quarta-feira, 26 de maio de 2021

O “crime das Fontainhas” (1886).


Quem entrar no cemitério de S. João, talvez já tenha reparado na grande lápide, logo à esquerda, um paralelepípedo em pedra envelhecida, com uns dizeres gravados, onde ainda se consegue ler, em francês: “Ici Repose Abel Marty/ Né A Paris En 1840/ Decédé A Torres Vedras / Le 26 Avril 1886/ Souvenir des Siens” ( “Aqui repousa Abel Marty/ nascido em Paris em 1840/ morto em Torres Vedras/ em 26 de Abril de 1886/ Recordação dos seus”).

Muita gente talvez já tenha ouvido falar neste Abel Marty e no crime de que foi vítima, conhecido pelo “Crime das Fontainhas”, que muito impressionou as pessoas da época, assunto muito divulgado e discutido na imprensa da nacional e que ficou registado na memória de gerações de torrienses.

Um ano antes desse crime, já a imprensa local alertava para as graves tensões socias que se viviam entre os trabalhadores do caminho-de-ferro, sendo notícia, em Maio de 1885,  um motim dos operários que trabalhavam na construção dos túneis à entrada da vila.

Esses operário estavam a trabalhar às ordens do engenheiro Marty, os quais, “queixando-se de que não eram pagos conforme o ajuste, e que o mesmo empreiteiro lhes recusava os pagamentos”, dirigiram-se, na noite da 3ª feira 7 de Maio de 1885, à quinta das Fontainhas, onde Abel Marty  estava hospedado, assaltando-a “com grandes berratas sediciosas. Uma grande parte das vidraças foram feitas em pedaços”, obrigando à fuga do empreiteiro. Avisadas as autoridades da vila, “marchou immediatamente para as Fontainhas uma força de cavalaria 4 e caçadores 6” a qual, ao chegar à quinta, encontrou os ânimos mais serenados. Contudo, o articulista referia informações recolhidas, segundo as quais  “os operários têm tido bastante rasão de queixa quanto à pontualidade de pagamento”, avisando, de forma premonitória que, se “o caso assim continua, queira Deus que não tenhâmos a lamentar algum infausto sucesso”  ( Jornal de Torres Vedras de 7 de Maio de 1885).

Com base em várias descrições existente(1), traçamos uma breve síntese sobre esse trágico acontecimento.

Albert Marty, de 46 anos,  era engenheiro francês e tinha tomado de empreitada, em conjunto com outro engenheiro seu compatriota, Eugenio Béraud, a construção dos 3 túneis a sul da estação de caminho-de-ferro da vila.

Marty era um engenheiro experiente e conceituado, responsável pela construção de túneis em várias linhas férreas europeias, na Suíça, na Bélgica e na Alemanha.

Béraud vivia perto da vila, na quinta da Certã e Marty tinha alugado, para habitar, a quinta das Fontainhas, próxima do lugar dos Cucos, junto à estrada mais movimentada da altura, que ligava Torres Vedras a Alhandra, bifurcando para Lisboa junto a Dois Portos.

Junto com Marty habitavam a esposa, o filho, um criado e uma criada, e um casal de caseiros.

Dias antes do crime, em 20 de Abril, a esposa e o filho tinham partido para França.

Era a partir da quinta que Marty “superintendia nos trabalhos dos tunneis, em que andavam empregados algumas dezenas de operários, práticos n’aquelles perigosos serviços; a maior parte, porem, era gente indisciplinada, de péssimos costumes, dado à embriaguez e á crápula, e desordeira; e muitos, segundo constava, tinham tomado aquelle mister como um refugio contra as perseguições da justiça, com a qual tinham contas ainda não saldadas” (SOTTOMAYOR, p.96.).

Por esses dias Abel Marty tinha despedido, por motivos disciplinares, o operário Marcial Diaz, um galego da região de Orense que trabalhava no túnel da Boiaca, que, em surdina, terá proferido ameaças de vingança, mas desparecendo sem deixar rasto.

