quarta-feira, 23 de outubro de 2024

João de Barros presta homenagem à Colónia da Física de Santa Cruz


 No meio do arquivo de família, decobri um interresante original, da autoria de João de Barros (1881-1960), que ele dedicou "aos ilustres funddores e directores da Colónia Balnear Infantil da Praia de Santa Cruz", documento esse datado de 30 de Agosto de 1931.

Sobre João de Barros e a sua ligaçao à praia de Santa Cruz já AQUI nos referimos.

Sobre a Colónia Infantil à qual o texto é dedicado, aconselhamos a leitura atenta do estudo que Cecília Travanca Rodrigues dedicou a essa iniciativa, no âmbito do estudo à "Física de Torres", intitulado "A Colónia Balnear Infantil" (pp. 191 a 203 in História da Associação de Educação Física e Desportiva de Torres Vedras", coord. de Cecília Travanca e Carlos Guardado, ed. 2012).

Não deixa de ser curioso que o texto date do verão de 1931, apenas dois anos depois  daquele projectoter sido pensado. 

O texto intitula-se "Infância" e é uma reflexão sobre esse estádio da vida, na perspectiva de um autor que dedicou grande parte da sua vida a reflectir sobre a educação e que reflecte a forma como a infância era vista há cem anos atrás.

Aqui deixamos reproduzidas essas páginas:

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Os primeiros “torrienses”

(Trindade e Paço, 1964)

Foi há 60 anos que Leonel Trindade e Afonso do Paço elaboraram a primeira síntese sobre o que então se sabia àcerca dos primeiros habitantes da região deste concelho. Trata-se da publicação, na revista Arquivo de Beja, do estudo intitulado “Subsídios para uma carta arqueológica do concelho de Torres Vedras – I – Algumas estações paleolíticas”, publicado como separata em 1964 com a data de Abril desse ano.

Fazendo um breve historial sobre os primeiros trabalhos arqueológicos onde se fizeram descobertas sobre a ocupação paleolítica nesta região, em especial junto ao litoral de Santa Cruz, trabalhos esses iniciados em 1934, os autores fazem o levantamento desses primeiros achados, acompanhados por ilustrações da autoria de Maria João Lopes do Paço e por um mapa com a sua localização neste concelho (mapa que ilustra este artigo).

Os primeiros objectos desse período, cerca de um milhar, foram recolhidos na costa de Santa Cruz, na Ponta da Vigía, a norte de Santa Cruz, no chamado lugar de “A Mina”, a este daquela localidade e perto do “Porto Escada”, a sul.

A maior parte desses materiais líticos datavam, uns do paleolítico inferior, em pequeno número, e a maior parte do paleolítico superior.

Anos depois, Leonel Trindade descobriu outras estações arqueológicas e vestígios do Paleolítico Superior, “uma na zona de Cambelas e outra no Rossio do Cabo”, esta situada na freguesia de A-Dos-Cunhados, e numa estação “a W. do Casalinho”.

Do mesmo período existiam à época, no Museu Municipal, alguns utensílios desse período, um biface recolhido por outro importante arqueólogo local, Aurélio Ricardo Belo, no “Vale de Carros”, no Maxial, outro recolhido por Leonel Trindade junto ao cemitério da então vila de Torres Vedras.

Na freguesia da Silveira tinham também sido recolhidos vestígios líticos desse período no Casal da Portela e no Casal das Pedrosas.

A partir de então o conhecimento sobre esse período, o mais antigo com ocupação humana na região, conheceu um grande desenvolvimento, com novas descobertas e publicações que actualizaram o esse conhecimento, com destaque para a nova síntese sobre a pré-história torriense da autoria de Cecília Travanca (ver bibliografia) e para a monumental obra de João Zilhão em dois volumes, O Paleolítico Superior da Estremadura Portuguesa, de 1997.

Com base nessas obras e noutras indicadas na bibliografia publicada em baixo, é possível fazer um breve levantamento sobre as estações paleolíticas e o tipo de vestígios recolhidos que documentam a primeira ocupação humana deste território.

Chama-se contudo a atenção que este é um tema sempre em evolução, não só em relação a novas descobertas, como em relação à datação para cada período, pelo que alguns dados referidos podem já estardesactualizados:

1 – Paleolítico Inferior ( 3 milhões de anos a 300 000 aC) (Na região europeia a ocupação humana só aconteceu há cerca de 800 mil anos atrás).

1– 1 –  Acheulense (400 000 a 300 000 aC) – Bifaces como vestígios mais frequentes, usados pelo Atlantropo

1– 1 – 1 – Pré – Acheulense:  Santa Cruz ( Corresponde a três sítios ao longo do litoral desse sítio .Ponta da Vigia, a norte, “a Mina”, a Este e perto do “Porto da Escada”, a Sul); perto da fonte da Água do seixo, Santa Cruz; e Seixosa (?).

1– 1 – 2 – Acheulense Médio: Casal das Pedrosas, Silveira; Casal da Portela, Silveira; Torres Vedras, área do mercado municipal; Vale de Carros, Maxial

1 – 1 – 3 – Acheulense Superior:  Seixo, Santa Cruz.

1 – 1 – 4 – Outros sítios com vestígios do Paleolítico Inferior: Ponte do Rol; Galegueira, Ponte do Rol; A-Dos-Cunhados; Carrascais, A-Dos-Cunhados; Sobreiro Curvo, A-Dos-Cunhados; Gruta de  Lapa da Rainha, Maceira.

2 –Paleolítico Médio (300 000 a 35 000 aC, última glaciação (Wurm), ocupação Neanderthal):

Penafirme, A -Dos- Cunhados;  Casal do Soito, Ponte do Rol; Casal do Calvo, Ponto do Rol.

3 - Paleolítico Superior (35 000 aC – 10 000 aC) – Homo Sapiens Sapiens.

3 – 1 – Aurinhacense (28 000 aC  – 26 000 aC) (Cro-Magnon) (Primeiras manifestações de arte figurativa: figuras de animais muito esquemática e signos gravados em blocos de calcário):Santa Cruz; achado isolado, em lugar desconhecido.

3 – 2 – Gravettense e Proto-Solutrense ( 26 000 aC – 21 000 aC).Período caracterizada pela indústria do buril de truncatura retocada. Na arte caracteriza-se pelas estatuetas  femininas em marfim (“Vénus”)

São deste período, neste concelho, espólio constituído por artefactos líticos, encontrados em Cova da Moura (Cambelas, S. Pedro da Cadeira) e em sítio ao ar livre localizado no Vale da Fonte ou Vale de Almoinha, a 500 metros da mina de água que lhe deu aquela designação.

