quarta-feira, 26 de junho de 2024

O Convento do Varatojo, breve evocação histórica


A iniciativa de o fundar um convento no sítio do Varatojo pertenceu a D. Afonso V, que em 1470, tomou essa decisão, escolhendo esse lugar porque o monarca aí possuía uma Quinta que adquiriu por 35$000 réis.

Em Fevereiro de 1470 aí se deslocou aquele monarca em procissão solene, para o lançamento da primeira pedra do convento.

Ficou como responsável pela obra e pela sua inspecção Diogo Gonçalves Lobo, que tinha sido vedor da rainha D. Leonor, ao qual o monarca ordenou “que pusesse toda a eficácia (...) sahindo do Real Erário todas as despesas da mesma: Para effeito de se pôder concluir a obra o mais depressa, e com mais suavidade, e também para que os lavradores mais facilmente, e mais gostosos concorressem para ella com seus carros, lhes fez o Rei sempre generoso a grande mercê de alivia-los em grande parte do oneroso tributo, que pagavão chamado jugada, em quanto durasse a obra” (1).

A jugada era um tributo que os lavradores do concelho pagavam, um moio de trigo por cada junta de bois.

O mesmo Gonçalves Lobo representou o rei à data da inauguração oficial, em 4 de Outubro de 1474, por impossibilidade da sua presença nessa ocasião, dando posse do convento aos 14 religiosos vindos de Alenquer na companhia do Vigário Provincial dos Religiosos Franciscanos, Frei João da Póvoa, e nomeando Fr. Álvaro de Alenquer primeiro guardião do convento.

D. Afonso V reservou para si um modesto aposento, ao qual se recolhia frequentemente, passando aqui grande parte dos seus últimos anos de vida, [faleceu em 1481] assistindo à missa de uma tribuna junto ao coro, quase em frente ao púlpito.

Da ligação daquela monarca ao convento conserva-se, no museu de Arte Antiga, em Lisboa uma cadeira de braços, ou “estadela”, usada por esse monarca e que foi incorporada no espólio desse museu em 1913. No site dessa instituição, onde se refere essa peça de mobiliário, pode ler-se que, de  “facto, nos textos dos cronistas da Ordem, a alusão à existência no convento da cadeira de D. Afonso V é recorrente e a sua conservação por sucessivas gerações de frades deverá ser entendida como preservação da fundação régia do convento, pois mais do que um simples objecto pessoal, a “cadeira de estado” revestia-se de uma forte carga simbólica associada ao poder real”.

Segundo a tradição, era da janela de canto, junto à entrada para o convento que o rei D. Afonso V falava aos pobres. Contudo, essa janela é obra mais tardia, posterior ao reinado de D. João II.

Manuel Clemente afirma que “o conventinho inicial mal daria para albergar vinte e cinco frades. No século seguinte, D. João III teve de o acrescentar e a sua esposa D. Catarina construiu uma nova capela-mor na igreja inicial. Assim já pôde albergar cinquenta religiosos, com estudos de filosofia e teologia até 1680”, acrescentando aquele historiador torriense que, “durante este primeiro período, de 1470 a 1680, a estação evangélica do Varatojo chamava gente grada a ouvir os frades e a aprender com eles. Não foi por acaso que as primeiras habitações à volta do convento tenham sido exactamente as desses ouvintes discípulos” (2). Dessas habitações ainda hoje é possível observar as ruínas do paço brasonado dos Andrades.

Em 1680 Frei António das Chagas fundou, neste convento, um seminário.

Vários cronistas da ordem de S. Francisco apontam a existência de um primitivo convento daquela ordem já no século XIII, entre Torres Vedras e a encosta do Varatojo, na várzea do Alpilhão, junto à muralha da vila, conhecido por Ermida de S. Francisco, hipótese até hoje impossível de confirmar.

Em 1834, os frades deste convento conheceram o destino de todos os regrantes do país. Em 1861 seria recuperado pelos franciscanos como seminário, tendo funcionado como escola de instrução primária, a primeira do concelho. Entre 1903 e 1906 construiu-se um novo andar.

Em 1910 o convento voltou a ser encerrado, funcionando aí, até 1928, um asilo de inválidos. Neste ano voltou a ser entregue aos franciscanos, sendo o único convento desta ordem, de todos os encerrados desde 1834, a regressar às suas funções iniciais, sendo hoje o único convento do concelho habitado por frades.

A Capela de Nª Senhora do Sobreiro, à entrada, do lado esquerdo, em frente à entrada da Igreja foi construída em 1777 e deve o seu nome ao facto de a Imagem da Senhora ter sido descoberta, segundo reza a tradição, na cavidade de um robusto sobreiro, na mata do convento.

A Igreja do convento, de uma só nave, tem uma estrutura geral já do século XVII, mas com um portal gótico, decorado à direita com o rodízio (3) de D. Afonso V, cercado pelo cordão franciscano, e à esquerda, um baixo relevo gótico de mármore, com as armas do reino sustentadas por dois anjos.

As paredes são revestidas por azulejos do século XVIII e nichos para confessionários, cujos azulejos se compõem de motivos alusivos à confissão. Um deles retrata o inferno, representando o estado de um penitente que se confessa bem, em contraste com o penitente que se confessa mal.