Alguns dias depois desse acontecimento, no domingo dia 25 de Abril, alguns operários cruzaram-se em Torres Vedras com o dito Marcial acompanhado por dois outros indivíduos desconhecidos destas bandas. Eram dois operários mineiros que Marcial “fôra desencaminhar aos trabalhos da via férrea do Algarve, onde andavam ocupados” (SOTTOMAYOR, p.96).

Chamavam-se José Valliño, alcunhado de “o Corunhez”, devido à sua origem, natural de uma aldeia próxima da cidade galega da Corunha, de 25 anos, e Juan Lopez, alcunhado o Barellas, de 23 anos, natural de uma aldeia da província de Lugo.

Em Torres Vedras, veio-se a saber depois, compraram as facas usadas no crime no estabelecimento de Cândida Rosa.

Avisado dessa presença, Marty recolheu a casa mais cedo e, na noite desse domingo, algumas testemunhas viram aqueles três trabalhadores e rondar a quinta das Fontainhas.

O dia 26 de Abril, uma segunda-feira, “foi um dia primaveril de sol radiante” e, nessa tarde, os muitos frequentadores da “estrada de Alhandra” não suspeitaram de três indivíduos “que em plena luz, ás 4 e meia da tarde, iam socegadamente pela estrada fóra, e chegando ao portão de ferro da quinta das Fontainhas, por ali penetraram e seguiram pela rua orlada de buxo em direcção à casa”.

Por essa altura, o engenheiro francês estava no seu escritório, a trabalhar no desenho de uma planta, encontrando-se na casa, para além dele, uma criada de 16 anos, Sofia da Conceição, preparando o jantar, já que o criado tinha ido em serviço a Torres Vedras. Noutra casa anexa estava a caseira a costurar (SOTTOMAYOR, p.97).

Os três criminosos separaram-se. Marcial dirigiu-se para o anexo onde estava a caseira, ameaçando-a e impondo-lhe o silêncio.

Os outros dois bateram à porta da casa principal, sendo recebidos pela criada que os indagou sobre o motivo da sua presença, tendo estes penetrado de imediato na casa e dizendo o “Corunhez” que estavam “ali para que mr.Marty lhe pagasse um dia e serviço que lhe estava devendo”, ao mesmo tempo que também entrava o segundo assaltante, o “Barellas”.

Dirigiram-se para o escritório, ficando o “Barella” junto da criada, do lado de fora dessa divisão, a quem ameaçou com  uma faca que este entretanto sacou, entrando o “Corunhez” no escritório, exigindo ao espantado engenheiro que este “lhe pagasse um dia de trabalho”, ao que Marty respondeu “ Eu não o conheço; mas se se lhe deve um dia, vá chamar o apontador, e já se lhe paga”.

Foram as últimas palavras do malogrado engenheiro pois que, de imediato o “Corunhez” se precipitou “sobre o infeliz Marty, vibrando-lhe a primeira facada que penetrou profundamente na virilha esquerda”, seguindo-se uma luta desigual, continuando o empreiteiro francês a ser esfaqueado pelo criminoso, mas a vítima ainda se conseguiu arrastar até ao quarto.

Em sua perseguição, acompanhado pelo segundo assaltante, que entretanto largou a criada, forçaram a entrada no quarto, à procura de bens, cabendo desta vez ao “Barellas” golpear no pescoço a vítima já moribunda, a quem roubaram o relógio de corrente, único bem que conseguiram obter do assalto.

Livre dos assaltantes a criada “precipitou-se pela porta fóra em corrida vertiginosa, gritando, louca de pavôr”, o que “desorientou os assassinos”, levando também a que o “Marcial” abandonasse a caseira que mantinha sob ameaça, desatando os três a fugir pelas traseiras da casa.

A criada refugiou-se na casa da caseira, permanecendo aí as duas por cerca de um quarto de hora, receando a volta dos criminosos. Só quando confirmaram a fuga dos assaltantes é que saíram, indo pedir auxilio à quinta da Certã, que fica próxima.

Alertadas as pessoas, logo ocorreu muita gente ao local do crime, chegando de seguida as autoridades concelhias, que apenas puderam confirmar o óbito de Marty e iniciar a perseguição dos criminosos, com uma força de cavalaria, que regressou de noite sem descobrir o seu rasto.

