Quem entrar no cemitério de S. João, talvez já tenha reparado na grande lápide, logo à esquerda, um paralelepípedo em pedra envelhecida, com uns dizeres gravados, onde ainda se consegue ler, em francês: “Ici Repose Abel Marty/ Né A Paris En 1840/ Decédé A Torres Vedras / Le 26 Avril 1886/ Souvenir des Siens” ( “Aqui repousa Abel Marty/ nascido em Paris em 1840/ morto em Torres Vedras/ em 26 de Abril de 1886/ Recordação dos seus”).
Muita gente talvez já tenha ouvido falar neste Abel Marty e no crime de
que foi vítima, conhecido pelo “Crime das Fontainhas”, que muito impressionou
as pessoas da época, assunto muito divulgado e discutido na imprensa da
nacional e que ficou registado na memória de gerações de torrienses.
Um ano antes desse crime, já a imprensa local alertava para as graves
tensões socias que se viviam entre os trabalhadores do caminho-de-ferro, sendo notícia,
em Maio de 1885, um motim dos operários
que trabalhavam na construção dos túneis à entrada da vila.
Esses operário estavam a trabalhar às ordens do engenheiro Marty, os
quais, “queixando-se de que não eram pagos conforme o ajuste, e que o mesmo
empreiteiro lhes recusava os pagamentos”, dirigiram-se, na noite da 3ª feira 7
de Maio de 1885, à quinta das Fontainhas, onde Abel Marty estava hospedado, assaltando-a “com grandes
berratas sediciosas. Uma grande parte das vidraças foram feitas em pedaços”,
obrigando à fuga do empreiteiro. Avisadas as autoridades da vila, “marchou
immediatamente para as Fontainhas uma força de cavalaria 4 e caçadores 6” a
qual, ao chegar à quinta, encontrou os ânimos mais serenados. Contudo, o
articulista referia informações recolhidas, segundo as quais “os operários têm tido bastante rasão de
queixa quanto à pontualidade de pagamento”, avisando, de forma premonitória que,
se “o caso assim continua, queira Deus que não tenhâmos a lamentar algum
infausto sucesso” ( Jornal de
Torres Vedras de 7 de Maio de 1885).
Albert Marty, de 46 anos, era
engenheiro francês e tinha tomado de empreitada, em conjunto com outro
engenheiro seu compatriota, Eugenio Béraud, a construção dos 3 túneis a sul da
estação de caminho-de-ferro da vila.
Marty era um engenheiro experiente e conceituado, responsável pela
construção de túneis em várias linhas férreas europeias, na Suíça, na Bélgica e
na Alemanha.
Béraud vivia perto da vila, na quinta da Certã e Marty tinha alugado,
para habitar, a quinta das Fontainhas, próxima do lugar dos Cucos, junto à
estrada mais movimentada da altura, que ligava Torres Vedras a Alhandra,
bifurcando para Lisboa junto a Dois Portos.
Junto com Marty habitavam a esposa, o filho, um criado e uma criada, e
um casal de caseiros.
Dias antes do crime, em 20 de Abril, a esposa e o filho tinham partido
para França.
Era a partir da quinta que Marty “superintendia nos trabalhos dos
tunneis, em que andavam empregados algumas dezenas de operários, práticos
n’aquelles perigosos serviços; a maior parte, porem, era gente indisciplinada,
de péssimos costumes, dado à embriaguez e á crápula, e desordeira; e muitos,
segundo constava, tinham tomado aquelle mister como um refugio contra as
perseguições da justiça, com a qual tinham contas ainda não saldadas” (SOTTOMAYOR, p.96.).
Por esses dias Abel Marty tinha despedido, por motivos disciplinares, o
operário Marcial Diaz, um galego da região de Orense que trabalhava no túnel da
Boiaca, que, em surdina, terá proferido ameaças de vingança, mas desparecendo
sem deixar rasto.
Alguns dias depois desse acontecimento, no domingo dia 25 de Abril,
alguns operários cruzaram-se em Torres Vedras com o dito Marcial acompanhado
por dois outros indivíduos desconhecidos destas bandas. Eram dois operários
mineiros que Marcial “fôra desencaminhar aos trabalhos da via férrea do
Algarve, onde andavam ocupados” (SOTTOMAYOR, p.96).
Chamavam-se José Valliño, alcunhado de “o Corunhez”, devido à sua
origem, natural de uma aldeia próxima da cidade galega da Corunha, de 25 anos,
e Juan Lopez, alcunhado o Barellas, de 23 anos, natural de uma aldeia da
província de Lugo.
Em Torres Vedras, veio-se a saber depois, compraram as facas usadas no
crime no estabelecimento de Cândida Rosa.
Avisado dessa presença, Marty recolheu a casa mais cedo e, na noite
desse domingo, algumas testemunhas viram aqueles três trabalhadores e rondar a
quinta das Fontainhas.
Por essa altura, o engenheiro francês estava no seu escritório, a
trabalhar no desenho de uma planta, encontrando-se na casa, para além dele, uma
criada de 16 anos, Sofia da Conceição, preparando o jantar, já que o criado
tinha ido em serviço a Torres Vedras. Noutra casa anexa estava a caseira a
costurar (SOTTOMAYOR, p.97).