 3 – 3 -  Solutrense (21 000 aC – 16 000 aC).Período caracterizado pela grande perfeição na técnica de talhe. A “folha-de-loureiro” e a raspadeira são dois dos instrumentos típicos deste período:

- Vale Almoinha, Cambelas, S. Pedro da Cadeira. A causa provável da escolha deste lugar como acampamento pré-histórico pode dever-se à existência, a 100 metros do lugar de uma nascente de água doce, já existente na época. A maioria do material lítico é constituído por peças em sílex (95% do total), algumas em quartzo, nomeadamente raspadeiras, “folhas de loureiro”, lascas, lamelas, lâminas, núcleos.

– Lapa da Rainha, Maceira. Gruta de abrigo esporádico, tendo servido fundamentalmente de toca de carnívoros. Para além de vestígios ósseos humanos fossilizados, foram encontrados ossos de animais já extintos na região, como o rinoceronte e a hiena.

3 – 4 – Magdalenense (16 000 aC – 10 000 aC). Caracteriza-se pelo importante desenvolvimento da indústria óssea e pela qualidade das obras de arte mobiliária ou parietal. Transição entre Paleolítico  e o Mesolítico:

- Baio ou Cerrado Novo ou W. do Casalinho, junto à foz do rio Sizandro, margem esquerda , Gentias do Meio, S. Pedro da Cadeira. Produção de lascas e lamelas. Data provavelmente de entre cerca 11000 e de 10500 aC. Os seus vestígios  prolongam-se pelo Neolítico;

-  Vale da Mata, na margem esquerda do rio Sizandro,Gentias, S. Pedro da Cadeira;

- Rossio do Cabo, Santa Cruz, no sítio onde se construiu o campo de tiro, 3 km. a NE. da praia de S.tª Cruz. Parece “ ter sido um acampamento de superfície, de pequena extensão, ocupado por caçadores durante um período de tempo relativamente curto” (RODRIGUES, 1999, p.60).

Esta estação arqueológica foi descoberta por Leonel Trindade em 1950.“A estação do Rossio do Cabo é um contributo importante para a arqueologia portuguesa: confirmando a influência europeia no ocidente da Península em pleno Paleolítico Superior, dá-nos elementos para verificarmos o estabelecimento no litoral estremenho de tribos aurinhacenses. Estas viveram, por certo em espaço de tempo reduzido, num acampamento ao ar livre, trabalhando com segurança material que iam buscar (...) a localidades distantes”, como Runa, Torres Vedras e, talvez, Rio Maior, Nazaré e Lisboa. (FREITAS, 1959, p.62).

– Pinhal da Fonte, Cambelas, S. Pedro da Cadeira.

3 – 5 – Outros lugares com vestígios do paleolítico superior: a SE de Casalinhos de Alfaiates; Escaravelheira (Vestígios líticos, do paleolítico superior final ou Epipaleolítico); Porto Escada, a sul de Santa Cruz; lugar da Mina Santa Cruz; Vale do Pizão, Santa Cruz; Vale do Cortiço, Santa Cruz; Ponta da Vigia, Santa Cruz; Póvoa de Penafirme; Varatojo; Fonte Grada;  Ponte do Rol; Casal do Calvo, Ponte do Rol.

Achados de superfície: Galegueira, Ponte do Rol; Casal da Portela, no vale do Sizandro; Vale do Covo, A-Dos-Cunhados; Cabeça Ruiva; Curral Velho, S. Pedro da Cadeira; Concheiro do Pinhal da Fonte, S. Pedro da Cadeira.

Em termos gerais, num período marcado pelo nomadismo dos grupos humanos, e tendo em conta as condições climatéricas, geográficas e naturais, muito diferentes das actuais, a maior parte dos vestígios desse período, encontrados neste concelho, concentram-se no litoral e ao longo do vale do Sizandro, que teriam também características diferentes das actuais geográficas (em relação à linha de costa, nível do mar e ao leito dos rios).

Não queremos terminar sem destacar o trabalho esforçado realizado aos longo dos anos pela equipa de arqueólogos torrienses ligados ao Museu Municipal Leonel Trindade.

 

BIBLIOGRAFIA:

CARVALHO, Emmanuel e outros, “More Data for na archeological map os the county of Torres Vedras” (paleolítico), in Arqueologia, nº 19, Junho de 1989, Porto 1989, pp. 16 a 33.

FREITAS, Cândido Manuel Varela de , A Arqueologia do Concelho de Torres Vedras (Contribuição para o seu estudo até à época Lusitano-Romana), Dissertação de licenciatura no Curso de Ciências Históricas e Filosóficas, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,  2 volumes, Lisboa 1959,

“Freguesias”, suplemento do jornal BADALADAS, de T. Vedras, 1998, 1999 e 2000.

LEEUWAARDEN, Wim Van e QUEIRÓZ, Paula Fernanda, “Estudo de Arqueobotânica no sítio da Ponta da Vigia (Torres Vedras)”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, Vol.6, nº1, 2003, pp. 79 a 81;

LOURENÇO, Sandra, e ZAMBUJO, Gertrudes, “Duas novas datações absolutas para a Ponta da Vigia (Torres Vedras)”, Revista Portuguesa de Arqueologia, Volume 6, nº 1, 2003, pp. 69-78;

LUNA, Isabel de, “Investigação arqueológica em Runa”, in “Freguesias” (Runa), suplemento nº 13 do jornal Badaladas, 15-10-1999.

PAÇO, Afonso do e TRINDADE, Leonel, Subsídios para uma carta arqueológica do concelho de Torres Vedras, separata do “Arquivo de Beja”, vol.XX-XXI, 1963-1964, ed. Minerva Comercial, Beja, 1964.

ROCHE, J. e TRINDADE, L., La Station Prehistorique de Rossio do Cabo (Santa Cruz – Estremadura), Porto 1951, separata do Boletim da Sociedade de Geológica de Portugal, Vol. IX (pg. 219-228), 1951;

RODRIGUES, Cecília Travanca, “O Passado Longínquo: da Pré-História à Romanização”, in Torres Vedras – Passado e Presente, vol I, pp. 35 a 60, C.M.T.V., 1996.

RODRIGUES, Cecília Travanca, Reconhecer Leonel Trindade, Cooperativa de Comunicação e Cultura, T. Vedras, 1999 (publica uma vasta bibliografia sobre a arqueologia torriense, com autoria ou coautoria de Leonel Trindade).

VIANA, A. E ZBYSZEWSKI, G., Gruta da Maceira (Vimeiro), Porto 1949, Instituto para a Alta Cultura-Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, Porto, separata do fascículo 1-2, vol XII de Trabalhos de Antropologia e Etnologia;

ZILHÃO, João, O Paleolítico Superior da Estremadura Portuguesa, 2 vol., ed. Colibri, Lisboa 1997.