Estes tinham fugido pelas traseiras da casa. Passaram a primeira noite escondidos “n’um palheiro dashaditado na charneca da Bogalheira”, a caminho do Bombarral, onde também passaram o dia seguinte, continuando então “a caminhar em direcção á estrada, que foram seguindo sempre até Pombal”.

Só em meados de Maio os criminosos foram descobertos e detidos, numa taberna nas proximidades do Pombal, sendo antão conduzidos para Torres Vedras, onde chegaram na sexta-feira 7 de Maio, sendo aguardados por uma multidão silenciosa e  pelas autoridades locais.

Interrogados pelo juiz de direito, foram de seguida conduzidos cadeia, onde ficaram  a aguardar pelo julgamento. ( SOTTOMAYOR, p.98 a 101).

O julgamento teve lugar no dia 12 de Agosto, presidido pelo juiz Lucio Xavier de Lima com a presença de muito público e de 10 jurados, para além dos advogados de defesa e dos réus.

Por volta das 8 horas da noite foi lido o veredicto, sendo provado que o “Marcial” foi quem planeou o assalto, o “Corunhez” foi quem desferiu a maior parte dos golpes mortais e que o “Barellas” completou o crime cortando o pescoço da vitima, quando esta ainda estava viva.

Cada um dos réus foi condenado a 10 anos de prisão maior celular, seguida de 20 anos de degredo nas colónias, dos quais 2 em prisão ou, em alternativa, em 31 anos de degredo, 10 dos quais em prisão cumprida no degredo (D.João da Camara, Jornal de Torres-Vedras de 19 de Agosto de 1886).



O “Corunhez” e o “Barella” morreram na prisão, entes do cumprimento da pena, o primeiro, atacado de “alienação mental”  em 1892, falecido em 1894, e o segundo falecido na penitenciária em 1892.

Marcial Diaz, por sua vez,  com três louvores pelo seu bom comportamento na penitenciária, seguiu para África em 1894, para cumprir o resto da pena, desconhecendo-se o seu destino posterior.() SOTTOMAYOR, p.107.

Uma explosiva combinação, entre a falta de cumprimento nos pagamentos, as  péssimas condições de trabalho na via férrea, provocando muitos acidentes fatais referidos por várias vezes na imprensa loca,  a péssima relação de Marty com alguns dos seus trabalhadores, a concentração de dezenas de trabalhadores de várias origens e desenraizados, muitos de origem estrangeira, principalmente galegos, onde se misturavam , com mineiros e operários à procura de trabalho,  autênticos bandoleiros, alguns fugidos à justiça do país de origem, , culminou na tragédia que vitimou esse engenheiro francês  em 26 de Abril de 1886.

(1) seguimos principalmente a narrativa de Agostinho Barbosa Sottomayor, “O assassínio de Engenheiro Abel Marty em Torres Vedras”, in “O crime de Torres Vedras”, Galeria de Criminosos Célebres em Portugal, ed. António Palhares, Lisboa 1897, pp. 94 a 107. Esta mesma edição transcreve a reportagem do julgamento dos criminosos, da autoria de D. João da Câmara, publicado no “Jornal de Torres Vedras” em 19 de Agosto de 1886. Também recorremos ao relato dos acontecimentos feito pelo administrador do concelho de Torres Vedras, António Joaquim Gonçalves Rosa, em correspondência para o Governador Civil de Lisboa, registada no “Livro de correspondência da Administração do Concelho para o Governo Civil de Lisboa”, com a data de 14 de Maio de 1886, registo nº 90, ff. 2 a 9 verso, manuscrito existente no Arquivo Municipal de Torres Vedras. Existem ainda várias outras referência aos acontecimentos, não só no já citado “Jornal de Torres Vedras”, mas em quase toda a imprensa nacional da época. Destacamos, contudo, a noticia publicada no “Diário Illustrado” que pode ser consultado na internet, no site da Biblioteca Nacional de Lisboa.

(excerto da correspondência do Administrador do Concelho para o Governador  Civil, com a descrição dos acontecimentos (AMTV).

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