.
Ao respigarmos de vários documentos as referências que serviram de base a este artigo, quisemos recordar uma outra Santa Cruz, temporalmente ainda não muito distante de nós, mas tão diferente do reboliço actual.
(Nas transcrições dos documentos mantivemos a grafia original)
(Este texto foi anteriormente publicado no FrenteOeste de 15 de Agosto de 1996)
NOTAS:
(1) – Recenseamento de todos os cidadãos desta Freguezia – S. Pedro da Cadeira (…) de 1843, Arquivo Municipal de Torres Vedras (AMTV).
(2) – Um “fogo” era a designação tradicional de uma residência familiar.
(3) – Relação por ordem alphabetica dos lugares, aldêas, quintas e casais, que há no termo da Villa de Torres Vedras (…) feita em 1862, apêndice nº9 do manuscrito de anotações à parte económica da Descripção Historica (…) de Madeira Torres.
(4) – Uma “alma” era uma pessoa.
(5) – Citada nas anotações manuscritas de José Eduardo Cezar e António Jacinto da Gama Leal, à parte económica de Madeira Torres, obra inédita, concluída por volta de 1865, depositada no AHTV, página 11 do 6º caderno [daqui para afrente designada por AM(anotação manuscrita)].
(6) – Relatório Àcerca da Arborização Geral do País, 1868, pág.43.
(7) –AM, pág. 8 do 5º caderno.
(8) – AM, pág. 8 e 9 do 7º caderno.
(9) – AM, pág.14 do 8º caderno.
(10) – AM, pág. 5 e 6 do 7º caderno.
(11) Livro nº 26-A dos acórdãos da Câmara, 1 de Outubro de 1828, folha 275 (AMTV).
(12) Jayme Batalha Reis, “Antero de Quental em Santa Cruz (Recordação)”, in Gazeta de Torres, 5 de Maio de 1929.
(13) Julio Vieira, Torres Vedras Antiga e Moderna, 1926, pág. 184 e 185.
(14) Gabriel Pereira, “Torres Vedras – Notas d’arte e archeologia – (1906)”, in Pelos Suburbios e Visinhanças de Lisboa, 1910, pág.297 e 298.
(15) Livro de Actas da Câmara nº 36, sessão de 26 de Agosto de 1909, folha 286 vº (AMTV).
(16) Voz de Torres Vedras, 1 de Setembro de 1888.
(17) Carlos Velloso, “AS Festas de Santa Cruz”, in Voz de Torres Vedras, 8 de Setembro de 1888.
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