No seu interior, decorado a talha dourada,  destaca-se a capela de Nossa Senhora das Dores, fundada em 1740 com painéis de azulejos setecentistas, um altar de talha rocaille, com bonitas e pequenas imagens, sobressaindo a de Nossa Senhora das Dores em alto relevo. É nesta capela que, debaixo da mesa do altar, se venera, desde 1870, “em urna de cristal, todo o esqueleto do mártir S. Benedito, artisticamente composto em cera, e vestido com ricos brocados de cera, oferta da princesa de Portugal, a Infanta D. Isabel Maria (...) filha de D. João VI, ao seu confessor, o conhecido Padre Fr. Agostinho da Anunciação (...) a qual por sua vez a tinha recebido por gentileza do Papa Pio IX, na terceira e última visita que aquela Infanta fizera a Roma” (4)

Outro elemento a destacar nessa Igreja é a sua Capela-Mor, com abóboda de berço com caixotões, forro de azulejos do século XVIII com cenas da vida de Stº António, representando alguns dos seus milagres e quatro tábuas do final do século XVI, “Anunciação”, “Adoração dos Reis Magos”, “Adoração dos Pastores”, “Aparição de Cristo”, atribuídos a Grão Vasco e, ao centro, uma tela, da autoria do pintor italiano Braccarelli – “Stº António Perante a Virgem que lhe Entrega o Menino”.

A Sacristia, inaugurada em 1732, possui duas tábuas do século XVII: “Milagre da Mula (Santo António)” e “Pentecostes(descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos)”, quadros igualmente atribuídos a Grão Vasco. Os silhares de azulejos do século XVIII são cópia das estampas do livro “Escuela del Corazon”, alegoria dos vários estados de alma nas suas ascensões para Deus, legendados com várias quadras.

O Claustro de tipo gótico tem a arcada ogival decorada com o rodízio de D. Afonso V.

Na ala norte existe uma porta manuelina, que dá acesso à capela do Senhor Jesus, forrada com azulejos de ponta de diamante. Aqui encontra-se o panteão da família Soares de Alarcão, que dominaram a alcaiadaria de T. Vedras nos séculos XVI e XVII, para o qual se entra por um magnífico pórtico manuelino. Destaca-se a lápide sepulcral de Gomes Soares, que foi conselheiro de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel.

Destaque também para o nicho de Stº António, com azulejos policromados representando o Santo.

Aberto para o claustro existe a Sala do capítulo com azulejos albarrados do século XVIII e várias telas com retratos dos priores e figuras ilustres do convento, com destaque para a de “Frei António das Chagas”, tela do final do século XVII.

Mas um dos sítios mais emblemáticos deste monumento é a sua “cerca”, assim descrita por Madeira Torres:

“A cerca do Convento é espaçosa, e comprehende uma boa mata, horta, e vinha povoada de muitas arvores das milhores castas de peras, maças, ameixas, ginjas, e pêcegos, e tambem comprehende diversos taboleiros de pomares d’espinho, sendo bastante conhecidas, e estimadas as limas, que d’elles se colhem” (5).

Nela existem duas capelinhas, uma no sítio do primitivo forno de cal, que funcionou para a construção do convento no século XV, a gruta do “Ecce Homo”, forrada a azulejos, e a primitiva capela da Senhora do Sobreiro, adornada com quatro pequenos painéis que figuram monges em estudo e em contemplação, onde, segundo a lenda, foi descoberta a Imagem de Maria Santíssima com o menino, na cavidade de um centenário sobreiro, escondida aí desde o tempo de D. Afonso Henriques, para escapar á perseguição dos mouros.

Parte da mata parece ser o que resta da primitiva paisagem florestal da região pois reconhece-se “que não foi plantada esta matazinha, mas fôra um pedaço de monte, cujo mato e arbustos cresceram á mercê da sua natureza, formaram selva, mais ao diante aproveitada para uso dos animais domésticos do primeiro colono, que na encosta daquele monte arroteou e semeou; e mais tarde transformada em recreio do primeiro senhor que ali instituiu Quinta para sua morada” (6).

O Convento do Varatojo é hoje uma verdadeira cápsula do tempo no seio da região torriense.

(1) Frei Manoel Maria Santíssima, História do Varatojo, 1º volume, 1799 [obra em 2 volumes];

(2) P. Manuel Clemente, “Uma página da história torrense – Varatojo: Centro de Irradicação”, in Badaladas, T. Vedras, 5 de Outubro de 1984;

(3) . O rodízio de tirar água significa que um monarca deve movimentar-se continuamente ao serviço da nação.

(4) Frei Bartolomeu Ribeiro, “Os Franciscanos em Torres Vedras”, in Badaladas, 1953e 1954, ed. Fac-similada [foi editado em livro com uma 1ª edição em 2009, e uma 2ª edição em 2005];

(5) P. Manoel Agostinho Madeira Torres, Descripção Historica (...) de Torres Vedras, 2ª ed., Coimbra, 1862, p.139

(6) Frei Bartolomeu Ribeiro, ob. Cit.

Para saber mais e para uma informação actualizada, leia-se:

SILVA, Carlos Guardado da, Torres Vedras Antiga e Medieval, ed. CMTV/Colibri, Lisboa 2008. Para uma leitura da vida actual desse convento leia-se a reportagem de Joaquim Moedas Duarte “Varatojo - Vinte e quatro horas na vida de um convento” publicada no nº 5 da revista Torres Cultural de 1992. Para uma visão diferente, leia-se a investigação colectiva intitulada “A exploração dos recursos hídricos no convento franciscano do Varatojo (Torres Vedras”, publicado no Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, nº 95, t. 2, pp.37-54:

1 comentário:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Mais uma excelente síntese sobre um dos monumentos nacionais do concelho de Torres Vedras.
Obrigado, caro Venerando!