ZILHÃO, João, O Solutrense da Estremadura Portuguesa – uma proposta de interpretação paleoantropológica, IPPC, Lisboa 1987.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Misericórdia de Torres Vedras


A história e a acção cívica da Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras confunde-se com os últimos cinco séculos da História torriense.

Fundada  por alvará de 26 de Julho de 1520, revelou-se a mais marcante iniciativa tomada localmente durante o reinado de D. Manuel (nascido em 1469, reinou entre 1495 e 1521).

A sua fundação vem na sequência da  necessidade sentida, desde os finais do século XV, em ordenar e unificar a assistência, que se iniciou quando D. João II lançou a primeira pedra do Hospital de Todos os Santos, reunindo para esse fim os rendimentos de vários estabelecimentos pios, obra continuada por sua mulher D. Leonor, quando, já viúva, fundou a Misericórdia de Lisboa em Agosto de 1498.

A História dessa instituição em Torres Vedras, e da sua acção ao longo dos séculos, está suficientemente estudada, numa primeira síntese por Madeira Torres (1), aprofundada por Salinas Calado (2) e, mais recentemente, numa obra de fôlego e definitiva, por Célia Reis (3).

Registem-se ainda alguns estudos sobre aspectos mais particulares dessa instituição, como os de Manuela Catarino (4) e Joana Balsa de Pinho (5).

Registe-se ainda o volume dedicado às Misericórdias, numa visão global, incluído na edição de actas dos encontros Turres Veteras (6)

Neste texto, apenas pretendemos fazer uma breve evocação dessa instituição, remetendo um conhecimento mais aprofundado sobre a mesma  para a consulta das obras acima referida, em especial para o livro de Célia Reis.

A sede torriense dessa instituição foi instalada no Hospital do Santo Espírito, que já possuía os bens do Hospital de Santa Maria dos Farpados e do Hospital do Mostardeiro, juntando-se então a esses, os bens da Confraria das Ovelhas Pobres e os do Hospital de S. Gião, ou Confraria dos Sapateiros, aos quais se juntariam outros bens ao longo dos séculos.

A Misericórdia de Torres Vedras começou a sua vida “com duas salas para ambos os sexos  e uma capela, e segundo Madeira Torres, com um rendimento de : 6 moios de trigo, 3 de cevada, 36 almudes de vinho, 3 potes de azeite, 56 galinhas e frangos, um carneiro, 13.888 réis em dinheiro e 2 óvos, além dos sobejos de todos os outros Hospitais e Albergarias.

“Além destes rendimentos, estava a Santa Casa autorizada a ter Mamposteiros ou arrecadadores d’esmola em todas as freguesias do arciprestado, encarregados de pedirem para ela” (7).

Em 1767 foi aí construída uma enfermaria de mulheres e, em 1795, foi autorizada a criação de uma “botica” no hospital, só concretizada em 1814.

O edifício foi acrescentado em 1796 com a compra de uma casa nobre a sul, alargando as enfermarias para quatro.

O Hospital funcionou aí até à inauguração do Novo Hospital da Misericórdia, no local do actual Hospital Distrital, em 18 de Julho de 1943, com a presença do então Presidente da república Óscar Carmona.

As obras do novo hospital começaram em 1926, mas a inauguração só ocorreu nessa data.

O novo hospital foi “construído por contribuição do Estado e da Câmara Municipal”, e com a contribuição de vários beneméritos locais, homenageados numa lápide comemorativa descerrada na ocasião, no átrio do hospital”. Entre os beneméritos foram citados os “srs. Álvaro Galrão, dr. José Alberto Bastos, Joaquim Vaquinhas, dr. Júlio Lucas e D. Teresa de Jesus Pereira” (8).

Com a mudança das instalações do Hospital, no edifício então desocupado estiveram instalados o Museu Municipal e a Biblioteca Municipal de 1944 a 1989.

Em 19 de Maio de 1681 deu-se inicio à construção da Igreja da Misericórdia, contigua àquele hospital, obra concluída em 1710, ano em que foi benzida em  acto solene, realizado a 6 de Setembro desse ano, presidido pelo Bispo de Tagaste, o torriense D. Manuel da Silva Francês.

Entra-se para a Igreja pelo adro que serviu de cemitério onde se enterravam os pobres falecidos no Hospital, antes de a Santa Casa ter cemitério pegado para norte e, talvez, para poente.

O Pórtico tem as armas reais do século XVII, e a porta é datada de 1718.

A igreja é de uma nave coberta por abobada de berço, onde estão pintadas as armas reais, com a cruz da ordem de Cristo  (típico do século XVIII).

No altar mor existe, no centro, uma imagem de N.ª Senhora da Misericórdia com o menino (seiscentista) e, segundo Salinas Calado, à “mão direita da Senhora da Misericórdia, no seu altar de talha dourada, existe um pequeno esconderijo; ali escaparam, como protegidos pelo seu manto piedoso, às prisões de 22 de Dezembro” (de 1846) “alguns patuleias, torrienses de então”.

A sacristia foi construída em 1752, por ordem do provedor Nuno da Silva Teles (Tarouca e Alegrete).

Leia-se, a propósito desse monumento, o interessante estudo sobre a sua arquitectura da autoria da já citada Joana Balsa de Pinho.

Sobre o valioso património artístico dessa instituição, visite-se o pequeno museu instalado no espaço sede da instituição, baptizado com o nome de Manuel Rosado, um quase centenário e dedicado cidadão à causa pública e a essa instituição.

Em 1975 a instituição perdeu as suas funções hospitalares, passando o edifício do Hospital a ter gestão estatal. Em contrapartida a associação ganhou novas valências, com a criação de uma creche e jardim de infância em Outubro de 1980, a inauguração de uma nova sede e de um centro de dia em Maio de 1987, e, em Dezembro de 2002, a inauguração do lar de Nossa Senhora da Misericórdia no lugar do Sarge.

Entretanto, no edifício original, para além dos serviços administrativos, existe um bem organizado arquivo histórico, englobando quinhentos anos da história de uma instituição que se confunde com a História de Torres Vedras, bem como o já mencionado museu.

Esperamos , com esta modesta e sintética evocação dessa importante “associação” torriense, despertar o interesse pelo conhecimento da sua actividade e da sua importância histórica e social no concelho torriense.


