terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O texto "esquecido" de "Carnaval de Torres - Uma História com Tradição"


No princípio da década de 90, na sequência de uma primeira tentativa de sintetizar a História do Carnaval de Torres para um número especial da revista Zona Oeste de 1992, dedicada a esse evento, fui convidado pelo então vereador da cultura, Dr. António Carneiro, a completar aquele primeiro estudo, com o objectivo da publicação de um livro sobre o tema.

Tendo entregue o texto final em meados de 1995, demorou algum tempo até existirem condições para publicação do livro.

Entretanto, a obra começava a desatualizar-se, em especial na parte dedicada ao “Carnaval actual”, pelo que, já em 1998, o mesmo vereador me entregou um texto alternativo a essa parte para eu adaptar ao que tinha escrito, acabando o capítulo por ser  intitulado  “O Carnaval na Actualidade” (pp.65 a 70), incluído por mim no texto final com a condição de se indicar que “este capítulo  foi escrito tendo por base um depoimento escrito que nos foi facultado pelo Dr. António Carneiro”, como se pode ler na página 77 da referida obra.

Criaram-se então as condições para a 1ª edição da obra, com uma tiragem de 2000 exemplares, em co-autoria, na parte gráfica com o meu amigo Antero Valério, editada em 1998.

Fiquei a aguardar uma 2ª edição onde pudesse rever  e incluir novos dados e lacunas de investigação, bem como actualizar o último capítulo, muito em especial a parte referente ao carnaval de Torres pós-25 de Abril, que era a parte mais "frágil" do livro.

Tal não foi possível, mas o texto que foi substituido, datado de 1994, continuou guardado no meu computador, até, depois de muitas voltas por muitos computadores (que podia servir de base para a minha história pessoal de relação com a informática, iniciada em 1991), o consegui finalmente recuperar, e é o que hoje aqui, pela primeira vez, divulgo, lembrando que não foi corrigido e foi escrito tendo em conta a realidade do carnaval de Torres em 1994.

Não se confunda a situação descrita com qualquer acto de censura. A alteração, concorde-se ou não com ela, deveu-se àquilo que se pode chamar "opção editorial", a que eu acedi para desbloquear uma situação que já se arrastava demasiado no tempo e que punha em risco um trabalho de dois ou três ano. Hoje teria agido de modo diferente. Erros de "juventude"!.  Por outro lado, como podem ler aí em baixo, pelas indicações bibliográficas do texto "esquecido", quase tudo o que estava nele foi baseado no tal número especial do Zona Oeste de 1992 sobre o carnaval, situações aí descritas até com mais desenvolvimento e pormenor do que no meu texto, edição que foi pública e na qual eu fui co-autor com o Jorge Humberto e o Daniel Abreu.

Esta não foi, aliás, a primeira vez que, por opção editorial, tive de encurtar textos ou eliminar capítulos inteiros. Quem já escreveu livros sabe que tem de deixar muita coisa de fora. Por exemplo, na Monografia de Torres Vedras, na qual fui co-autor, tive de deixar de fora, voluntariamente, um capítulo inteiro, situação que terá acontecido também aos meus colegas. Muitas vezes, quando colaboro em jornais ou revistas, tenho de escrever vários textos até o "reduzir" ao espaço que tenho disponível.

Mesmo que o texto que abaixo reproduzo tivesse sido incluído no livro do Carnaval, teria de ter sido revisto. O que divulgo não é mais que um rascunho.

O que não quer dizer que não concorde com o que  disse, certeiramente, um amigo meu com alguma graça, quando do lançamento público do livro do Carnaval,  criticando-me por,nesse capítulo discutível, ter despido a máscara de Fernão Lopes e vestido a de Gomes Eanes de Zurara.

Desde então muito aconteceu, e, de facto, toda a verdadeira  história do Carnaval de Torres dos últimos 25 anos continua por fazer.

“CARNAVAL EM LIBERDADE

Tendo sido o  Carnaval um dos raros espaços de liberdade no período anterior ao 25 de Abril , tendo de enfrentar por vezes a incompreensão das próprias autoridades , paradoxalmente no primeiro carnaval em liberdade , o de 1975,  não foi organizado qualquer desfile em Torres Vedras , situação que se manteria nos anos seguintes.

Tendo ainda por base o amadorismo de outros tempos , seguiram-se várias tentativas de relançar o carnaval .Em 1978 seria avançada uma proposta para que fossem os "Bombeiros" a organizar o carnaval , mas as exigências económicas  de um tal projecto tornavam incomportável  para aquela associação um tal  risco financeiro :

 “Quando a Física de Torres Vedras deixou de ser a entidade responsável pela organização do Carnaval este ficou moribundo, perdendo assim as tradições que ao longo dos anos angariaria em todo o País. (...)