Os três criminosos separaram-se. Marcial dirigiu-se para o anexo onde
estava a caseira, ameaçando-a e impondo-lhe o silêncio.
Os outros dois bateram à porta da casa principal, sendo recebidos pela
criada que os indagou sobre o motivo da sua presença, tendo estes penetrado de
imediato na casa e dizendo o “Corunhez” que estavam “ali para que mr.Marty lhe
pagasse um dia e serviço que lhe estava devendo”, ao mesmo tempo que também
entrava o segundo assaltante, o “Barellas”.
Dirigiram-se para o escritório, ficando o “Barella” junto da criada, do
lado de fora dessa divisão, a quem ameaçou com uma faca que este entretanto sacou, entrando o
“Corunhez” no escritório, exigindo ao espantado engenheiro que este “lhe
pagasse um dia de trabalho”, ao que Marty respondeu “ Eu não o conheço; mas se
se lhe deve um dia, vá chamar o apontador, e já se lhe paga”.
Foram as últimas palavras do malogrado engenheiro pois que, de imediato
o “Corunhez” se precipitou “sobre o infeliz Marty, vibrando-lhe a primeira
facada que penetrou profundamente na virilha esquerda”, seguindo-se uma luta
desigual, continuando o empreiteiro francês a ser esfaqueado pelo criminoso,
mas a vítima ainda se conseguiu arrastar até ao quarto.
Em sua perseguição, acompanhado pelo segundo assaltante, que entretanto
largou a criada, forçaram a entrada no quarto, à procura de bens, cabendo desta
vez ao “Barellas” golpear no pescoço a vítima já moribunda, a quem roubaram o
relógio de corrente, único bem que conseguiram obter do assalto.
Livre dos assaltantes a criada “precipitou-se pela porta fóra em
corrida vertiginosa, gritando, louca de pavôr”, o que “desorientou os
assassinos”, levando também a que o “Marcial” abandonasse a caseira que mantinha
sob ameaça, desatando os três a fugir pelas traseiras da casa.
A criada refugiou-se na casa da caseira, permanecendo aí as duas por
cerca de um quarto de hora, receando a volta dos criminosos. Só quando
confirmaram a fuga dos assaltantes é que saíram, indo pedir auxilio à quinta da
Certã, que fica próxima.
Alertadas as pessoas, logo ocorreu muita gente ao local do crime,
chegando de seguida as autoridades concelhias, que apenas puderam confirmar o
óbito de Marty e iniciar a perseguição dos criminosos, com uma força de
cavalaria, que regressou de noite sem descobrir o seu rasto.
Estes tinham fugido pelas traseiras da casa. Passaram a primeira noite
escondidos “n’um palheiro dashaditado na charneca da Bogalheira”, a caminho do
Bombarral, onde também passaram o dia seguinte, continuando então “a caminhar
em direcção á estrada, que foram seguindo sempre até Pombal”.
Só em meados de Maio os criminosos foram descobertos e detidos, numa
taberna nas proximidades do Pombal, sendo antão conduzidos para Torres Vedras,
onde chegaram na sexta-feira 7 de Maio, sendo aguardados por uma multidão
silenciosa e pelas autoridades locais.
O julgamento teve lugar no dia 12 de Agosto, presidido pelo juiz Lucio
Xavier de Lima com a presença de muito público e de 10 jurados, para além dos
advogados de defesa e dos réus.
Por volta das 8 horas da noite foi lido o veredicto, sendo provado que
o “Marcial” foi quem planeou o assalto, o “Corunhez” foi quem desferiu a maior
parte dos golpes mortais e que o “Barellas” completou o crime cortando o
pescoço da vitima, quando esta ainda estava viva.
Cada um dos réus foi condenado a 10 anos de prisão maior celular, seguida de 20 anos de degredo nas colónias, dos quais 2 em prisão ou, em alternativa, em 31 anos de degredo, 10 dos quais em prisão cumprida no degredo (D.João da Camara, Jornal de Torres-Vedras de 19 de Agosto de 1886).
Marcial Diaz, por sua vez, com
três louvores pelo seu bom comportamento na penitenciária, seguiu para África
em 1894, para cumprir o resto da pena, desconhecendo-se o seu destino posterior.()
SOTTOMAYOR, p.107.
Uma explosiva combinação, entre a falta de cumprimento nos pagamentos,
as péssimas condições de trabalho na via
férrea, provocando muitos acidentes fatais referidos por várias vezes na
imprensa loca, a péssima relação de
Marty com alguns dos seus trabalhadores, a concentração de dezenas de
trabalhadores de várias origens e desenraizados, muitos de origem estrangeira,
principalmente galegos, onde se misturavam , com mineiros e operários à procura
de trabalho, autênticos bandoleiros,
alguns fugidos à justiça do país de origem, , culminou na tragédia que vitimou
esse engenheiro francês em 26 de Abril
de 1886.
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