(1) – MADEIRA TORRES, Manuel Agostinho Madeira Torres, Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, 2ª edição anotada, 1862, (1º edição em 1819), com nova edição fac-similada editada pele Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras;

(2) - CALADO, Rafael Salinas, Origens e Vida da Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras, ed. 1936;

(3) – REIS, Célia, A Misericórdia de Tores Vedras (1520-1975),  ed. Da Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras, 2016;

(4) – CATARINO, Manuela, “Assistência no século XIX”, in  Torres Vedras – Passado e Presente, Vol. I, obra colectiva, ed. Pala Câmara Municipal de Torres Vedras em 1996, pp. 299 a 316;

(5)- PINHO, Joana Balsa, “Persistência e atualidade de um modelo tipológico: a Casa da Misericórdia de Torres Vedras e a arquitetura das Misericórdias quinhentistas”, in A Misericórdia – História, Arte e Património, Turres Veteras XXIII, cord. Carlos Guardado Silva, ed. Colibri, CMTV, Universidade de Lisboa (…), ed.2022

(6) – SILVA, Carlos Guardado, (coord.), A Misericórdia – História, Arte e Património, Turres Veteras XXIII, ed. Colibri, CMTV, Universidade de Lisboa (…), ed.2022 ;

(7) – CALADO, ob. Cit., pág.6;

(8) - in Novidades de 19 de Julho de 1943;

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Recordar o Ceia - Breve Homenagem a um AMIGO


Conheci o Ceia (1944-2024) no Cineclube de Torres Vedras, aí pelos idos de 1973, altura em que um lote de jovens professores, com novas ideias, vieram arejar o velho liceu de Torres Vedras.

Nunca fui seu aluno, na escola, mas ele foi das pessoas que mais contribuiu para a minha formação.

O cinema foi a sua primeira paixão e deu um grande contributo para retirar o Cine Clube de Torres Vedras das cinzas em que vivia desde que lhe tinha sido imposta uma direcção devidamente domesticada pelo velho regime salazarista.

O seu humor, a sua criatividade e o seu entusiasmo eram contagiantes. A ele se deve uma total renovação na programação, no grafismo dos boletins e na vida do velho cineclube.

Os anos que se seguiram ao 25 de Abril foram de grande entusiasmo, com a criação das chamadas “brigadas móveis” de 16 mm, por ele baptizadas,  percorrendo as aldeias do concelho, permitindo que muita gente assistisse, muitos pela primeira vez na vida, a uma sessão de cinema.

Depois seguiram-se outros projectos que percorri na sua companhia e na de um lote de amigos que me acompanharam para a vida. Foi a colaboração irreverente no “Oeste Democrático”, foi a célebre e polémica sessão de cinema underground incluída na programação da chamada “semana contra a droga”, em consequência da qual, só faltou colocarem-no, a ele e aos que o acompanharam no projecto, às portas da “vila” com alcatrão e penas, foi o jornal Área, criado em 1979, com um grafismo arrojado para a época, até hoje um imbatível  projecto jornalístico no panorama torriense e até a nível nacional.

A partir do jornal Área nasceu aquele que foi o seu maior projecto cultural de vida, a criação da Cooperativa de Comunicação e Cultura, no âmbito do qual se incluiu, é bom aqui recordar, o Performarte de 1985, iniciativa pioneira em Portugal e ainda hoje muito citada.



A partir de 1981 iniciou a sua careira como professor da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, que marcou todos os alunos que frequentaram as suas aulas.

Pelo meio, a produção de alguns dos mais criativos cartazes e autocolantes, não só em Torres Vedras, mas também a nível nacional, com destaque para muitos cartazes para as sessões do cineclube, para as actividades da Cooperativa, para as comemorações do 25 de Abril, sem esquecer a autoria do mais icónico cartaz da centenária feira de S. Pedro.

Foram muitas as exposições dedicadas à sua actividade como artista plástico, para além de ter editado vários livros, abordando não só a sua actividade plástica, mas também as suas memórias associativas, com destaque para o livro “Pequenas Crónicas, Grandes Memórias”, em parceria com o Luís Filipe Rodrigues, editado em 2021, onde aborda, com humor e ironia, a sua experiência na criação da “Cooperativa”, e que foi a minha última colaboração com o Ceia, cedendo-lhe alguns documentos do meu arquivo.

Recentemente, aventurou-se pela ficção, com “O Amor Incerto”, editado já este ano.




Cruzei-me com ele, pela última vez, no final da Primavera, no seu espaço preferido, a “Cooperativa”, por ocasião da inauguração, nessa galeria, da exposição de BD de Vasco Parracho.
(Fotografia de Joaquim Esteves)

Ao longo das nossas vidas cruzamo-nos com muitas pessoas que nos marcam, umas pelo exemplo, outras pelas ideias e criatividade, outras pela amizade, outras pela parceria em projectos de vida. Com o Ceia cruzei-me em todas essas situações.

Dizem que só morremos totalmente quando já ninguém se lembra de nós. O Ceia vai ser recordado por muitos e por muito tempo, e por isso, vai continuar a “viver” por aí por muito tempo, tantas foram as marcas que deixou em nós.

O Ceia vai deixar saudade a todos que com ele se cruzaram.

Até sempre amigo!

quarta-feira, 17 de julho de 2024

A Transição do Poder Municipal no 25 de Abril


Quando da imposição de uma ditadura militar, em 28 de Maio de 1926, foram dissolvidos todos os corpos administrativos, e nomeadas comissões administrativas para gerir o poder municipal. Esta situação conheceu várias vicissitudes e alterações, resultado da indefinição política saída desse golpe militar, situação que só se clarificou com a aprovação da Constituição de 1933, que inaugurou o regime do Estado Novo.

Só com a promulgação do Código Administrativo de 1936, desenvolvido no Código Administrativo de 1940, se estabilizou o modelo organizativo da administração municipal do Estado Novo.

Uma das medidas tomadas em 1936 foi abolir o cargo de Administrador do Concelho, que tinha sido criado em 1835. Sendo um cargo de nomeação governamental, desde longa data, a suas funções e competências passaram, naquela data, para os Presidentes da Câmara.

A partir de então, o Presidente e o vice-presidente  da Câmara passaram a ser de nomeação governamental. Por sua vez o Código de 1940 dividiu os órgãos de administração municipal em “comuns” e “especiais”.

Dos órgãos “comuns” faziam parte o Presidente da Câmara, a Câmara Municipal e o Conselho Municipal.

Dos órgãos “especiais” faziam parte as Juntas de Turismo e comissões especiais de Turismo, que tinham um papel importante a nível das decisões urbanísticas, as Comissões Municipais de Assistência, com funções caritativas de apoio a populações carenciadas, e um órgão municipal  com funções meramente consultivas nos domínios da arte, arqueologia, higiene e turismo.