 “A organização e a realização do Carnaval de 1978 foi oferecida aos bombeiros, cuja direcção e comando estudou demoradamente o assunto, tendo chegado à triste realidade de, nas condições actuais, se tornar impossivel realizar tal festa dado que não reuniam, para o efeito,  as condições exigidas.(...).

“Mas os homens fazem tudo e dentro deste simples pensamento poder-se-á fazer o Carnaval de 1978, basta que a nossa Câmara Municipal seja a entidade responsável pela sua organização e assim poderemos talvez adiantar que os Bombeiros Voluntários ajudarão e até as demais colectividades da vila, em tal capítulo , estarão presentes. (...)”.  (editorial não assinado -Manuel Candeias ?- do OESTE DEMOCRÁTICO , intitulado “O Carnaval de Torres Vedras”, nº118 de 23-9-1977).

De qualquer  modo esse ano de 1978 terá marcado o arranque para esta nova etapa do carnaval torriense:

“(...) formou-se com o patrocínio da Câmara Municipal e respectiva Comissão de Turismo, a Comissão de Carnaval 1978, para a realização destes festejos a favor do Asilo de S.José.(...)

“Pela primeira vez este teve a participação directa de muitas terras do concelho, que se fizeram representar com carros alegóricos (..)” (F.Jaime Valadas “Carnaval de Torres 1978 " in OESTE DEMOCRÁTICO nº138 de 10-2-1978).

Até 1983 o carnaval manter-se-ía nestes moldes. No de 1982 estiveram presentes cerca de 40.000 pessoas e em 1983 desfilavam 13 carros com temas variados.

No Outono Desse ano , Torres Vedras sofre uma das maiores tragédias deste século, com inundação de grande parta da cidade e concelho ,o que provoca imensos prejuízos , levando à suspensão da organização do Carnaval de 1984.

 “Depois dos 1500 contos de prejuizo do carnaval de 83 e da anulação do de 84 por causa das cheias do ano anterior, houve quem pensasse que era desta que o carnaval de Torres desaparecia. (...).

“É então que surge António Carneiro propondo que a Câmara tutelasse a organização do Carnaval, ideia que agradou a todos pelas perspectivas de continuidade que assegurava(...).

“Uma pequena revolução na estrutura da Câmara iniciou-se também nessa altura, com a criação de serviços de Cultura e Turismo (...). Esta nova estrutura operacional, com pessoal administrativo e operários em permanência, que já tinha organizado a Feira de S.Pedro de 83 , veio trazer ao carnaval o fôlego que necessitava (...)” ( ZONA OESTE ,   Nº13, FEV. 1992 ,  Daniel Abreu e Jorge Humberto “carnaval de Torres Vedras-o tele-Carnaval mais tele -Português de Portugal” pp.25-26).

É assim que se dá início à fase mais recente da sua história. Para organizar o carnaval de 1985 o vereador  António Carneiro nomeia  uma comissão por si presidida e formada por Afonso Umbelino, José Ramos,  Gilberto Pedro Lopes, Luís Alberto P. Novas ,  Justino Moura Guedes , João Maria Brandão de Melo,  Carlos Alberto Bernardes, João Fernando Marques  e  João Romão Ferreira.

A partir daí o carnaval conhece um assinalável  crescimento tornando-se um dos mais importantes do país, com direito à transmissão directa pela televisão do seu desfile de Domingo. Dos 37 mil bilhetes vendidos em 1985 , chega aos 52 mil de 1988. (Boletim  Municipal  nº5, 2º  trimestre  de  1988).

Desde 1988  o Carnaval de Torres passa a obedecer a um  temática comum na decoração dos 13 carros  da comissão . 1988 teve por tema "os  descobrimentos" -  “à descoberta da alegria” ,  em 1989 a "história de Torres Vedras", em 1990 a "CEE" , em 1991  as  "histórias da carochinha"  , em 1992 "as  olímpiada"  , em 1993 "Portugal de lés a lés" ,em 1994  "o mundo  da  fantasia"  e em 1995 "a história do cinema". Desde 1993 foi  autorizado  o desfile de um 14º carro , independente da comissão e patrocionado pale Associação de Defesa do Património e EspeleoClube de Torres Vedras , presença que tem envolvido alguma polémica ,pela irreverência crítica deste carro.

Polémico foi também o carnaval  de 1993 , quando o primeiro-ministro Cavaco Silva  se recusou a assinar o decreto  que , tradicionalmente, desde Salazar, dava  feriado  , tolerância de ponto,  ou a tarde, na terça- feira de carnaval.