Mas eram os chamados órgãos “comuns” que detinham um verdadeiro poder político a nível concelhio. Como vimos atrás, o Presidente e o Vice-presidente do município eram de nomeação governamental, com um mandato de 4 anos sem limites de renovação, liderando o executivo camarário, ao qual se juntavam 6 vereadores nomeados pelo Conselho Municipal. Este Conselho Municipal era um órgão com características corporativas, formado por representantes das juntas de freguesia, das ordens profissionais, dos sindicatos, dos grémios, das Casas do Povo e das misericórdias, todos com o necessário aval governamental.

Quando se deu o 25 de Abril, a câmara torriense era presidida por Joaquim Pedro Belchior Fernandes, que assumiu essas funções em Maio de 1971, vereador municipal desde 1963. O seu curto mandato conheceu algumas vicissitudes. O vice-presidente nomeado para esse cargo, um jovem militar sem experiência autárquica, demitir-se-ia do cargo em finais de 1973, desagradado com o modo como se viu envolvido no encerramento de um comício da oposição democrática, em Outubro de 1973. Foi substituído no cargo, oficialmente em Janeiro de 1974, por um dos vereadores mais antigos, António Maria de Sousa, vereador desde 1959.

Se os dois membros do executivo de nomeação governamental, acima referidos, eram políticos experientes, seis dos  restantes sete vereadores, nomeados pela Conselho Municipal em 1972, não tinham experiência anterior nesse cargo, reflectindo uma certa tentativa de renovação do executivo, característico do período “marcelista” em vigor.

As divergências entre os nomeados pelo governo e os nomeados pelo conselho municipal corporativo vão-se tornar evidentes nos dias a seguir ao 25 de Abril.

A primeira reunião desse executivo, no pós 25 de Abril, teve lugar no dia 29 de Abril, com a presença de vários cidadãos, dentro e fora do edifício, que exigiam a demissão dessa câmara.

Sob a presidência de Joaquim Belchior Fernandes e com a presença da maior parte dos vereadores, um dos seus membros, o vereador Guia, levantou o problema da legitimidade das funções desse executivo, principalmente do seu presidente e do vice-presidente, devido à destituição do governo e do ministro que os tinham nomeado, respondendo-lhe o presidente que se considerava em situação legitima, já que o governador civil de Lisboa, do qual dependia directamente, não tinha sido demitido.

O então jovem vereador Guia apresentou uma moção de apoio à Junta de Salvação Nacional, propondo que a Câmara se colocasse à disposição da mesma, com um voto de apoio ao 25 de Abril, moção aprovada pelos vereadores presentes.

Contudo, essa manobra foi de imediato denunciada por Francisco Fernandes, intervenção aplaudida e apoiada pelo público presente.

Nos dias seguintes a situação evoluiu rapidamente.

No dia 30 de Abril os oposicionistas locais, organizados à volta do CDE, publicam um comunicado intitulado “Saudação ao povo de Torres Vedras” (1), apelando à urgência de se formar uma nova instituição politica e administrativa, tema de muitas das intervenções da grande manifestação do 1º de Maio que percorreu as ruas da vila de Torres Vedras, encerrando com intervenções de , entre outros, Afonso de Moura Guedes, João Carlos, e Francisco Fernandes, responsáveis, nos meses seguintes, pela implantação em Torres Vedras dos três principais partidos fundadores do regime pós-25 de Abril, PSD, PS e PCP (2).

No dia 2 de Maio é publicada um portaria da JSN exonerando todos os presidentes de Câmara, mas não se definindo em relação à restante vereação.

No dia 6 de Maio a Câmara ainda em funções volta a reunir, digladiando-se mais uma vez as duas facções, uma liderada pelo ex-presidente Belchior Fernandes, outra pelo engenheiro Guia, confronto provocado em parte por se ter sabido que o presidente, sem consultar a restante vereação, tinha contactado o Governo Civil, do qual teria recebido ordens para continuar em funções. A facção Guia, criticando essa iniciativa, defende uma deslocação de toda a vereação a Lisboa para contactar a JSN, para porem os seus lugares à disposição da mesma, mas oferecendo-se para continuar a dirigir o executivo camarário até à realização de eleições municipais(3).  

Essa manobra, de tentativa de colagem ao novo regime, habitual noutros momentos históricos (vejam-se as actas da Câmara torriense na primeira metade do século XIX), acabou por fracassar, ultrapassada pelos acontecimentos.

Já sem poderes, mais para encerrar actividade, a câmara deposta ainda se reuniu uma última vez em 13 de Maio, presidida pelo vice-presidente, “presidente” por um dia.

As forças oposicionistas, legitimadas pelo derrube do regime em 25 de Abril, ainda unidas à volta do CDE, depois de várias reuniões públicas, acaba por convocar uma grande Assembleia Popular para 12 de Maio, que decorreu no estádio do Torreense, depois de um jogo do clube, e que contou com mais de duas mil pessoas, para propor a aprovar uma comissão provisória de 18 personalidades, para dirigir o executivo camarário (4).

Depois de uma deslocação a Lisboa, essa comissão reuniu em 14 de Maio com um delegado da JSN, na sede local do CDE (antiga sede local da ANP, ocupada em 26 de Abril), para efectivar a constituição de uma comissão administrativa, reduzida para 9 membros, por sugestão desse delegado, tendo-se escolhido para a presidir Francisco Fernandes.

Essa Comissão Administrativa tomou posse do cargo no dia 15 de Maio, realizando a primeira sessão em 20 de Maio (5).

Essa comissão administrativa conheceu algumas vicissitudes ao longo da sua existência, mas foi responsável por muitos melhoramento e obras de saneamento, de que o concelho carecia, apoiada no voluntarismo da população organizada em dinâmicas comissões de moradores e nas comissões administrativas das juntas de freguesia.

Esteve em funções até Janeiro de 1977, substituída pela primeira Câmara Municipal eleita em 12 de Dezembro de 1976.Mas esta é outra história (6).

(1)    – Documento do aquivo pessoal do autor;

(2)    - CARLOS, João, “Dia 1º de Maio – Festa do Trabalho”, reportagem publicada nas páginas do Jornal “Badaladas” de 11 de Maio de 1974;

(3)    - acta da reunião camarária de 6 de Maio de 1974, in “Voz do Município”, “Badaladas” de 25 de Maio de 1974. Consultem-se igualmente os livros de acta da Câmara, depositados no Arquivo Municipal para acompanhar o que se passou nas referidas reuniões do executivo. Leia-se também o conjunto de artigos da autoria do ex-vereador Guia no jornal “Badaladas”, sob o título de “Os actos incómodos a as actas malditas”, provocatoriamente assinados como “a ex-vereação “Fascista” e a polémica que eles provocaram com vários “oposicionistas”, publicadas nas páginas daquele  semanário entre as edições de 18 de Maio e 29 de Junho de 1974;

(4)    - Convocatória para a assembleia popular de 12 de Maio. Arquivo do autor;

(5)    - CARLOS, João, “Democratas de Torres Vedras aprovaram a nomeação de uma comissão para a gerência da Câmara”, in “Badaladas” de 18 de Maio de 1974;

(6)    - Para acompanhar os vários episódios deste período leia-se a obra fundamental de Andrade Santos, CRÓNICA DE TANTOS FEITOS, 1ª edição, Livros Horizonte, 1986, e com mais duas reedições.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Os primeiros tempos do PPD em Torres Vedras


Num relatório confidencial da secção torriense da Legião Portuguesa, relatava-se a forma como tinha decorrido, em Torres Vedras, no dia 23 de Março de 1973, uma sessão pública da SEDES, onde “o tema foi eleições” e, na “assistência, encontrava-se um tal Dr. Gomes Mota, de Lisboa, que fez várias intervenções tendenciosas de forma a deixar compreender que a única solução política seria ir para a revolução” (1).

O “Dr. Gomes Mota” era o deputado da ala liberal Magalhães Mota, já em ruptura com o regime. A chamada ala liberal foi eleita nas listas da União Nacional nas eleições de 1969, disputadas na esperança de uma evolução do regime. Dela faziam parte, entre outros, para além de Magalhães Mota, Francisco Sá Carneiro e Pinto Balsemão que tinham começado a abandonar o seu lugar de deputados ao longo dos primeiros meses de 1973, em protesto pelo endurecimento do regime.

A SEDES era a “Associação para o Desenvolvimento Económico e Social” criada em 25 de Janeiro de 1970, à volta da chamada ala liberal e visava o debate público de uma liberalização do regime e da sua evolução para um regime democrático.

O advogado torriense, mas com escritório na Lourinhã, Dr. Afonso de Moura Guedes, e a sua esposa Maria Filomena Moura Guedes, foram sócios fundadores daquela associação, respectivamente com os números 109 e 110 (2).

Afonso de Moura Guedes teve uma activa participação na vida cívica torriense desde o início dos anos de 1970, participando em debates nas páginas do jornal “Badaladas”, promovendo debates públicos em Torres Vedras, em nome da SEDES e debatendo a situação social e política com oposicionistas locais.

Chegou a organizar mesmo uma mesa redondo sobre os destinos do município torriense, mas que foi proibido de publicar no “Badaladas” por intervenção do poder local e da censura.

Alguns oposicionistas, como o pai do articulista, foram avisados telefonicamente do 25 de Abril por esse dinâmico advogado.

Quando, em 6 de Maio de 1974, alguns dos membros da antiga “ala liberal”, como Sá Carneiro, Magalhães Mota e Pinto Balsemão, anunciam a criação do PPD (Partido Popular Democrático), um dos primeiros partidos políticos criado após o 25 de Abril, Moura Guedes está na primeira linha da criação de um núcleo local desse partido, contribuindo para que muitos dos membros locais dessa associação também aderissem a esse partido.

A fundação local do PPD foi “a base de partida para a implantação do PPD no Oeste” (3).

Dias antes, na grande manifestação popular do 1º de Maio de 1974, que percorreu as ruas de Torres Vedras, Afonso de Moura Guedes foi um dos oradores.

Oficialmente o PSD de Torres Vedras nasceu no dia 20 de Junho de 1974, data da inscrição do seu militante número um neste concelho, Afonso de Moura Guedes.

O militante nº 2 do concelho foi Luís Afonso Miranda, empregado de escritório, inscrito no dia 2 de Julho de 1974.

No dia 5 de Julho inscreveram-se mais quatro militantes: António Martins Bento, gerente comercial, Armando dos Santos Gomes, comerciante, José Monteiro Gomes, gerente de seguros, Maria do Espírito Santo Simão Miranda, professora, e que foi também a primeira mulher inscrita localmente nesse partido.

José Manuel Lopes Figueiredo, funcionário público, José Rodrigues, controlador industrial. Rui Rola Coelho, electicista, e Francisco Manuel Elias de Carvalho, empregado bancário, que se inscreveram , respectivamente em 20 de Julho, 20 de Agosto, 27 de Agosto e 10 de Setembro de 1974, completam a lista dos primeiros dez militantes do concelho de Torres Vedras.

Sobre esses primeiros tempos, referiu António Bento, que esteve “na fundação do Partido, no início de Maio de 1974, numa reunião realizada no escritório do Dr. Afonso de Moura Guedes, sobre o Café Império”, que a “adesão foi subscrita numa lista, por não existirem propostas”, seguindo-se a constituição da secção de Torres Vedras” (4).

Em Dezembro de 1974, em data não especificada, num Domingo, teve lugar a eleição da primeira comissão política do PPD de Torres Vedras, num plenário presidido pelo Dr. Afonso de Moura Guedes.

De uma lista de 17 nomes foram escolhidos o presidente e os 6 vogais da primeira Comissão política concelhia e 3 membros da Mesa do plenário, a saber:

Presidente : – Afonso de Moura Guedes (advogado);

Vogais : – Manuel César Candeias (funcionário judicial); Luís Afonso Miranda (empregado de escritório);António Martins Bento (profissional de seguros); José Manuel Lopes Figueiredo (canalizador); Secundino Outeiro Pereira (professor do ensino liceal); João Flores da Cunha (farmacêutico);

Mesa do Plenário: - Joaquim José Severino (empregado de escritório); Maria Espírito Santo Miranda (professora); José Joaquim Ferreira da Silva.

Coube a esta comissão, em funções até Janeiro de 1976, organizar, implementar, divulgar e expandir o crescimento do partido a nível local (5).

Enfrentou também um dos períodos mais críticos do pós 25 de Abril, enfrentando as condições difíceis do chamado PREC, entre o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975.

Entretanto, em 4 de Dezembro de 1974 forma-se, oficialmente, o núcleo local da Juventude Social-democrática, com 15 filiados fundadores, e para cuja fundação teve papel de destaque o então jovem estudante do liceu de Torres Vedras, Emílio Gomes (6), com um passado de colaboração com a oposição local ao Estado Novo e ligado à renovação do Cine-Clube de Torres Vedras nos inícios da década de 1970.

Por essa altura também se procurou uma sede local para o partido, que começou por funcionar entre o escritório do Dr. Moura Guedes e o escritório de António Bento, na Rua Dr. Carlos França, nºs 7 e 9, até se instalar num rés-do-chão de uma loja na Praceta Calouste Gulbenkian, em frente à “Física”, espaço cedido gratuitamente pelo Dr. Francisco Bastos, outro histórico desse partido a nível local. Em 1978 mudou a sede para o sito mais conhecido dos torrienses como sede do PPD de Torres Vedras, no último andar do edifício por cima do café Havaneza, de onde apenas se mudou recentemente, em 2023, para a sua sede local (7).