Vários concelhos com carnaval , entre eles o de Torres Vedras,  decretaram  feriado municipal e quase todo o país aderiu a uma espécie de desobediência civil. Cavaco  Silva foi alvo de chacota geral,  que incluiu uma manifestação de cabeçudos e mascarados do carnaval de Torres à porta da sua residência oficial. Nas sondagens Cavaco Silva  entrou em queda descontrolada, da qual  nunca mais  recuperou , pelo menos até ao  momento em que escrevo (Novembro de 1994) .

Apesar da crescente profissionalização da sua organização,  tem-se mantido a tradição de fazer reverter os lucros da iniciativa para  o apoio a associações de utilidade pública , entre as  quais, os Bombeiros Voluntários , a APECI (apoio a crianças  deficientes) ou o Asilo de S.José.

Contudo os anos de 1993 e 1994 foram anos de crises, provocada por condições climatéricas adversas , um risco em qualquer  manifestação de rua , principalmente quando o carnaval coincide com o início do mês de Fevereiro, como foi  o  caso.

“O CARNAVAL DE TORRES  HOJE [1994]- ORGANIZAÇÃO E RITUAIS

Cada ano, em meados de Agosto,    os  preparativos  do  carnaval   seguinte começam   com   uma  reunião  do  vereador com   a  comissão  ,para  uma  primeira  apresentação  de  idéias   -tema ,carros ,decorações ,cabeçudos .

Em  Setembro  tem  lugar  uma  segunda reunião, desta  vez  para  tratar  de  problemas  de  administração  e  secretariado.

O   trabalho   intensivo  inicia-se  em   meados   de  Dezembro   , dois  meses   antes  da  data   prevista   com   dois  turnos  de   trabalho, a  funcionar  24  horas  por   dia  até  à  véspera  do  corso.

Os  carros  alegóricos  são  fabricados  nos  estaleiros  de  "Arenes"  desde  1981   .

Em  1991  eram  responsáveis  pelo  fabrico  dos  carros  Pedro  Sobreiro  e  Travanca  da  Costa, o primeiro  por  7  carros  e  o  segundo  por  6, chefiando  um  grupo  de  12  operários  em  permanência  durante  os  dois  meses  de  trabalho. Noutros anos a autoria dos carros tem sido da exclusiva responsabilidade de José Pedro Sobreiro , ligado ao carnaval  desde  1980 . Actualmente , e desde 1994 , a orientação artística está a cargo do mestre António Trindade.

Os  carros  têm  por  base  desenhos  à escala. Alguns  dos  13  carros  mantêm  a  sua  estrutura      inalterável ,de   ano para ano. O  material  de  base , para  construção  dos carros ,  é  constituido  por  madeira  de  pinho, esferovite  , gesso , aglomerados  e  tinta. 

Antigamente   a  estrutura  dos  carros assentava   em   galeras de rodado de madeira. Actualmente e desde 1987,   assentam  em  chassis  feitos  de  propósito .”Hoje os chassis vão aos  9 mts de comprimento , 3 de largo com rodados de borracha e subiram para 7,5 mts de altura”,lembra-se Armindo, o funcionário de ligação com os operários e artistas (...)” ( ZONA OESTE, p.26, Nº13, FEV.92, OB.CIT.).

Para além das temáticas, os carros são sobretudo projectados em termos do seu impacto visual, que é o que verdadeiramente conta como espectáculo uma vez que nem todas as idéias se prestam a ser tratadas  sob a forma de carro alegórico.

“Assim, os carros de motivação crítica, são muitas vezes os mais difíceis de conseguir, pois que estão mais condicionados por referentes concretos” (texto, supostamente da autoria de José Pedro Sobreiro, publicado no folheto do carnaval de 1983).

A mesma equipa projecta e fabrica os cabeçudos que irão desfilar nos dias de carnaval. Aqueles são   modelados  em  escultura  de  barro. Depois  tira-se  o  molde  com  gesso  por  cima (ficando o   negativo), dividido  pela  parte  de traz  e  da  frente. De seguida sâo  elaborados  sobre  o  concavo   com  parte   contrária , com  fibra  de  vidro   e  resina  (até  1987   era  com   jornais)   e  finalmente  são  pintados. Os  moldes  antigos  são   aproveitados. A  estrutura  é   em  ferro. 

Quanto à temática dessas figuras tradicionais  do carnaval torriense , tem havido a preocupação de abranger um leque  variado de temas desde a fantasia pura e simples à crítica social  e política,  passando pelos temas clássicos (mitologia).