A primeira prova de fogo teve lugar durante a campanha para as eleições para a Assembleia Constituinte que tiveram lugar em 25 de Abril de 1975.

A essas eleições foram candidatos, na lista do partido do Distrito de Lisboa, os torrienses Moura Guedes, Maria Lucília Miranda Santos, conhecida advogada, defensora de presos políticos, Manuel Candeias, Rogério Calhamar e Luís Afonso Miranda, enquanto José Furtado Fernandes, economista ligado a esta região, foi candidato por Santarém.

A Drª Lucília, como era carinhosamente conhecida, foi uma figura de destaque na oposição local ao Estado Novo e chegou a estar ligada à comissão jurídica do partido, acabando por sair do PPD ainda em 1975.

Afonso de Moura Guedes acabou por ser eleito como deputado nessas eleições, tornando-se num dos mais destacados dirigentes do partido (8). Foi reeleito como deputado nas 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 6ª legislatura, e assumindo, durante 8 anos, o cargo de Governador-Civil de Lisboa.

Nessas “Constituintes” de 1975, que foram as eleições mais participadas até aos nossos dias, o PSD foi a segunda força política mais votada no concelho, com 10.091 votos (27,7%), sendo a força vencedora nas freguesias de A-Dos-Cunhados, Campelos, Freiria, Silveira e Ventosa.

O seu pior resultado, nestas eleições, foi registado em Dois Portos, Monte Redondo, Runa e Stª Maria do Castelo, onde ficou em terceiro lugar, atrás do PS e do PCP (9).

Nas primeiras eleições autárquicas, realizadas em 12 Dezembro de 1976, o PSD foi a segunda força política mais votada no concelho, tanto para a Câmara (9 498 votos, 34,4%), como para a Assembleia Municipal (8 255, 30,1%) e no conjunto da votação para as Assembleias de Freguesia (9 898, 36,1%).

Para a Câmara elegeu 3 vereadores, o mesmo número do PS, o partido mais votado. Foram eleitos vereadores o Dr. João Francisco Ribeiro Correias, o engº Ângelo Custódio Rodrigues e Ana Maria Bastos, esta a primeira mulher a exercer estas funções no concelho de Torres Vedras.

Para a Assembleia Municipal elegeu directamente 7 membros, aos quais se juntaram mais 6 presidentes de Juntas de Freguesia.

Elegeu ainda 57 membros de assembleias de freguesia, vencendo nas freguesias de A-Dos-Cunhados, Campelos, Carvoeira, Freiria, Ventosa e Silveira. As freguesias onde obteve os piores resultados foram as de Dois Portos, Stª Maria e Turcifal, ficando atrás do PS e do PCP, não tendo concorrido em Runa (9).

Tendo por base a publicação das listas de candidatos a essas eleições, publicadas na imprensa local, principalmente no jornal “Oeste Democrático”, é possível fazer um retrato aproximado da base sociológica do PPD dos primeiros anos, no concelho de Torres Vedras:

26,7% eram classificados por agricultores e rurais;

15,2% eram comerciantes ou empregados de comércio.

Desagregando as actividades, as cinco mais numerosas eram: agricultor-69; comerciante-28; técnico superior-14; industrial-13; empregado de escritório -11.

Nas elites dirigentes dominavam os técnicos superiores e elementos do sector terciário.

Registe-se ainda, a título de curiosidade, que o partido apresentava 16 mulheres como candidatas, representando 6,1%, a maior percentagem entre todos os partidos concorrentes.

Aqui registamos, no seu cinquentenário, algumas notas sobre os primórdios da vida desse partido neste concelho.

A sua longa história pode ser acompanhada lendo as duas obras de José Damas Antunes citadas nas notas deste ensaio (11).

José Damas Antunes alia, nestas duas obras, o seu grande conhecimento sobre o funcionamento do partido, onde tem exercido um papel activo em termos locais e regionais , com o rigor e objectividade da investigação histórica, área onde já revelou experiência através da autoria de estudos sobre a freguesia de Campelos.

(1)    documento datado de 6 de Abril de 1973, disponível no site “Casa Comum”, da Fundação Mário Soares;

(2)     informação referida no site da SEDES;

(3)    ANTUNES, José Damas, 40 anos de democracia – o PPD/PSD de Torres Vedra, ed. Da Comissão Política Concelhia de Torres Vedras, Abril de 2015, pág.9;

(4)    ANTUNES, José Damas, Contributos para a História do PSD, na Área do Oeste , 1974-2014, Comissão Política Distrital do Oeste, ed.Sinapis, Abril de 2015;

(5)    ANTUNES, in “40 anos…”, pp.17 a 19;

(6)    ANTUNES, “40 anos…”, pág. 39;

(7)    ANTUNES, “40 anos…”, pág.9;

(8)    ANTUNES, “Contributos…”, pp.53 a 55;

(9)    Documentação do arquivo pessoal do autor;

(10) “Eleições para as autarquias locais. Distrito de Lisboa. 1976” ed. Imprensa Nacional, 1976.

(11)esses livros, acima citados, reúnem uma vasta documentação sobre esse partido, recolhendo depoimentos de vários militantes históricos da zona Oeste e de Torres Vedras, histórias e factos que, cronologicamente, marcaram a história política regional.

 

quinta-feira, 11 de julho de 2024

A “Guerra do Bacêlo” (A-Dos-Cunhados - 1935)

(Gravura alusiva à referida revolta . Fonte - Povo Jovem- Janeiro 1975)

A “Guerra do Bacêlo” foi uma revolta popular, que aconteceu em 1935, com principal foco na freguesia de A-Dos-Cunhados (1).

Essa revolta popular foi provocada pelo Decreto Lei nº 24 976 de 1935, que proibia a plantação de vinhas novas, obrigando a que, até 30 de Março de 1936, se efectuasse o arranque das existentes, medida que se enquadrava na chamada “campanha do trigo” do Estado Novo, a qual, segundo os que estudaram essa medida, redundou num enorme fracasso social, económico e ambiental.

Essa revolta foi uma das mais importantes revoltas populares de camponeses na região, uma das primeiras contra o Estado Novo, a primeira luta social do concelho de Torres Vedras referida pelo jornal “Avante”, na sua edição clandestina de Maio de 1935.

Uma força de trinta praças da GNR, com elementos locais, das Caldas da Rainha e de Peniche, tinha-se concentrado em Tores Vedras no dia 7 de Abril de 1935, para acompanharem os agrónomos das “brigadas das vinhas” que íam fazer o levantamento das vinhas ilegalmente plantadas em várias freguesias do concelho, para serem arrancadas posteriormente.

No dia 8 de Abril de 1935, essa força da GNR saiu de Torres Vedras a caminho de A-Dos-Cunhados, por onde se tinha decidido iniciar a ronda pelo concelho, com o objectivo da “manutenção da ordem pública durante os trabalhos da brigada dos vinhos” (2).

Nessa localidade tiveram de enfrentar a ira dos populares, que se opunham ao arranque das vinhas, para muitos o único ganha-pão num tempo de grandes dificuldades económicas.

Ao aproximarem-se daquela localidade, foram ouvidos alguns “morteiros”, lançados pelos populares para avisarem da aproximação daquela força (3).

Os populares, oriundos de “Cunhados, Sobreiro Curvo, Bombardeira, Palhagueiras, Casais, etc.”(4), avisados antecipadamente da deslocação, vinda de Torres Vedras, dessa força da GNR, já se tinham juntado no Largo da Cruz e lançado foguetes de aviso e repicado os sinos.

Entrando la localidade, por volta das 11 horas da manhã, a GNR ocupou o largo principal,  ao mesmo tempo que se destacava “um esquadra para ocupar as imediações da Egreja a fim de evitar que o sino tocasse a rebate, como é costume no concelho de Torres Vedras, e ainda “ proteger o flanco esquerdo do local onde se encontrava o comandante dessa força, “visto que o direito estava apoiado numa edificação e a rectaguarda protegida por outra edificação”.

Também as mulheres que se juntaram aos homens na manifestação, incitaram com gritos “a bradar que “que tinham fome”, que ninguém lhes dava trabalho, “que nunca consentiriam no arranque de uma única cepa” (5).

Aos gritos, os rurais que aí se tinham concentrado, “começaram o ataque à força” da GNR, a quem arremessaram pedras, usando “forquilhas, enxadas, varapaus, machados, pás e rodas de forno, entre outras”, mas sem armas de fogo(6), para enfrentaram as autoridades, estas bem armadas, repelem o ataque “pelo fogo”(7) e à coronhada, redundando o confronto em vários feridos entre os populares e os guardas.

“Guardas mandam tiros para o ar com o fim de assustar o povo que começa já a aparecer em grande número. Alguns fogem. Os que ficam estão sob o seu olhar e armas (…). Eis que aparece o Sr. José Ferreira do Sobreiro Curvo, já de idade avançada que grita para os guardas: “Ah, seus sacanas, com que então querem arrancar o bacelo?!!!...Levanta ameaçadoramente a enxada que traz consigo, na direcção dos mesmos e…Este  acto tem a força de uma forte ventania ao passar por uma fogueira prestes a extinguir-se. Ateiam-se as brasas de uma guerra entre G.N.R e povo” (8).

Os confrontos estenderam-se à localidade vizinha do Sobreiro Curvo, pois as “mulheres do Sobreiro Curvo apetrechadas dos seu armamento”, rodos e pás de forno, “escondem-se debaixo da ponte mais próxima da igreja. Atravessam a rigueira para o lado de A-Dos-Cunhados e passam para a confusão (…).Instalam-se alguns guardas na estrada em frente do átrio da igreja não deixando passar quem quer que seja vindo do S. Curvo”, mas muitos ainda conseguiram passar.

Entre as mulheres envolvidas nos confrontos contra os guardas destacou-se uma tal “Victória Ferrador”, “a quem o povo chamou “ a padeira de Aljubarrota”, mulher de “grande relevo”, que, no confronto, salvou “um homem indefeso de apanhar tareia, onde intervêm seis guardas. Com um rodo de forno põe todos em debandada”(9).

Do confronto resultaram feridos 35 “rurais”, “mais ou menos gravemente”, e um soldado da GNR “ferido na cabeça por uma enxada” (10).

A maior parte dos feridos populares desse confronto foram conduzidos para os hospitais da Lourinhã e de Torres Vedras. Neste último, os “18 ou 20” que recorreram aos serviços hospitalares desta vila, foram presos pela GNR, enviados para a cadeia do posto local desse guarda. Alguns dos feridos foram enviados para o hospital de S. José.

Imposta a “ordem”, no dia 9 efectuou-se o levantamento das vinhas ilegais naquela freguesia, para se proceder ao seu arranque.

Para os dias seguintes foi programado o mesmo trabalho para outras freguesias do concelho, chegando a informação ao comandante da força da GNR que estava em Torres Vedras que “os rurais de Aldeia Grande, Maxial e Ermigeira, armados, marchavam sobre Torres Vedras”, pelo que foram colocadas forças da GNR, bem armadas, nas entradas da vila que faziam ligação com aquelas aldeias, o que demoveu os “sublevados”. No dia 12 de Abril a GNR avançou para aquelas localidades, prendendo “os cabeças de motim da sublevação”, apreendendo-lhes espingardas de caça e os “respectivos cartuchos”.

Correram igualmente rumores de que “Dois Portos queria resistir e impedir o trabalho da brigada”, para aí se deslocou a força da GNR, mas não se tendo aí registado “a menor manifestação de desagrado”.

A partir de então o serviço daquelas brigadas “correu sem novidade”, retirando-se as forças da GNR de fora do concelho após o fim do levantamento das brigadas das vinhas neste concelho no dia 24 de Abril (11).

(1)    Ver:  obra colectiva “A-Dos-Cunhado – Itinerário da Memória”, ed. 2002 ;  “Guerra do Bacelo (…)”, recolha oral por António Moreira, Maria do Céu Nunes e António Vassalo, nas edições nº 1 e nº 2, de Janeiro e  Fevereiro de 1975, do jornal “Povo Jovem”;   SANTOS, Andrade, “Revolução e morte no Convento da Graça” in Badaladas de 8/1/2021;  relatório dos acontecimentos enviado pelo posto da GNR de Caldas da Rainha para o Ministério do Interior datado de 1 de Maio de 1935, existente no arquivo Nacional da Torres do Tombo (o autor agradece a oferta que lhe foi feita por João Flores da Cunha de uma cópia deste relatório);

(2)    relatório da GNR, acima referido;

(3)    relatório da GNR;

(4)    in Povo Jovem de Janeiro de 1975;

(5)    relatório da GNR;

(6)    in Povo Jovem de Fevereiro de 1975;

(7)    relatório da GNR;

(8)    in Povo Jovem de Fevereiro de 1975;

(9)    in Povo Jovem de Fevereiro de 1975;

(10)relatório da GNR;

(11)relatório da GNR.