Os “homens sem sono”, a cujo trabalho nos bastidores se deve a realização do carnaval de Torres, vivem esta quadra de forma diferente: uns nem entram no côrso para ver os carros desfilar e tudo o que desejam é poder descansar; outros transferem-se da última madrugada de trabalho para o próprio corso, como figuras de destaque. Aconteceu em 1991 com o novo rei de carnaval. Todos esses artistas ,  a quem se deve o anual desfile carnavalesco deTorres  Vedras , ganham o seu salário por esse trabalho, mas , sem o grande amor que dedicam a esta tarefa, o Carnaval de Torres não seria o mesmo.

O carnaval nas ruas começa semanas antes da data marcada, geralmente em meados Janeiro,  com as brincadeiras de carnaval , principalmente agitadas nas escolas, com os "asssaltos" de mascarados a casa de amigos, e as festas em discotecas da região.

Oficialmente, o Carnaval de Torres  costuma começar no  penultimo  sábado anterior  ao domingo  gordo, com uma embaixada dos  reis e a sua côrte de" ministros " , matrafonas e cabeçudos,  que se desloca a Lisboa em missão de propaganda .No mesmo dia realiza-se normalmente o raly trapalhão, tradição retomada em 1988.

Na sexta-feira seguinte , de manhã,  tem lugar um desfile de máscaras  pelas ruas da cidade, com a participação de milhares de alunos das escolas e jardins de infância do concelho, costume que se iniciou em 1991 , quando  a Escola Secundária Madeira Torres promoveu um concurso de máscaras por turmas, para desfilarem pelas  ruas da cidade naquele dia da semana.

À  noite tem lugar , no largo da estação , a recepção aos "Zés Pereiras" que , acompanhando , com os seus bombos , cabeçudos e gigantones , iniciam o seu desfile pelas ruas da cidade , tarefa que executarão incansávelmente até ao início da noite da Terça-Feira Gorda.

Pelas colectividades e discotecas do concelho começam nessa noite os animados bailes de carnaval.

Sábado é dia de recepção real. Tradicionalmente esta tinha lugar na manhã desse dia ou de Domingo , no largo da estação. Segue-se um discurso de boas-vindas proferido pelo "primeiro- ministro" do Carnaval e a entrega , pelo Presidente da Câmara, da chave da cidade à comitiva real.

Em 1993 essa cerimónia teve lugar à noite, seguindo-se um cortejo nocturno em honra de "Suas Majestades " , prefigurando aquilo que desde longa data era preconizado por muitos e que ,  pela adesão popular obtida ,deverá ter continuidade em anos futuros.

Bruno Brandão de Melo é, desde 1991 , rei do carnaval , representando o primeiro caso de sucesão dentro da mesma família. António Manuel  dos Reis  (Mima)  é também "a" mais jovem "rainha" do carnaval. Por tradição , o rei é "armado" pela "rainha". Em Torres Vedras, resistindo-se à "onda brasileira" ,mantém-se o costume de " a rainha" ser um homem.

O corso carnavalesco , com entradas pagas  e desfile dos carros alegóricos , sempre bastante animado ,tem lugar durante as tardes de Domingo e Terça-Feira.

Cerimónia tradicional nestes dias é a homenagem prestada aos decendentes da Francisco e Jaime Alves ,  na residência  desses pioneiros do Carnaval de Torres  .Principal responsável por se manter esta tradição  , o sr. António dos Santos Verino  " prepara a festa e acolhe os foliões  desde há muitos anos e sempre com o mesmo entusiasmo e preocupaçaõ : não deixar morrer esta tradição , apesar do trabalho e custos qu isso implica" .

"(...)É uma cerimónia com todos os ingredientes de um verdadeiro ritual , onde não falta um formal discurso de agradecimento aos proprietários que sempre os recebem com uma mesa farta . Nesses  dois dias a casa  enche-se de dezenas de foliões que , para além do copo e diversas iguarias gentilmente oferecidas , pretendem exprimir a sua admiração e respeito . A perticipação e adesão a este ritual é de tal modo grande que hoje já existem outros grupos de foliões a rivalizar com os "Ministros e Matrafonas" nesta romagem .(...) Depois da confraternização , "Ministros e Matrafonas" despedem-se com a família Alves na varanda a assistir a mais uma praxe desta preciosa característica do nosso carnaval : dispostos em círculo em plena Rua Henriques Nogueira , os foliões  ajoelham-se  para uma peculiar reza final  e com um sonoro obrigado lançam-se na noite". ( Zona Oeste , nº13 , ob. cit. , p.30 ).

A noite é das colectividades e discotecas , sendo a segunda-feira a mais animada , principalmente pelos numerosos e animados grupos de mascarados que invadem as ruas e os bailes nessa noite.

A festa termina a altas horas da madrugada , já em quarta-feira de cinzas”.

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